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Livre apreciação da prova

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Agenda 28/09/2007 às 00:00

A confiança depositada no juiz foi aumentada, com poder até para julgar contra a lei. A distinção entre verdade formal e verdade material foi abandonada, passando-se agora ao conceito de verdade e verossimilhança.

Sumário: 1. Introdução; 2. Relações entre a verdade e as provas - 2.1 Breve histórico da atuação do juiz no processo: 2.1.1 Sistemas de avaliação das provas - 2.2 A busca da verdade - 2.3 Verdade material e verdade formal - 2.4 Verdade e Verossimilhança - 2.5 A "construção" da verdade, no processo, pelas partes; 3. A participação do juiz e sua convicção frente à análise das provas: 3.1 A tese sueca sobre o convencimento judicial - 3.2 Gerhard Walter e a técnica da redução do módulo da prova; 4. Demais elementos utilizados pelo juiz na apreciação das provas: 4.1 O juiz, a prova indiciaria e as presunções: 4.1.1 Presunções judiciais - 4.1.2 Presunções Legais: 4.1.2.1 Presunções legais relativas - 4.1.2.2 Presunções legais absolutas - 4.1.3 Conflito entre presunções; 5. O senso comum; 6. As máximas da experiência; 7. A motivação. Controle da apreciação das provas realizada pelo juiz; 8. Conclusão; 9. Bibliografia.


1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda algumas questões enfrentadas pelo juiz no que tange à apreciação das provas. Primeiramente, discorre-se sobre os diversos sistemas de valoração das provas, abordando, em seguida, o aumento da confiança depositada na figura do juiz, passando-se pelas relações entre as provas e a verdade, pela superada distinção entre verdade formal e verdade material, chegando-se à noção de verdade e verossimilhança. Aborda-se, também, neste capítulo, a idéia da construção da verdade pelas partes dentro do processo.

Passa-se, num segundo momento, a se analisar a postura do juiz frente às provas trazidas pelas partes, com ênfase no modelo utilizado na Suécia (com reflexos na Alemanha). A seguir, trata-se da chamada redução do módulo da prova - técnica desenvolvida pelo processualista alemão Gerhard Walter.

Depois disso é analisada a postura do juiz frente à prova indiciária e às presunções, judiciais e legais - absolutas e relativas -, bem como frente a um possível conflito entre presunções. Analisa-se também a noção de senso comum e da utilização das chamadas máximas da experiência pelo juiz. Discorre-se, ainda, sobre a necessária motivação de suas decisões como forma de se estabelecer um controle sobre a apreciação por ele feita, das provas.


2. RELAÇÕES ENTRE A VERDADE E AS PROVAS

2.1 Breve histórico da atuação do juiz no processo

O juiz, à época do direito liberal, não possuía qualquer poder de imperium. Isso aconteceu principalmente nos países em que o pensamento de Montesquieu foi difundido [01].

Nesses países, chegou-se a proibir o juiz de interpretar a lei. Ao juiz cabia tão somente ser a boca da lei (bouche de la loi), ou seja, o julgamento deveria ser um texto exato da lei. Resta mais que evidente que nessa época o juiz não podia julgar com base em verossimilhança, tutelando um direito provável. [02] O juiz deveria julgar tão somente após ter encontrado a "verdade", o que, nas palavras de LUIZ GUILHERME MARINONI, "encobria o fato de que o juiz pode errar e, até mesmo, a obviedade de que o juiz possui valores pessoais e uma vontade inconsciente que, na maioria das vezes, ele próprio não consegue desvendar". [03]

