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Entre acusar e julgar: Uma análise da construção da garantia da imparcialidade judicial

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Agenda 02/11/2024 às 19:47

3. Análise do Direito Comparado entre Sistemas Nacionais

Fora do cenário internacional, também podemos verificar expressões de normatividades seja diretamente da redação do princípio acusatório seja através do desenvolvimento do princípio acusatório com base na redação da garantia de imparcialidade em vários países como Brasil, Colômbia, Equador e Espanha. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que "há íntima relação entre a imparcialidade e o contraditório. A imparcialidade é essencial para que a tese defensiva seja considerada, pois em uma situação de aderência anterior do julgador à acusação, não há qualquer possibilidade de defesa efetiva”36.

Na Colômbia, a Corte Constitucional já determinou que "a representação do interesse estatal na supressão do crime e o ônus da prova ficam nas mãos de [uma entidade especializada] – a Procuradoria-Geral da Nação – e o juiz é liberado de certas funções oficiosas, típicas do modelo inquisitivo”37. No Equador, é a própria Constituição Política da República do Equador que garante que “todos têm livre acesso à justiça e à proteção célere, imparcial e efetiva de seus direitos e interesses, observados os princípios do imediatismo e da celeridade” (grifo nosso)38.

Na Espanha, o Poder Judiciário, mais especificamente o Superior Tribunal de Justiça Navarra, decidiu que o princípio acusatório requer uma acusação prévia e explícita, que permita ao acusado argumentar e fornecer provas para sua defesa, para garantir a imparcialidade do juiz ou Tribunal39. Além disso, tal jurisprudência também determinou a observação de que a acusação seja feita por parte externa ao órgão jurisdicional e que seja mantida a persecução dentro dos termos de fato e jurídicos delimitados pela referida denúncia ou introduzidos pela defesa40.

Consequentemente, de acordo com esse Tribunal espanhol, pressupõe-se uma correlação entre a acusação e o veredicto da sentença. O juiz não pode condenar por factos diversos daqueles pelos quais a acusação foi feita, nem pode condenar outra pessoa que não o arguido41. Finalmente, com base na jurisprudência estabelecida no Tribunal espanhol, conclui-se que não é possível avançar com um processo judicial se em algum momento dele as partes – o Ministério Público ou outro querelante, dependendo de cada sistema jurídico nacional – retirarem ou não mantiverem a acusação42.


4. Jurisprudência do Sistema de Proteção dos Direitos Humanos

No entanto, não apenas em regulamentos internacionais e nacionais e em tribunais nacionais há proteção ao princípio acusatório, há ainda os julgamentos dos Tribunais Internacionais dos Direitos Humanos dos sistemas globais e regionais da América e da Europa que o protegem da mesma maneira. No sistema americano, temos o caso Duque v. Colômbia julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 201643, e, no sistema europeu, temos os casos Castillo Algar v. Espanha de 199844 e Morel v. França de 200045 ambos julgados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

O caso Duque Vs. Colômbia debate a imparcialidade diante do preconceito por orientação sexual, o caso Castillo Algar Vs. Espanha decorre do princípio acusatório objetivo e subjetivo e o caso Morel Vs. France discute a imparcialidade perante as provas debatidas ou a aplicação de convicções muito pessoais do juiz. Talvez o caso Castillo Algar Vs. Espanha seja o mais importante deles, porque foi nele que se desenvolveram as categorias de imparcialidade subjetiva e objetiva a partir do princípio acusatório, que até agora são ferramentas para verificar o respeito ou não ao referido princípio.

O primeiro dos requisitos de imparcialidade para respeitar o sistema acusatório é a imparcialidade subjetiva que se refere à conduta e às circunstâncias de cada juiz com base principalmente em seus vínculos, interesses, comportamentos ou relacionamentos que ele tem com as partes. A partir do julgamento do Tribunal de Estrasburgo, os princípios de Bangalore orientam que "o tribunal deve ser subjetivamente imparcial, ou seja, nenhum membro do tribunal deve ser tendencioso ou ter qualquer preconceito a nível pessoal. A imparcialidade pessoal deve ser presumida, a menos que haja prova caso contrário”46 .

Por outro lado, a perspectiva objetiva do princípio da imparcialidade objetiva assegurar que os juízes e magistrados que intervêm na resolução de um processo o abordem sem prevenções ou preconceitos que em seu ânimo talvez possam existir devido a um relacionamento ou contato anterior com o objeto do processo. Com fundamento no acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, os princípios de Bangalore agora orientam que “o tribunal também deve ser imparcial desde um ponto de vista objetivo, ou seja, deve oferecer garantias suficientes para afastar qualquer dúvida legítima a esse respeito”47.

A imparcialidade objetiva é a necessidade não apenas da existência da imparcialidade (imparcialidade subjetiva), mas também a existência de uma aparência de imparcialidade (imparcialidade objetiva), independente da conduta pessoal do juiz ou do Tribunal, para garantir credibilidade e confiança no sistema de Justiça48. Aqui, então, considerando importante tanto a imparcialidade real ou interna quanto a aparência de imparcialidade externa ou formal, vale o brocardo romano, segundo o qual, mulier Caesaris non fit suspecta etiam suspicione vacare debet 49 , para a confiança no sistema judicial pela sociedade e pelo réu.

