1. A ação de embargos do executado teve seu novo perfil traçado pela Lei nº 11.382/2006, apresentando como características: i) o prazo para ajuizamento, ampliado de 10 (dez) para 15 (quinze) dias; ii) o termo a quo do prazo, antes contado a partir da juntada do mandado de penhora cumprido, e hoje contado já a partir da juntada do mandado de citação do executado (CPC, art. 738); iii) a não exigência de garantia do juízo pela penhora, depósito ou caução para a propositura da ação incidental (CPC, art. 736), possibilitando assim que o executado se defenda sem a necessidade de constranger seu patrimônio.
A Lei nº 11.382/2006, contudo, foi omissa quanto à aplicabilidade das novas regras aos processos de execução atualmente em curso. Essa omissão do legislador tem sido motivo para muitos questionamentos. Uma questão de direito intertemporal de grande relevância está na forma de contagem do prazo para o oferecimento dos embargos à execução por quantia certa contra devedor solvente, isso porque, pela lei revogada, o prazo para embargar iniciava após a intimação da penhora e, segundo a lei em vigor, os embargos já devem ser oferecidos após a citação do executado.
Em muitos processos, no exato momento da entrada em vigor da Lei nº 11.382/2006, a citação do executado já estava perfeita e acabada, mas a penhora (ato a partir de cuja intimação fluía, segundo a lei revogada, o prazo para embargar), por várias razões, ainda não chegara a ser formalizada.
2. Especificamente para essas situações – que não são poucas (basta imaginar a quantidade de execuções suspensas por falta de bens penhoráveis do devedor) -, surge a indagação: como deveria ser contado o prazo para o oferecimento dos embargos à execução?
3. De antemão, parece-nos que a solução de considerar precluso o direito a embargar nos casos em que entre a juntada do mandado de citação do devedor e o início da vigência da Lei nº 11.382/2006 já se passaram mais de 15 (quinze) dias deve ser afastada; do contrário, estar-se-ia admitindo aplicação retroativa da lei processual.
Com efeito, imagine-se que em uma execução o mandado de citação do devedor haja sido juntado aos autos há, v.g., um 1 (um) ano, permanecendo a execução suspensa, até o início da vigência da Lei nº 11.382/2006 (janeiro de 2007), for falta de bens (CPC, art. 791, III). Para se considerar precluso o direito de embargar em tal hipótese, seria necessário aplicar a lei nova (segundo a qual o prazo dos embargos flui com a juntada do mandado de citação) a um ato jurídico processual pretérito já consumado sob a égide da lei revogada (citação do executado ocorrida há um ano), o que se revelaria contrário ao disposto no art. 5º, XXXVI da Constituição Federal.
4. Para solucionar esse problema, Athos Gusmão Carneiro defende que se deva aplicar a Lei nº 11.382/2006 apenas aos processos de execução ajuizados após o advento dessa lei; os feitos pendentes seriam disciplinados pela lei revogada: "Se a ação foi ajuizada anteriormente à Lei nº 11.382, a citação e os atos subseqüentes seguem conforme a sistemática pretérita, mesmo porque o prazo para embargos, sempre com efeito suspensivo (art. 739, parágrafo 1º da lei antiga), contava-se, então, da intimação da penhora (art. 738, I da lei antiga) e não da juntada aos autos do mandado de citação" [01].
5. Já outros autores, a exemplo de Humberto Theodoro Jr., vêm defendendo que, se no início da vigência da Lei nº 11.382/2006 a citação do devedor já estiver consumada segundo a lei revogada, o executado teria uma "expectativa legal de somente embargar depois da intimação da penhora" [02].
6. Não há nenhum preceito específico de direito intertemporal na Lei nº 11.382/2006 disciplinando a aplicabilidade da lei nova aos processos executivos em andamento com citação efetivada e sem penhora realizada. A solução do problema passa, portanto, primeiramente, pela análise da norma do art. 5º, XXXI da Constituição Federal [03]; dela é possível inferir que a lei nova incide no presente e no futuro e poderá (se contiver alguma previsão nesse sentido) retroagir, devendo apenas respeitar os direitos adquiridos, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Tratando-se, porém, de lei em matéria de Direito Processual, que veicula alteração de disposições do Código de Processo Civil, sua incidência se de dá imediato mesmo sobre os processos pendentes à data do início de sua vigência, tal como estabelece o art. 1.211 do CPC:
"Art. 1.211. Este Código regerá o processo civil em todo o território brasileiro. Ao entrar em vigor, suas disposições aplicar-se-ão desde logo aos processos pendentes."
O nosso ordenamento jurídico, em matéria de direito intertemporal, adotou o chamado sistema de isolamento dos atos processuais [04]. Por isso, no direito brasileiro, a lei nova incide e se aplica aos processos pendentes, respeitados, entretanto, os atos jurídicos processuais já praticados e seus respectivos efeitos jurídicos.