Felizmente, abriram-se os olhos para o fato de que o juiz não pode ser moldado pelo Poder Legislativo. E é neste sentido que OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA, citando LUÍS RICASÉNS SICHES, diz "não ser tarefa do legislador determinar o modo como a lei deverá ser interpretada, que, no fundo, é o que se pretende, por exemplo, com as súmulas vinculantes, constituídas em normas que, ao fixarem o sentido da lei, acabam engessando a jurisprudência: ‘O legislador poderá ordenar, através de suas normas gerais, a conduta que considere justa, conveniente e oportuna. Até aí pode estender-se seu poder. Entretanto, essencial e necessariamente está fora do poder do legislador decidir e regular aquilo que jamais poderá se incluir no conceito de legislação: regular o método de interpretação das normas gerais que ele produz. As vezes, porém, os legisladores, embriagados de petulância, sonham com o impossível". [04]

Percebe-se, com o passar do tempo, que o Estado passa a estar mais ativo frente à sociedade, o que, [05] conseqüentemente, reflete-se na ampliação dos poderes de atuação do juiz no processo. [06] LUIZ GUILHERME MARINONI entende que nessa nova perspectiva o juiz deve zelar por um processo justo, desvinculando-se da obsessão pelo formalismo, desapegado às peculiaridades do caso concreto. [07]

E tão forte era o apego ao formalismo que no período da legis actiones – que vai da fundação de Roma até o ano de 149 a.C. –, conforme ensina ALCIDES MUNHOZ DA CUNHA, que a ausência ou até mesmo o uso equivocado de uma simples palavra poderia ensejar o julgamento de improcedência da demanda. Nas palavras do próprio Professor ALCIDES MUNHOZ DA CUNHA, "quando se inicia o estudo da história do direito processual civil nos cursos de graduação, mais precisamente quando se está investigando as suas origens o direito romano primitivo, no período da legis actiones, que vai da fundação de Roma até o ano de 149 a.C., aprende-se que nessa fase as partes somente podiam manipular as ações da lei que eram em número de cinco; ‘que o procedimento era excessivamente solene e obedecia a um ritual em que se conjugavam palavras e gestos indispensáveis; que bastava, às vezes, o equívoco de uma palavra ou gesto para que o litigante perdesse a demanda’". [08]

Sustenta, ainda LUIZ GUILHERME MARINONI que o juiz não só pode como deve esforçar-se em todas as situações para se aproximar ao máximo da "verdade" dos fatos, devendo ter uma participação ativa no processo. [09] Nas palavras do Professor da Universidade Federal do Paraná, "embora o juiz não deva limitar-se a assistir inerte à produção das provas, pois, em princípio, pode e deve assumir a iniciativa destas, na maioria dos casos, ou seja, nos casos de direitos disponíveis, pode satisfazer-se com a verdade formal, limitando-se a acolher o que as partes levaram ao processo e eventualmente rejeitar a demanda ou a defesa por falta de elementos probatórios. A atuação na instrução da causa, contudo, não deve ser associada à natureza do direito material em litígio. A instrução da causa é aspecto inerente ao processo, instrumento através do qual é realizado o poder do Estado, e onde os seus interesses predominam independentemente de ser disponível ou não a relação jurídica de direito material. Entender que no caso de direitos disponíveis o juiz pode se limitar a acolher o que as partes levaram ao processo é o mesmo que concluir que o Estado não está muito preocupado com o que se passa com os direitos disponíveis, ou que o processo que trata de direitos disponíveis não é o mesmo processo que é instrumento público destinado a cumprir os fins do Estado".

E é nesse momento que fica mais evidente a importância do princípio da livre apreciação das provas. Para ADOLF SCHÖNKE, o princípio da livre apreciação das provas é "aquele segundo o qual o Juiz é livre na valoração dos fatos que lhe foram apresentados". [10] Esse princípio mostra-se como a materialização da confiança depositada no juiz, que por óbvio não pode mais ser visto como um inimigo da sociedade.

