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A filiação socioafetiva no direito brasileiro e a impossibilidade de sua desconstituição posterior

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Agenda 26/09/2007 às 00:00

3.O estágio atual: a prevalência da filiação socioafetiva

A filiação socioafetiva, que, como vimos, encontra sólido apoio nas normas constitucionais sobre direito de família, passa a ter a assento infraconstitucional no art. 1.593 do Código Civil, que menciona a possibilidade de embasar-se o parentesco na consagüinidade ou em "outra origem", locução que engloba a origem afetiva (neste sentido, FACHIN, 2003, p. 17).

Decerto não constitui exagero algum dizer-se que, no direito civil brasileiro contemporâneo, vige mesmo a prevalência do paradigma da socioafetividade, como regra geral do sistema. [12]

Esta a opinião, por exemplo, de Paulo Lôbo, para quem houve uma clara opção da ordem jurídica brasileira pela família socioafetiva; neste contexto, a própria filiação de ordem biológica se legitima e se consolida pelo afeto, na medida em que "o filho biológico é também adotado pelos pais, no cotidiano de suas vidas" (LÔBO, 2003a, p. 144).

Reconhece-se, pois, que o parentesco psicológico "prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal" (DIAS, 2004, p. 66).

Deve ser fixada a linha evolutiva: quando da consolidação do sistema de filiação típico do direito civil tradicional, vivia-se quase que sob a exclusividade do paradigma do biologismo, ressalvado apenas o papel da adoção, tornado secundário pelo fato de ter o filho adotivo, antes das reformas no direito de família, um status prejudicado e menos direitos que o filho consagüíneo dito legítimo; em seguida, já como uma manifestação do direito civil contemporâneo, estabelece-se um novo paradigma, o da socioafetividade, convivendo lado a lado com o parentesco biológico; e, por fim, no estágio atual, chega-se à prevalência do paradigma socioafetivo, como meio de privilegiar as diretrizes constitucionais principiológicas que regem o direito de família, notadamente a afetividade, o melhor interesse da criança, a liberdade e a igualdade.

Posta a noção de que não se confunde pai e genitor, e de que prevalece o vínculo de filiação construído através da convivência e do afeto sobre aquele meramente biológico, é fundamental diferenciar-se o direito ao pai (para tomar de empréstimo a expressão cunhada por HIRONAKA, 2000, p. 71) e o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, com ele inconfundível.

Toda pessoa humana tem direito ao estado de filiação, como prerrogativa contida no âmbito da disciplina jurídica das relações familiares, e essa constituição do estado de filiação pode se dar inclusive através do conhecimento da origem genética, se os laços de paternidade não se constituíram por via da afetividade (LÔBO, 2003b, p. 153).

Diferentemente ocorre quando há uma relação de paternidade socioafetiva pré-constituída. Nestes casos, existe sim o direito à investigação da origem genética, mas ela tem seu fundamento deslocado do direito de família para a seara dos direitos de personalidade; vindica-se a origem genética, não a paternidade (LÔBO, 2003b, p. 153).

São dois, portanto, os fundamentos básicos da teoria da paternidade socioafetiva: as distinções entre genitor e pai e entre direito à filiação e ao conhecimento da origem genética, ambas entrelaçadas.

Partindo dos princípios anteriormente analisados e sem perder de vista que a origem da filiação não pode mais ser questionada (DIAS, 2004, p. 66), uma vez que, independentemente da forma de constituição do vínculo de parentalidade, os direitos dele advindos serão os mesmos, em vista do imperativo constitucional da igualdade entre os filhos (CF, 227, §6º), é útil enumerar as diversas formas de se obter o estado de filho. [13]

A filiação pode ser constituída ope legis ou pela posse de estado, o que significa dizer que ou ocorre a incidência direta de uma norma que regula a atribuição do estado de filho, ou se tem uma situação fática prolongada de convivência e afetividade que conduz à parentalidade.