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Portanto, em conclusão, verificamos que o princípio ou sistema acusatório é uma ferramenta indispensável para manter a imparcialidade judicial e que, consequentemente, é um mecanismo para permitir a defesa com um contraditório actum trio personarum. Na verdade, o princípio acusatório é uma garantia fundamental sobre a qual é possível desenvolver os princípios de defesa e de presunção de inocência (e in dubio pro reo) 50, como consequência e possibilidade do sistema acusatório.

Com o princípio acusatório, a função de julgar é separada das demais no processo, o que torna possível a existência de um princípio da defesa em contraposição à parte acusadora: nulla probatio sine defensione (a prova é nula se não houver defesa)51. Já com o princípio da defesa, o ônus da prova dos fatos imputados é atribuída à acusação, o que resulta que o acusado é presumido inocente (princípio da presunção de inocência) e que, não havendo prova certa, o acusado é absolvido (in dubio pro reo): nulla accusatio sine probatione (nula é a acusação sem prova)52.

De fato, na verdade, a conexão entre o princípio acusatório, o princípio da defesa e o princípio da presunção de inocência (e in dubio pro reo) é muito bem configurado pelo jurista Luigi Ferrajoli nos dez axiomas de sua teoria do garantismo penais. Vamos vê-los:

1. Nulla poena sine crimine (NULA É A PENA, SEM CRIME): retributividade;

2. Nullum crimen sine lege (NÃO EXISTE CRIME SEM LEI PRÉVIA): legalidade;

3. Nulla lex (poenalis) sine necessitate (NÃO HÁ LEI SEM NECESSIDADE): necessidade;

4 . Nulla necessitas sine iniuria (NÃO HÁ NECESSIDADE SE NÃO HOUVER LESÃO/DANO): lesividade;

5. Nulla iniuria sine actione (NÃO HÁ DANO SEM AÇÃO): materialidade;

6. nulla actio sine culpa (NÃO HÁ AÇÃO SEM CULPA): culpabilidade;

7. Nulla culpa sine iudicio (NÃO HÁ CULPA SEM JURISDIÇÃO): jurisdicionalidade;

8. Nullum indicium sine chargee (NULO É O JULGAMENTO SEM ACUSAÇÃO: acusatório;

9. Nulla accusatio sine probatione (NULA É A ACUSAÇÃO SEM PROVA): ônus da prova;

10. Nulla probatio sine defensee (NULA É A PROVA SE NÃO HÁ DEFESA): contraditório ou defesa53.


Conclusões

O sistema processual de um país é certamente algo central para o direito nacional. Na tarefa de estruturar um ordenamento jurídico, principalmente em questões mais sensíveis como o direito processo penal, que produz investigações efetivas a respeito dos direitos e garantias individuais fundamentais e humanos, o legislador pode estar mais ou menos influenciado pelos princípios acusatório ou inquisitivo, a partir do que se justificaria um maior ou menor respeito pela imparcialidade do juiz.

Talvez a forma mais antiga de estruturar o processo penal seja através do princípio acusatório. Desenvolvido a partir do Direito Romano, o sistema acusatório foi preservado na Inglaterra, a partir de onde voltou para a Europa Continental através da Revolução Francesa para defender um modelo em que as funções de acusar, defender e julgar são exercidas por atores processuais diferentes e com a presença de juiz sem iniciativa probatória para garantir sua imparcialidade judicial.

Por outro lado, o princípio inquisitivo foi desenvolvido a partir da atividade investigadora da Igreja na Idade Média e influenciou fortemente o sistema jurídico-penal dos países da Europa Continental. Um sistema inquisitivo é um sistema de processo criminal estruturado a partir de uma confusão das funções de acusar e julgar na mesma pessoa: o juiz inquisidor que tem amplos poderes de produção de prova com o objetivo de garantir a eficácia da investigação em busca da verdade real.

A garantia fundamental do princípio ou sistema acusatório é uma ferramenta desenvolvida para promover um processo justo e atualmente já está estabelecida no estado da arte do devido processo legal. A partir do desenvolvimento inicial do princípio acusatório para manter a imparcialidade judicial com a separação das funções de acusar e julgar, foi possível que os acusados deixassem de ser objetos do processo e passam a ser sujeitos do direito à defesa como verdadeira garantia judicial.

Já estabelecidos os princípios acusatórios e de defesa, pois agora havia órgão acusador que tinha o ônus de provar suas acusações, como a acusação tem o ônus de provar suas acusações, o réu é abstratamente presumido inocente no processo. Portanto, com o desenvolvimento de tais garantias, foi possível um julgamento mais justo, principalmente com a melhor preservação da imparcialidade judicial necessária para a confiança da sociedade no sistema de Justiça, pois, como afirma o brocado:

Quem tem um juiz como acusador precisa de Deus como defesa. 54


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Sobre o autor
Nilson Dias de Assis Neto

Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, Diretor Adjunto do Departamento de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados da Paraíba, Coordenador Adjunto de Ensino à Distância da Escola Superior da Magistratura da Paraíba, Mestrando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona, professor no ensino superior com experiência na área de Direito Público, especialmente Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSIS NETO, Nilson Dias. Entre acusar e julgar: Uma análise da construção da garantia da imparcialidade judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7794, 2 nov. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/104777. Acesso em: 22 dez. 2024.

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