FRIEDRICH STEIN afirma que "la libre valoración de la prueba ha desligado al juez de las ataduras que antiguamente le impedían poner todo el tesoro de su experiencia de la vida al servicio de la averiguación de la verdad". [11]

Entretanto, a apreciação das provas, mesmo sendo livre, será controlada por meio da motivação das decisões [12]. Nesse sentido é a disposição trazida pelo legislador na redação do artigo 131 do Código de Processo Civil brasileiro, no qual está expresso que "o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que formaram o convencimento". [13] E neste mesmo sentido se manifesta CELSO AGRÍCOLA BARBI, o qual escreve, ao tratar do artigo 131 do Código de Processo Civil, que "este dispositivo consagra o princípio da livre convicção e contém algumas prescrições que são necessárias para lhe fixar o alcance, ao dizer que o juiz atenderá aos fatos e às circunstâncias constantes dos autos. Com isso, deixa claro que a liberdade concedida ao juiz não é absoluta, no sentido de que ele possa decidir com base em provas não constantes dos autos ou fundar sua convicção em informações que tenha recebido em caráter particular. O juiz é livre para se convencer acerca dos fatos, mas os elementos para essa convicção são apenas os existentes nos autos. Tem aplicação correta o brocardo quod non est in actis non est in mundo; os autos são o mundo do juiz na apreciação dos fatos, salvo, é claro, alguma exceção, como os fatos notórios que independem de prova. (...) A liberdade concedida ao juiz na apreciação das provas não significa arbítrio. Para evitar que este surja, a parte final do artigo impõe ao juiz indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento. Eles não constituem os fundamentos de fato a que se refere o art. 458, item II, mas sim a explicação de como o juiz se convenceu da existência ou inexistência dos fatos que se baseia a sentença". [14]

Para ANTÔNIO DALL’AGNOL JÚNIOR, o artigo 131 do Código de Processo Civil "evidencia a adoção, pelo sistema positivo pátrio, do princípio da persuasão racional em tema de avaliação da prova pelo juiz, com o que, posto reconhecendo liberdade ao julgador, como os ordenamentos jurídicos modernos em geral, impõe-lhe limites no concernente ao material a ser examinado e a necessidade de expressão das razões de seu conhecimento". [15]

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2.1.1 Sistemas de avaliação das provas

A doutrina, ao tratar dos diversos sistemas de valoração da prova, costuma dividi-lo em três sistemas, qual sejam, i) sistema da prova legal; ii) sistema do livre convencimento e iii) sistema da persuasão racional.

A abordagem destes diferentes sistemas mostra-se interessante, pois revelam, segundo OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA, "a maior ou menor confiança que a sociedade tenha em seus juízes, assim como a credibilidade da instituição do Poder Judiciário, no preparo cultural de seus magistrados e no maior ou menor rigor de sua formação profissional". [16]

O sistema da prova legal foi o que por primeiro esteve presente no ordenamento jurídico brasileiro, em especial nos Códigos Estaduais, por influência do direito germânico e do processo comum europeu, aos quais se filiaram, além das ordenações de Portugal, os já citados Códigos Estaduais. [17]

Este sistema de valoração da prova vigorava também no direito canônico. É usado, em geral, nos regimes de pouca liberdade. PONTES DE MIRANDA, após explanar que neste sistema "a lei fixava regra sobre quais as provas admissíveis, sobre o valor probante de cada meio probatório, sobre a quantidade mesma de força probatória", levantou os pontos positivos e negativos deste sistema, sintetizando-os dessa forma: "A vantagem, que se encarecia, era a de saber a parte, ao ter de litigar, com que provas contava e como calcular o valor delas em relação ao adversário. Por outro lado, o juiz, feito arrolador de valores de prova, lavava as mãos como Pilatos. Cavava-se assim, muitas vezes, a separação entre a convicção do juiz e o que decidia. Ainda mais: a vida, em sua exuberância e transformação, criava dificuldades insuperáveis, como a arrebentar esses grilhões medievalescos". [18]

Nas palavra de OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA, neste sistema "cada prova tem um valor inalterável e constante, precisamente estabelecido pela lei, não sendo lícito ao juiz valorar cada prova segundo critérios pessoais e subjetivos de convencimento, de modo diverso daquele que tenha sido determinado pela lei". [19]