A primeira espécie comporta três hipóteses, a saber: (a) filiação biológica em face de ambos os pais, no casamento ou na união estável, ou em face do pai ou mãe biológicos na família monoparental; [14] (b) filiação não-biológica por adoção, feita por ambos ou somente por um dos cônjuges; [15] (c) filiação não-biológica por inseminação artificial heteróloga, em face do pai que concedeu sua autorização. [16]

Por serem estas situações direta e expressamente disciplinadas na lei, refletindo modos formalizados e pré-definidos de constituição de filiação, tem-se que nelas existe uma presunção de que efetivamente há a convivência familiar e a afetividade (LÔBO, 2003b, p. 137).

Podemos traçar aqui uma linha comparativa com o matrimônio, meio formal de se constituir uma entidade familiar; após contraídas as núpcias, com o atendimento dos ritos legais, presume-se a convivência e a formação dos laços familiares.

Já a posse de estado é a filiação tipicamente socioafetiva, construída independentemente dos caminhos acima articulados, através de contínua relação de convivência e afeto, desempenhando-se no plano fático os papéis de pai e filho.

Aqui a analogia imediata seria com a união estável, situação de fato desprovida de maiores formalidades constitutivas e na qual inexiste presunção de convivência, devendo ser ela comprovada para que se tenha como existente a entidade familiar. [17]

Neste sentido, o artigo 1.605 do Código Civil prescreve a possibilidade de provar-se a relação de filiação por qualquer modo admissível em direito, mencionando expressamente a existência de "veementes presunções resultantes de fatos já certos".

Deve-se, pois, fazer prova "di una serie di fatti che, nel loro complesso, valgano a dimostrare le relazioni di filiazione e di parentela fra una persona e la famiglia a cui essa pretende di appartenere" (GAZZONI, 1998, p. 391).

Quais seriam esses fatos que demonstram a posse do estado de filiação? Trata-se de situação nem sempre fácil de ser caracterizada, e que demanda análise casuística e flexível, sujeita à ponderação in concreto do julgador (PIMENTA, 1986, p. 161-162), mas para a qual concorrem alguns critérios de sólida construção doutrinária.

Lembrem-se os três postulados tradicionais: nomen, tractatus e fama (MIRANDA, 2001, p. 71).

O nomen consiste no uso do nome da família. Não é, porém, um requisito dos mais essenciais (GONÇALVES, 1955, p. 269), uma vez que, como é óbvio, a informalidade da situação pode fazer com que o filho não porte o nome dos pais.

O tractatus é, a nosso ver, o ponto fundamental, posto que espelha o exercício fático da paternidade, construída na afetividade e na convivência. É o tratamento filial, correspondendo à educação, fornecimento dos meios de subsistência (MIRANDA, 2001, p. 71), carinho, atenção, assunção de responsabilidade.

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Por fim, a fama, que nada mais é que a exposição pública da relação de convivência paterno-filial. Essa publicidade não precisa se estender a todos os que conhecem os pais e o filho, mas também não existe quando do conhecimento quase que secreto de apenas alguns íntimos (SILVEIRA, 1971, p. 76).

A posse de estado pressupõe, como é natural, o trato sucessivo, uma duração "suficiente", embora não seja abalada por interrupções que não gerem efetiva descontinuidade na filiação sócio-afetiva (PIMENTA, 1986, p. 165).

Assente-se com clareza, porém, que esses requisitos são meramente exemplificativos e devem ser analisados com temperança, sem excessiva rigidez, com a atenção de tentar delinear sem formalismos o exercício fático da paternidade, que é o que importa ao melhor interesse da criança.

A esse respeito, Cunha Gonçalves já apontava com boa dose de precisão que "as pessoas agem diferentemente em relação aos filhos, uns sendo mais emotivos e sentimentais, e outros mais fechados" (1955, p. 276). Essas diferenças não elidem a natureza da relação, que é paternal, e por isso não se pode trabalhar com conceitos fechados ou situações pré-modeladas: as vicissitudes do caso concreto ditarão a qualificação da relação fática e sua juridicização enquanto filiação socioafetiva.