Do cotejo da norma extraída do enunciado do art. 5º, XXXVI da Constituição Federal com aquela veiculada no texto do art. 1.211 do CPC, pode-se observar que não há razão para se recusar a aplicação da Lei nº 11.382/2006 aos processos executivos já ajuizados e em curso no átimo de sua vigência. Se a lei processual nova rege os feitos pendentes – com a ressalva apenas dos atos jurídicos processuais perfeitos, dos direitos subjetivos processuais já irradiados e da coisa julgada -, pode-se concluir que o novo regime jurídico da ação de embargos à execução (prazo de 15 dias, dispensa de garantia do juízo, ausência de efeito suspensivo automático etc.) poderá ser aplicado mesmo quando o executado já haja sido citado nos termos da lei revogada. Assim, a solução de deixar de aplicar a Lei nº 11.382/2006 às execuções já ajuizadas parece estar em desacordo com as normas de direito intertemporal aplicáveis ao processo civil brasileiro (CPC, art. 1.211).
A orientação proposta por Theodoro Jr. possui a virtude de não recusar a aplicação da Lei nº 11.382/2006 aos feitos pendentes, nada obstante defenda que o prazo para a propositura de embargos segue a disciplina da lei anterior (10 dias após a intimação da penhora); nesse particular, pensamos que o assunto merece mais reflexão.
7. Para se saber o limite da eficácia no tempo da lei processual nova quanto aos processos em andamento – e assim desvendar o problema de como seria contado o prazo para ajuizamento de embargos nos casos de execução em curso, sem penhora, mas com devedor já citado -, é necessário, primeiramente, decompor analiticamente os atos jurídicos processuais que integram o procedimento.
Segundo a sistemática anterior, prevista no texto revogado do art. 737, I do CPC [05], a pretensão ao oferecimento de embargos (na execução das obrigações de pagamento) somente surgia para executado a partir do momento da realização da penhora, que funcionava como pressuposto processual da ação incidental, cuja ausência redundaria no juízo de inadmissibilidade do processo [06]. O devedor era citado na execução apenas para pagar o débito, ou indicar os bens a serem penhorados (CPC, art. 652, no texto revogado), não lhe sendo lícito, ainda, naquele instante, defender-se por meio de embargos. Antes da penhora, portanto, não se havia como falar em direito a embargar.
Por isso, no início da vigência da Lei nº 11.382/2006, não se podia falar em direito a embargar se a penhora até então não houvesse sido formalizada. Logo, a incidência da lei nova de imediato não está ofendendo a nenhum direito adquirido, mesmo porque o direito ao oferecimento de embargos ainda não havia surgido para o executado antes da penhora [07]. Não se pode cogitar de ofensa a direito adquirido, ou de violação a ato jurídico perfeito, pelo fato da lei nova modificar a contagem de um prazo que, segundo a sistemática da lei velha, sequer tinha iniciado.
8. Note-se também que a Lei nº 11.382/2006, apesar de eliminar o requisito da segurança do juízo para o oferecimento dos embargos, não afastou a possibilidade de que o executado, mesmo sem garantir o juízo, viesse a oferecer seus embargos nos termos das regras novas.
Vale dizer, a lei nova, incidindo de imediato nos feitos pendentes, não estará violando nenhum direito adquirido, nem qualquer ato jurídico perfeito; primeiramente, porque ainda não teria havido a aquisição do direito a embargar; e, em segundo lugar, porque a Lei nº 11.382/06 não afastou de modo expresso a possibilidade de que o executado (mesmo quando já citado na execução) viesse a oferecer embargos seguindo a lei agora em vigor.
Também não se deve transplantar a resolução de uma questão exclusivamente jurídica para o campo metajurídido da simples "expectativa" do executado em embargar. O direito expectativo [08] (também chamado "direito eventual" no art. 130 do Código Civil), como categoria jurídica, não se confunde com a chamada "expectativa de direito", que nada mais é um estado psicológico de alguém que simplesmente aguarda o possível surgimento do direito subjetivo pretendido [09]. A simples expectativa do executado não pode ser assimilada ao direito a embargar.
Na sistemática em vigor, o executado, na execução de título extrajudicial das obrigações de pagamento, é citado para, em três dias, pagar o débito (CPC, art. 652), devendo, no mesmo ato, ser intimado sobre a possibilidade de oferecer embargos no prazo de 15 (quinze) dias (CPC, arts. 225, VI e 738).
Aplicando-se a regra de direito intertemporal consagradora do sistema de isolamento dos atos processuais à hipótese de que estamos a cuidar (execução pendente ao advento da Lei nº 11.382/2006, com citação realizada, mas sem penhora), temos: a) ato processual de citação já consumado, portanto inatingível pela lei nova; b) ato processual de intimação para oferecimento de embargos em 15 dias, previsto na lei nova, não praticado sob a égide da lei anterior, e ainda susceptível de ser realizado.
Portanto, a aplicação imediata da Lei nº 11.382/2006 aos feitos em curso deve preservar o ato jurídico processual já consumado (citação) e, ao mesmo tempo, possibilitar que se pratique o ato processual previsto na lei nova [10].