Por óbvio, este sistema não poderia continuar vigorando plenamente [20] no direito moderno, pois "faz do juiz um mero averiguador, retirando-lhe, por completo, o poder de avaliação, pois esta é prévia e abstratamente estabelecida pela lei". [21] Ou ainda, como o considera OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA, "torna-se um órgão passivo, cuja única função em matéria probatória resume-se em constatar a ocorrência da prova e reconhecê-la como produzida, sem que lhe seja possível avaliá-la segundo critérios racionais capazes de formarem seu próprio convencimento". [22] Em síntese, este sistema engessava a atividade intelectual do juiz.

O sistema do livre convencimento, por sua vez, é o oposto do sistema anterior. Neste sistema o juiz é livre para formar sua convicção acerca dos fatos da demanda, baseando-se não apenas nos depoimentos e testemunhos, mas também nas suas impressões pessoais, como por exemplo, as extraídas do comportamento das partes. [23]

Nos ensinamentos de OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA, "segundo este princípio, não deverá haver qualquer limitação quanto aos meios de prova de que o juiz se possa valer, nem restrições quanto à origem ou qualidade de certas provas". [24]

Resta mais que evidente que este sistema abre margem para o arbítrio, vez que não se limita o poder do juiz, podendo ele até mesmo valer-se de seu conhecimento privado, dispensando-o da imposição constitucional da motivação. [25] Demais disso, tanto PONTES DE MIRANDA, quanto CELSO AGRÍCOLA BARBI, apontam sérios inconvenientes da utilização do sistema da livre apreciação da prova, que se denominará aqui de "pura". PONTES DE MIRANDA ensina que "o inconveniente do princípio da livre apreciação, sem limites claros, é o de aumentar enormemente a responsabilidade do juiz, ao mesmo tempo que abre a porta às impressões pessoais, às suas convicções de classe ou políticas, às suas tendências de clã ou de clube". [26] CELSO AGRICOLA BARBI, por sua vez, dispõe que neste sistema o juiz "aprecia livremente as provas, sem qualquer limitação legal, e lhes dá o valor que entender adequado, podendo, assim, considerar o depoimento de uma testemunha, como capaz de suplantar o valor de uma escritura pública, ou admiti-lo como bastante para provar determinada obrigação, independente do valor econômico desta". [27] Entende-se que este sistema exagera na liberdade conferida ao magistrado.

Por serem ambos os sistemas anteriores eivados de problemas que se pode entender de gravidade considerável, os modernos ordenamentos jurídicos adotam o sistema da persuasão racional, que em síntese, é aquele que reconhece liberdade ao juiz, estabelecendo, contudo, limitação no que concerne ao material a ser examinado e, ainda, impondo-lhe o dever de motivação. [28]

No sistema da persuasão racional, o juiz é livre para apreciar a prova, sendo-lhe imposto o uso das regras lógicas e das máximas da experiência comuns, sempre fundamentando seus posicionamentos. Mas, neste sistema a análise do juiz é limitada tão somente às provas produzidas nos autos, quer as trazidas pelas partes, quer as determinadas ex officio. Este sistema, nas palavras de OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA, é o que está em conformidade com a cultura ocidental moderna, que exige "magistrados altamente capazes e moralmente qualificados". [29]

2.2 A busca da verdade

A busca da verdade sempre foi um dos mais, senão o mais, importante princípio do processo civil.

Entretanto, o que se pode entender por verdade? Vislumbra-se que a verdade tratada juridicamente difere da idéia que povoa o senso comum. De fato, ao analisar-se o conceito de verdade comumente empregado no cotidiano, percebe-se que ela é associada a algo que seja conforme o real, exato, franco e sincero. [30]

Nos dizeres de MITTERMAIER [31] "la verdad es la concordancia entre un hecho real y la idea que de él se forma el entendimiento." Segue sustentando que "la verdad histórica, objeto de nuestro estudios, es aquella que procuramos obtener siempre que queremos asegurarnos de la realidad de ciertos acontecimientos, de ciertos hechos realizados en el tiempo y en el espacio".