Por fim, é de se lembrar que se insere na temática da posse de estado a chamada "adoção à brasileira", consistente no registro de uma criança por aqueles que não são seus pais biológicos e o conseqüente estabelecimento de uma relação paterno-filial afetiva (LÔBO, 2003b, p. 140). [18]

Estas as linhas gerais da filiação socioafetiva no direito brasileiro contemporâneo. Podemos, então, passar ao âmago de nosso trabalho, investigando acerca da possibilidade de sua desconstituição a posteriori.


4.A impossibilidade de desconstituição posterior da filiação socioafetiva

4.1.Colocação do problema e sua importância

Observamos, no tópico anterior, que existem diversas formas de se constituir uma relação de filiação socioafetiva, independente de consangüinidade. Algumas são atuantes ope legis, como ocorre com a adoção e a inseminação artificial, e por isso gozam de uma presunção legal de existência de convivência e afetividade. Outras constroem-se sem atender a específicas formalidades normadas, e por isso dependem de prova da relação socioafetiva, plasmada no serviço e no afeto (notadamente, a posse de estado e a adoção à brasileira).

No que toca às primeiras, como se desenvolvem sob abrigo de critérios formais delineados, já é assentado na doutrina que não podem ser reversíveis (LÔBO, 2003b, p. 137). Consumado o processo de adoção, ou dado o consentimento para a inseminação, tem-se uma consolidação inequívoca do liame de filiação, que não pode vir a ser desfeito.

Não se verifica, contudo, semelhante pacificidade doutrinária quanto à filiação socioafetiva, o que se agrava ante a percepção de que a mesma não se desenvolve através de previsíveis esquemas formais, mas em meio à incerteza típica das relações de fato.

Vale analisar brevemente o mecanismo da juridicização da filiação socioafetiva para que nos façamos mais claros.

A afetividade, de per si, foi por longo tempo considerada pelo direito de família como um mero aspecto meta-jurídico. Nunca se negou sua existência, nem a relevância de seu papel para a família. Negava-se, isto sim, a possibilidade de que viesse a produzir efeitos no mundo jurídico, estruturando-se a disciplina legal das relações de família sem levá-la em consideração.

A constitucionalização do direito civil, da qual é corolário a repersonalização das relações de família,veio cambiar esta situação, tornando a afetividade um princípio fundamental da filiação, fulcrado na Carta Magna (LÔBO, 2000, p. 1).

Na expressão de Fachin, passou a ser reconhecido pela jurisprudência o "valor jurídico do afeto", como elemento primordial para o estabelecimento da filiação (2003, p. 28).

O afeto torna-se, então, elemento componente do suporte fático da filiação socioafetiva. Isto significa dizer que temos filiação socioafetiva quando o estado fático trazido à apreciação conjuga afeto, convivência, tratamento recíproco paterno-filial e razoável duração. [19]

Esta relação de fato passa a ser reconhecida juridicamente, gestando um vínculo que produz todos os efeitos de qualquer outro vínculo de filiação, tendo em conta a previsão do art. 227, §6º, da Constituição Federal.

Sucede que, como relação fática, pode ocorrer sua interrupção, ou modificação, conforme ocorra a retirada ou a transmutação de um desses pressupostos. Isto significa questionar: desaparecendo posteriormente aqueles elementos do suporte fático, cessando a convivência, a afetividade, o tratamento paterno-filial, como comportar-se-á o direito de família? Construída uma relação de filiação socioafetiva, se a ela sobrevier a alteração das condições fáticas que lhe deram nascimento, existe possibilidade de sua desconstituição perante o direito?

Despiciendo alertar que se trata de problema da maior importância, posto que, da solução que lhe for emprestada, dependerá grande sorte de conseqüências jurídicas, como a desvinculação do indivíduo de seus pais e dos parentes colaterais, a possibilidade de mudança de seu nome, o parentesco gerado com os netos, que seriam desligados dos avós socioafetivos, a obrigação alimentar, a herança, e tantos outros.

Cumpre, portanto, analisar detidamente tal questão.

4.2.Enfrentando o problema: a impossibilidade de desconstituição e seu fundamento

Expusemos, no tópico anterior, um breve esquema de como se opera a juridicização da filiação socioafetiva, como situação essencialmente fática, despida de formalidades legalmente previstas, que se converte em relação jurídica de eficácia idêntica àquela das constituídas sob o pálio das estruturas formalizadas pelo ordenamento.