O fato de haver o mandado de citação sido juntado aos autos antes da lei nova não quer significar, por óbvio, que o prazo para embargar iniciou naquele momento (ocasião em que a Lei nº 11.382/2006 sequer existia no mundo jurídico), nem muito menos que, agora, o direito a embargar já estaria automaticamente eliminado.
9. A solução mais consentânea com o sistema de isolamento dos atos processuais, assim, parece-nos, ser a que admite fazer-se uma intimação do executado para, segundo a lei nova, oferecer embargos no prazo de 15 (quinze) dias de acordo com as regras atuais [11]. Com isso, preservam-se os atos processuais já praticados sob a égide da lei revogada e se possibilita de imediato a prática de atos previstos na lei ora em vigor, deixando incólume o direito ao oferecimento de embargos pela parte executada.
Já a solução de aplicar pura e simplesmente a lei revogada e garantir ao executado o direito ao oferecimento de embargos conforme as normas da lei velha, ao que parece, parte de uma premissa a ser afastada: a de que a Lei nº 11.382/2006 estaria por vedar a possibilidade de oferecimento de embargos com base nas regras trazidas pela lei nova.
10. Não se pode perder de vista que a solução de conferir verdadeira ultra-atividade à lei revogada se choca com as regras de direito intertemporal aplicáveis ao processo, pois a) nega a incidência de normas processuais que, em verdade, estão em plena vigência e b) admite a incidência, ainda por longos períodos, de lei processual já retirada do ordenamento jurídico, e o que é pior, sobre fatos futuros, sendo certo que inúmeros processos ficariam por vários anos sendo regulados por uma lei revogada (basta imaginar que, aplicando esse raciocínio, se uma penhora durar, v.g., 10 anos para ser feita, teríamos a aplicação da lei revogada a uma ação de embargos que estaria sendo proposta no prazo de 10 após a sua revogação).
Por outro lado, determinando o juiz que se faça a intimação do executado para oferecer os embargos à execução no prazo de quinze dias e seguindo a sistemática posta na Lei nº 11.382/2006, estar-se-ão respeitando os atos processuais já consumados e possibilitando que o executado embargue a execução com base na lei em vigor, que, repita-se, não excluiu (e se assim o fizesse seria inconstitucional nessa parte) a possibilidade de ajuizamento dos embargos.
Notas
01 CARNEIRO, Athos Gusmão. As Novas Leis de Reforma da Execução – Algumas Questões Polêmicas, in Revista Dialética de Direito Processual, nº 52. São Paulo: Dialética, 2007, p. 46.
02 THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil, Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 133.
03 "Art. 5º. [...]
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;"
04 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, Vol. 1. São Paulo: Saraiva: 2007, p. 32; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 98; AMARAL, Guilherme Rizzo. A Nova Execução (Leis 11.232/05 e 11.382/06) e o Direito Intertemporal. Disponível em: www.tex.pro.br. Acesso em: 23 jul 2007, dentre outros.
05 "Art. 737. Não são admissíveis embargos do devedor antes de seguro o juízo:
I - pela penhora, na execução por quantia certa;"
06 Sobre o conceito de juízo de inadmissibilidade do processo, consultar: DIDIER JR., Fredie. Pressupostos Processuais e Condições da Ação – o juízo de admissibilidade do processo, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 22-50.
07 Nos processos de execução em que já havia sido realizada a penhora no momento do início da vigência da Lei nº 11.382/2006, o direito a embargar já havia sido adquirido e o prazo estava em pleno curso. Nessas situações parece-nos correto falar em direito adquirido e, portanto, em aplicabilidade da lei revogada.
08 Sobre o conceito de direito expectativo, conferir: MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, V. Rio de Janeiro: Borsói, 1955, p. 285 et passim.
09 "A técnica e a terminologia jurídicas tiveram de distinguir a expectativa, que é simples atitude no mundo fático, e o direito expectativo, que é como o direito ao direito que vai vir." (MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, V. São Paulo: RT, 1968, p. 70).
10 Para Fernando Sacco Neto et al. (SACCO NEET, Fernando et. al. Nova Execução de Título Extrajudicial. São Paulo: Método, 2007, p. 243), a solução correta seria aguardar a formalização da penhora e, em seguida, intimar o executado para embargar pelo prazo da lei nova (15 dias). Trata-se de solução interessante. Todavia, entendemos ser desnecessário aguardar a formalização da penhora, já que esse requisito estava previsto em norma que hoje não mais tem vigência e também porque essa solução termina levar a um hibridismo com a aplicação parcial da lei nova (no tocante ao prazo) e da lei velha (no tocante à necessidade de garantia do juízo para oferecimento de embargos).
11 Nesse sentido, também é o entendimento de Fredie Didier Jr. (DIDIER JR., Fredie. Lei Federal n. 11.382/2006. Questão de direito intertemporal. Aplicação do art. 738 do CPC aos processos em curso, em que o executado já tenha sido citado e ainda não tenha sido realizada a penhora. Disponível em: www.frediedidier.com.br/main/noticias/detalhe.jsp?CId=126. Acesso em 23 jul 2007.