É evidente que o objetivo do processo sempre foi a descoberta da verdade [32]. Através do processo o juiz "descobre" como se passaram os fatos e aplica ao caso concreto a norma abstratamente prescrita.

De tal importância é o tema da busca da verdade – como reconstrução dos fatos pretéritos – no processo (de conhecimento), que a maioria de seus procedimentos volta-se para esse fim. Com efeito, importantes são as considerações trazidas por LUIZ GUILHERME MARINONI e SÉRGIO CRUZ ARENHART. Observam estes professores da Universidade Federal do Paraná que, apesar da relevância do tema da prova e, conseqüentemente, dos fatos, há um certo desprezo à matéria. Citando WILLIAN TWINING [33], remontam a um debate, no qual certo político dizia que "certa vez foi sugerido que 90 por cento dos advogados gastam 90 por cento de seu tempo lidando com fatos e que isso deveria ser refletido em seus treinamentos. Se 81 por cento do tempo dos advogados é gasto em uma coisa, daí decorre que 81 por cento da educação jurídica deveria ser devotada a isso. Existe alguns cursos isolados sobre a descoberta dos fatos (fact-finding) e congêneres, mas nenhum instituto tem tido um programa completo em que a principal ênfase seja em fatos. Eu proponho que nós centremos nosso currículo neste principio e que nós chamemos nosso grau um bacharel de fatos".

Interpretando o que escreveram MICHELI e TARUFFO – que no processo "a verdade não é um fim por si mesma, mas é necessário buscá-la enquanto condição para que haja uma justiça ‘mais justa’" -, SÉRGIO CRUZ ARENHART [34] diz que a busca da verdade é condição para um aprimoramento qualitativo da justiça ofertada pelo Estado.

Tão importante é a idéia de busca da verdade material no processo civil que diversos de seus institutos, como já afirmado acima, estão a ela ligados. Citamos como exemplo principal a prova. Para LENT, sua função é convencer o juiz da verdade ou falsidade de uma afirmação. [35]

Nos dizeres de SÉRGIO CRUZ ARENHART, "a prova em direito processual, então, assume a condição de um meio retórico, regulado pela lei, e dirigido a, dentro dos parâmetros fixados pelo Direito e de critérios racionais, convencer o Estado-Juiz da validade das proposições, objeto de impugnação, feitas no processo". [36]

Além disso, a busca da verdade substancial ou material, além da participação das partes e da produção da prova, legitima as decisões judiciais [37]. Sem dúvida seria difícil convencer os consumidores da atividade jurisdicional que ela é legítima se, mesmo a norma o sendo, o fato ao qual será aplicada não resta seguramente esclarecido.

O mesmo SÉRGIO CRUZ ARENHART, em recente artigo publicado na Argentina, expõe de maneira bastante clara os meios legitimadores da decisão judicial. Para ele a decisão judicial é legitimada pelo procedimento que a precede. São a forma e as garantias que permeiam o procedimento que permitem que a decisão daí emanada seja legítima e represente, ipso facto, a manifestação de um Estado de Direito. E esta legitimação se dá na proporção direta do grau de participação que se autoriza aos sujeitos envolvidos no conflito para a formação do convencimento judicial". [38]

Esta questão – da elucidação dos fatos - apresenta-se em maior intensidade frente ao processo penal, no qual o juiz absolverá o réu, como dispõe o artigo 386, VI do Código de Processo Penal, quando reconhecer a insuficiência de provas para condená-lo.

No processo civil, por sua vez, também se encontram disposições neste sentido. Quando o juiz perceber que aquele ao qual incumbia o ônus da prova dos fatos alegados não cumpriu satisfatoriamente sua missão, poderá abster-se de julgar o mérito da causa. Verifique-se, v.g., a Lei da Ação Civil Pública (7.347/1985) [39], a Lei da Ação Popular (4.717/1965) [40]e o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) [41].