Cumpre observar, em seguida, qual a conseqüência deste reconhecimento jurídico da relação fática de paternidade fundada no afeto e no serviço. E temos que esta é a constituição plena da relação de filiação. Quando ocorre a concretização, no mundo dos fatos, dos elementos integrativos do suporte fático da paternidade socioafetiva, gerada está a relação complexa de filiação, com a vinculação do filho aos pais, a instalação dos respectivos poderes-deveres inerentes à autoridade parental e todos os demais efeitos típicos da parentalidade.

Naturalmente, integra tal fattispecie a duração razoável (ver tópico 3, supra). Mas, supondo consolidada a filiação socioafetiva, durante todo esse tempo tomado por bastante, que solução se dará se a convivência ou o afeto vêm depois a cessar, interrompendo a confluência dos elementos fáticos da filiação?

Óbvia é a resposta de que nos depararemos com o óbice de uma relação de filiação devidamente constituída. Mas esta circunstância não é concludente para se aferir a possibilidade ou não de vir a ocorrer a desconstituição pela cessação dos pressupostos fáticos. Basta lembrar a analogia com a união estável, situação fática desprovida de formalidades que também importa em definição de um status familiar e que se encerra se desaparecerem os seus requisitos.

A resposta parece estar nas reverberações que a constituição do estado de filiação exerce na personalidade do filho, formatando-a e dando-lhe uma identidade própria tutelada em sede de direitos de personalidade.

Neste sentido, identifica-se um direito a ter pai como ínsito à personalidade humana, inserindo-se neste contexto outros direitos da personalidade, como o direito à identidade, em sentido lato (incluindo-se o direito ao nome) e o direito à integridade psíquica (CHINELATO, 2004, p. 89), direito este que a que corresponde "o dever de todos de não causar dano à psique de outrem", visto que a identidade psíquica é "um bem em si" (MIRANDA, 2000, p. 54-55).

Contudo, subjaz à discussão em questão um problema específico da teoria dos direitos de personalidade, qual seja, a da sua tipificação ou generalização, refletindo a batalha doutrinária entre as correntes pluralista e monista.

Com efeito, os autores tradicionais costumam adotar uma dogmática dos direitos de personalidade baseada em figuras tipificadas, como o direito à vida, direito à integridade física, direito ao nome, etc.

Nesta posição, a referência clássica é Adriano de Cupis, para o qual a indeterminação da extensão dos direitos de personalidade importaria em descrédito de tal categoria de direitos (CUPIS, 2004, p. 39), e que estudou em sua obra os direitos de personalidade sob a perspectiva da tipificação.

Existe ainda uma posição intermediária, abraçada por Sílvio Beltrão (2005, p. 55-56), com apoio em José de Oliveira Ascenção, sustentando que, entre uma disciplina estruturada sob o fundamento da tipicidade estrita e um direito geral de personalidade, dever-se-ia optar por um sistema de numerus apertus, permitindo-se a adoção de novos direitos de personalidade, com apoio no princípio da dignidade humana. Esta concepção teria a vantagem de evitar a incerteza jurídica advinda de abraçar-se um direito geral, concretizado na aplicação prática (BELTRÃO, 2005, p. 55).

Pensamos diversamente, filiando-nos à corrente que pode ser denominada monista.

Deve-se considerar existente no ordenamento civil-constitucional uma verdadeira cláusula geral de tutela da personalidade humana, como seu valor máximo (TEPEDINO, 2004b, p. 50). Dela deflui que a personalidade deve ser tutelada em todas as circunstâncias em que estiver envolvida, sem rigidez de tipificação de direitos autônomos. [20]

A proteção da personalidade humana não pode ser fragmentada, devendo-se chegar, em cada caso concreto, à análise da tutela específica e eficaz que a irá proteger (DONEDA, 2002, p. 46).

Interessante, neste particular, a imagem que Tepedino toma de empréstimo a Giampiccolo, de que os direitos da personalidade tipificados nada mais são que componentes do feixe complexo de prerrogativas que compõe a íntegra cláusula geral de tutela da personalidade. Esta concepção permite uma analogia com as faculdades integrantes do domínio, que é em si a reunião indivisível de uti, frui, abutere, [21] assim como o direito de personalidade significa, exemplificativamente, uma conjunção do respeito à vida, à identidade, à integridade física e psíquica, e a tantos quantos forem os seus possíveis desdobramentos, sem prejuízo de sua unidade (TEPEDINO, 2003b, p. 46).

Como síntese, é esclaredora a lição de Rabindranath Capelo de Sousa (1995, p. 93):

Adentro do direito civil, retira-se da precedente exposição uma noção comparada do direito geral de personalidade como o direito de cada homem ao respeito e à promoção da globalidade dos elementos, potencialidades e expressões de sua personalidade humana bem como da unidade psico-físico-sócio-ambiental dessa mesma personalidade humana (v.g. da sua dignidade humana, da sua individualidade concreta e do seu poder de autodeterminação), com a conseqüente obrigação da parte dos demais sujeitos de se absterem de praticar ou deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender tais bens jurídicos da personalidade alheia, sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências adequadas a evitar a consumação da ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa cometida. (...) O que, embora insira no direito geral de personalidade elementos de indefinição e de incerteza preliminares próprios das cláusulas gerais, que nos sistemas jurisprudenciais demasiado positivo-formais lhe cerceiam muita da sua eficácia prática, todavia permite, em sistemas jurisprudenciais valorativos, conferir ao direito geral de personalidade maleabilidade e versatilidade de aplicação a situações novas e complexas.

Vale ainda efetuar um acréscimo ao exposto, que radica na necessidade de se concretizar a cláusula geral de proteção da personalidade com meios bem mais amplos que a mera reparação de dano, somada à tutela inibitória.

Em que pese ser o direito geral de personalidade [22] um direito absoluto (SOUSA, 1995, p. 616-617), no sentido de oponível erga omnes, é preciso refutar a sua aproximação com o modelo de direito absoluto que nos é mais familiar, que é o domínio, porquanto existe uma evidente insuficiência da tutela de tipo dominical para a proteção da pessoa humana (TEPEDINO, 2004b, p. 47).

O objetivo principal determinado pela cláusula geral de proteção da personalidade deve ser alcançar uma tutela ampla, que vá além das estruturas voltadas para a defesa de interesses patrimoniais e alcance uma função promocional (DONEDA, 2002, p. 58); a incidência normativa da tutela da personalidade se estende a todos os momentos da atividade econômica, de modo que a própria validade dos atos jurídicos deva estar condicionada ao desenvolvimento e realização da pessoa humana (TEPEDINO, 2004b, p. 54).

Abraçada uma teoria de direitos da personalidade nestes termos estruturada, temos que a mesma vem a fornecer, de forma concludente e satisfatória, os fundamentos necessários para se basear a impossibilidade de desconstituição posterior da filiação socioafetiva. [23]

Realmente, constituída a filiação socioafetiva, contrói-se a identidade do ser humano que é apontado como filho e nestes termos se desenvolve. Saber quem são seus pais, assim como conhecer a sua origem genética, são aspectos que moldam e formatam a personalidade do indivíduo.

De conseguinte, se a convivência, a afetividade ou ambas vêm a ser interrompidas por fatos posteriores, não há a cessação da relação de filiação socioafetiva, e por uma razão simples: a cláusula geral de tutela da personalidade humana proíbe tal dissolução, que significaria retirar ao indivíduo, por vontade de outrem (e por vezes visando um interesse meramente patrimonial) um dos mais relevantes fatores de construção de sua identidade própria e de definição de sua personalidade.

Constitui-se, pois, para todos os efeitos, uma relação plena de filiação, a qual, para adequada proteção da pessoa pelo ordenamento, não pode se sujeitar a incertezas ou a instabilidades emocionais dos sujeitos envolvidos.

Silmara Chinelato afirma, com propriedade, que "paternidade não é roupa que se veste e se desveste"; "ser pai não pode ser aceito como estado variável, segundo seu animus e/ou segundo o estágio ou estádio de relacionamento com a mãe" (2004, p. 66 e 63).