Nesses diplomas estabelece-se a modalidade de coisa julgada chamada de coisa julgada secundum eventum litis que, no caso de ser a ação julgada improcedente por insuficiência de provas, obsta a incidência do manto da coisa julgada, podendo a demanda ser proposta novamente, desde que instruída por novas provas. [42]

2.3 Verdade material e verdade formal.

Costumava-se distinguir as "verdades" que o processo civil e penal buscavam. Era corrente a tese de que ao processo penal interessava a verdade material, enquanto o processo civil contentava-se com a verdade formal.

GIAN ANTONIO MICHELI e MICHELE TARUFFO analisando relatórios de diferentes países sobre seus sistemas probatórios confirmaram o acima dito ao mencionarem que "em geral, sublinha-se o fato de o processo civil dever tender ao estabelecimento da verdade substancial ou objetiva". [43]

Segundo SÉRGIO CRUZ ARENHART, o conceito de verdade formal assemelha-se com o de "ficção de verdade". Ao juiz cabe, terminada a fase instrutória do processo, remontar historicamente os fatos e considerar tal resultado como "verdadeiro", mesmo que não lho pareça. [44]

Tal tese – de que o processo civil e penal buscam verdades diferentes -, considerada absurda por SÉRGIO CRUZ ARENHART, ainda vigora dentre renomados doutrinadores nacionais. Com efeito, manifestam-se ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER E CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO que "enquanto no processo civil em princípio o juiz pode satisfazer-se com a verdade formal (ou seja, aquilo que resulta ser verdadeiro em face das provas carreadas aos autos), no processo penal o juiz deve atender à averiguação e ao descobrimento da verdade real (ou verdade material), como fundamento da sentença (...) no campo do processo civil, embora o juiz não mais se limite a assistir a iniciativa destas (CPC; arts. 130, 342 etc.), na maioria dos casos (direitos disponíveis) pode satisfazer-se com a vontade formal, limitando-se a acolher o que as partes levam ao processo e eventualmente rejeitando a demanda ou a defesa por falta de elementos probatórios. No processo penal, porém, o fenômeno é inverso: só excepcionalmente o juiz penal se satisfaz com a verdade formal, quando não disponha de meios para assegurar a verdade real (CPP, art. 386, inc. VI). Assim, p. ex.: absolvido o réu, não poderão ser descobertas provas concludentes contra ele. É uma concessão à verdade formal, ditada por motivos políticos" [45].

De fato, este pensamento faz com que se valorize mais o método pelo qual a comprovação do fato era obtida, deixando-se de lado a essência da prova. Em síntese, nas palavras trazidas por SÉRGIO CRUZ ARENHART, "passou a interessar mais a forma pela qual a verdade era obtida do que se este produto final efetivamente representava a verdade". [46]

Felizmente a diferenciação entre verdade material e verdade formal vem sendo rechaçada pela doutrina. Conforme expõe ALESSANDRO NICOLAU, apoiando-se em FRANCESCO CARNELUTTI, a verdade material é inatingível. [47], além de ser uma só, não se confunde com a verdade formal. A verdade é o todo e deste somente se apreende uma parte.

JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO ao comentar FRANCESCO CARNELUTTI relata que "busca-se a verdade material e obtém-se como resultado a verdade formal". [48] Contudo, tal diferenciação – entre verdade formal e material – foi substituída pela diferenciação entre verdade e verossimilhança.

2.4 Verdade e Verossimilhança

Como dito acima, a verdade é escopo do processo, mas nunca seu produto final. O juiz, por não ser divino, não consegue descobrir a verdade através de reconstrução dos fatos. SÉRGIO CRUZ ARENHART anda bem ao dizer que "a figura mítica do juiz, como alguém capaz de descobrir a verdade sobre as coisas e, por isso mesmo, apto a fazer justiça, deve ser desmascarada". [49] Demais disso, por melhor que seja a prova, por mais fiel que possa parecer ao juiz, não o levará ao descobrimento da verdade. Segundo SÉRGIO CRUZ ARENHART as provas apenas mostrarão indícios de como o fato ocorreu. [50] Assim pode o juiz ter uma elevada probabilidade de como sono andate le cose, mas nunca uma certeza absoluta.