Tem-se, assim, uma situação existencial plenamente consolidada, cuja ruptura significaria evidente violação à personalidade dos indivíduos envolvidos. E se concebemos, para o direito geral de personalidade, uma tutela eminentemente promocional e ampla, destinada à garantia do adequado desenvolvimento do ser humano, não podemos compactuar apenas com conseqüências meramente reparatórias e sancionatórias: emerge, do próprio sistema de tutela da personalidade, uma vedação a tais situações de lesão, que conduz à invalidade absoluta de qualquer tentativa de desconstituição do estado de filiação.

Retoma-se para a filiação socioafetiva, desta forma, aquele que Carvalho Santos, estudando o reconhecimento de paternidade, chamava de princípio universal: "o estado de filho, uma vez adquirido, não se perde" (1988, p. 464).

4.3.Perspectivas concretas

Permita-se, por fim, o breve esboço de algumas situações práticas a que a construção teórica anteriormente exposta se aplique.

A primeira e mais óbvia seria a da adoção à brasileira, na qual não se poderia questionar o ato de registro efetuado anteriormente, quer sob argumento de cessação dos vínculos concretos, quer sob o argumento da diversidade de origem genética.

Não é possível, assim, que uma vez efetuada a filiação por adoção à brasileira, e desempenhado, no dia-a-dia, o exercício da paternidade afetiva, venha um ou ambos dos pais pleitear a nulidade do registro, inclusive por manifestação do secular princípio segundo o qual nemo potest venire contra factum proprium (neste sentido, LÔBO, 2003b, p. 151).

Da mesma forma ocorre quando aquele que não é o genitor registra o filho de sua mulher, sendo-lhe vedado o questionamento futuro de tal registro, se a ele se seguiu toda a construção de uma relação de socioafetividade.

Também não é viável que o próprio filho venha tentar desconstituir a relação socioafetiva instalada, nem tampouco os filhos biológicos do casal podem impugnar a filiação de seu irmão socioafetivo.

Terreno ainda mais fértil para possíveis exemplos é o da posse de estado, e nele se pode conceber, por exemplo, o afastamento entre os pais e o filho, que posteriormente resulta na tentativa de impugnação da filiação socioafetiva por parte de qualquer deles.

Não é a perda de contato, por tempo mais ou menos extenso, que possuirá o condão de destituir a relação já consolidada como sendo de filiação.

Outra possibilidade seria a ocorrência de divergências pessoais que conduzam a desentendimentos e à tentativa de ruptura do vínculo jurídico de filiação.

Se um dos pais briga com o filho, seja por qual motivo for, não cabe a desconstituição da filiação, embora não se impeça, uma vez presentes as causas legais, uma eventual deserdação, ou a perda do poder familiar.

Não custa lembrar que não há disponibilidade no que toca às questões de estado, não podendo haver acordo entre pais e filhos quanto a uma possível desconsideração da filiação. A vontade não tem o poder de modelar livremente as relações de família, regidas que são por normas de ordem pública.

Ressalve-se, porém, a possibilidade de vir o filho socioafetivo a ser posteriormente adotado por um terceiro, desde que atendidos os requisitos legais. Apenas nesta hipótese será viável a desconstituição da filiação anteriormente existente, mediante sua substituição por uma outra relação de parentalidade juridicamente lícita, estabelecida através da adoção, o que aponta para uma exceção à regra de que a filiação socioafetiva é perpétua, sem entretanto infirmá-la.

Sobre o autor
Roberto Paulino de Albuquerque Júnior

Doutor e mestre em direito pela Faculdade de Direito do Recife - Universidade Federal de Pernambuco. Professor adjunto de direito civil da Faculdade de Direito do Recife. Professor de direito civil da Universidade Católica de Pernambuco e da Faculdade Marista do Recife. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. A filiação socioafetiva no direito brasileiro e a impossibilidade de sua desconstituição posterior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1547, 26 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10456. Acesso em: 20 nov. 2024.

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Originalmente publicado: "Revista Brasileira de Direito de Família, a. 8, n. 39, dez./jan. 2007."

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