Essa dificuldade eleva-se no processo, pois o juiz está, geralmente, frente a um litígio. Evidente que as provas carreadas aos autos pelos litigantes são eivadas de parcialidade, vez que ambas as partes acreditam estar com a razão.

E quem melhor descreve esta situação é PIERO CALAMANDREI, na qual o autor expõe suas experiências de vida como advogado, quando diz que "a querela entre os advogados e a verdade é tão antiga quanto a que existe entre o diabo e a água benta. E, entre as faceias costumeiras que circulam sobre a mentira profissional dos advogados, ouve-se fazer seriamente esta espécie de raciocínio: em todo o processo há dois advogados, um que diz branco e outro que diz preto. Verdadeiros, os dois não podem ser, já que sustentam teses contrárias; logo, um deles sustenta a mentira. Isso autorizaria considerar que cinqüenta por cento dos advogados são uns mentirosos; mas, como o mesmo advogado que tem razão numa causa não tem em outra, isso quer dizer que não há um que não esteja disposto a sustentar no momento oportuno causas infundadas, ou seja, ora um ora outro, todos são mentirosos. Esse raciocínio ignora que a verdade tem três dimensões e que ela poderá mostrar-se diferente a quem a observar de diferentes ângulos visuais. No processo, os dois advogados, embora sustentado teses opostas, podem estar, e quase sempre estão, de boa fé, pois cada um representa a verdade como a vê, colocando-se no lugar do seu cliente. Numa galeria de Londres há um famoso quadro do pintor Champaigne, em que o cardeal Richelieu é retratado em três poses diferentes: no centro da tela é visto de frente, nos dois lados é retratado de perfil, olhando para a figura central. O modelo é um só, mas na tela parecem conversar três pessoas diferentes, a tal ponto é diferente a expressão cortante das duas meias faces laterais e, mais ainda, o caráter tranqüilo que resulta, no retrato do centro, da síntese dos dois perfis. Assim é no processo. Os advogados indagam a verdade de perfil, cada um aguçando o olhar por seu lado; somente o juiz, que está sentado no centro, a encara, sereno, de frente (...) ponham dois pintores diante de uma mesma paisagem, um ao lado do outro, cada um com seu cavalete, e voltem uma hora depois para ver o que cada um traçou em sua tela. Verão duas paisagem absolutamente diferentes, a ponto de parecer impossível que o modelo tenha sido o mesmo. Dir-se-ia, nesse caso, que um dos dois traiu a verdade?" [51]

Por isso deve o magistrado optar por uma das versões que lhe foram apresentadas, o que demonstra a fragilidade do procedimento da descoberta da "verdade". [52] Segundo PIERO CALAMANDREI, quando se diz que um fato é verdadeiro o que se está querendo dizer é que a consciência de quem emitiu o juízo atingiu o grau máximo de verossimilhança, respeitados os meios disponíveis e limitados de cognição de que dispõe o sujeito, dando-lhe certeza subjetiva de que tal fato ocorreu. [53] Assim, tem-se que a decisão judicial não reflete a verdade. O que ocorre é a imposição de certos fatos – pressupostos da decisão – como verdadeiros.

SÉRGIO CRUZ ARENHART bem lembra os ensinamentos de SERGIO COTTA quando este diz que há três razões para que a verdade encontrada pelo processo não reflita a verdade material: i) a alienação da consciência do juiz à verdade temporalmente sintética do evento; ii) a solidão do juiz no estabelecimento definitivo da verdade; iii) a impotência do juiz em restabelecer a continuidade das pessoas. [54] De fato o juiz não presenciou os fatos e a análise destes é duplamente subjetivada (distorcida), primeiro pelas testemunhas e posteriormente pelo juiz. Ainda assim é obrigado a entregar apenas uma "verdade".

Por isso é que o princípio da verdade material é visto como um atraso, vez que busca a reconstrução precisa dos fatos - o que é impossível. Ora, por mais perfeita que seja a autuação do juiz, seu juízo não passará de um juízo de verossimilhança, mesmo a doutrina dominante insistindo em denominar o produto do processo de verdade.

Mas o que se pode entender por verossimilhança? Qual o real sentido da palavra quando aplicada ao processo, ou melhor, à Ciência do Direito?

OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA sintetiza-a como "a verdade contextual e possível". [55] A mais clara explicação acerca do que se entende por verossimilhança, acredita-se, seja aquela colacionada por SÉRGIO CRUZ ARENHART [56], apoiando-se nas lições de CALAMANDREI. Entende que verossimilhança tem uma forte ligação com as máximas da experiência, ou seja, tem-se algo por verossímil quando, presente um dado antecedente, acredita-se possivelmente verdadeiro aquele alegado conseqüente, tudo com base na experiência anteriormente adquirida por meio da observação. Exatamente por estar intimamente ligada com a experiência anteriormente adquirida, a idéia de se algo é verossímil ou não é revestida de um grau de subjetividade bastante elevado. É evidente de que algo pode ser verossimilhante para determinada pessoa e não o ser para outra.

2.5 A "construção" da verdade, no processo, pelas partes.

O dogma da verdade substancial deveria ter sido a muito retirado da teoria jurídica. Recorde-se de que as demais ciências já se aperceberam de que não há verdade. Segundo JÜRGEN HABERMAS, a verdade sobre um fato não se descobre, mas sim se constrói dialeticamente, através da argumentação das partes.

Desse modo o processo passa a ser o espaço utilizado pelas partes para a "construção" da verdade. [57] Deve-se abandonar a idéia de que o processo descobre exatamente como os fatos se passaram e, conseqüentemente, qual é a verdade.

É necessário, portanto, se ter em mente que o processo não é meio apto à descoberta da verdade. Uma nova postura vigora e o processo deve acompanhá-la. Dizem LUIZ GUILHERME MARINONI e SÉRGIO CRUZ ARENHART que "não há mais como supor que a decisão jurisdicional encontre fundamento na verdade, pois é óbvio que não existe uma verdade, mas tantas versões de verdade quantas forem necessárias. Cada parte tem a sua, e o juiz, para proferir a decisão, elabora a própria – que pode ser a versão inteira ou parcial de uma das partes. A convicção do juiz se faz a partir da argumentação e das provas trazidas ao processo, inclusive as determinadas de ofício, o que gera uma verdade construída no processo. O que legitima a decisão jurisdicional é a devida participação das partes e do juiz, ou melhor, as próprias regras que criam as balizas para a construção da verdade processual". [58]

SÉRGIO CRUZ ARENHART encerra um de seus trabalhos com uma bela reflexão que será aqui adotada na íntegra como conclusão deste capítulo. Nas palavras do brilhante processualista "o mito da verdade já cumpriu seu papel no estudo do direito processual civil, enfatizando o problema da prova. É hora dele sair de cena, deixando espaço para outros temas, que merecem, agora, melhor atenção pela doutrina. Somente assim será possível dar novo fôlego ao direito, na condução da sociedade. Afinal de contas, como já dissera o poeta francês PAUL VALÉRY, ‘o que tem arruinado os conservadores é a má escolha das coisas a serem conservadas". [59]

Sobre o autor
Maurício Dalri Timm do Valle

advogado, professor colaborador da Unibrasil, ex-Bolsista PIBIC/CNPq

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALLE, Maurício Dalri Timm. Livre apreciação da prova. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1549, 28 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10469. Acesso em: 26 dez. 2024.

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