3. CRIMINALIDADE, IMPUNIDADE E PUNITIVISMO
Outro fator importante para a explicação do problema que norteia esta pesquisa reside no aumento exponencial dos índices de criminalidade no Brasil e o sentimento geral de impunidade. Obviamente, não é possível falar propriamente em impunidade, uma vez que, no Brasil, (bem ou mal) pune-se, tendo em vista a sua expressiva população carcerária, embora a taxa de punição não acompanhe a criminalidade. No entanto, circula por toda a sociedade o senso comum de que, aqui, a impunidade impera, e essa sensação merece análise.
Em um cenário de insegurança geral, provocado pelo aumento da criminalidade e por insuficiente punibilidade, a sociedade tende a enxergar o sistema penal como brando demais e, consequentemente, a adotar uma postura mais punitivista, aqui compreendida como o desejo de causar no criminoso um sofrimento exacerbado. Para Martins (2015), o punitivismo é a expressão da insegurança social em relação à ineficiente tutela do Estado. Aos olhos atuais, as ideias punitivistas parecem barbárie (e não deixam de ser). No entanto, elas não são pura barbárie, possuindo uma lógica própria, quando analisadas à luz do apanhado histórico acima realizado. Ora, se o particular transferiu ao Estado o seu “direito” de vingança “com as próprias mãos”, em nome de uma sonhada ordem social, então, a partir do momento em que o Estado não consegue promover satisfatoriamente essa ordem, o “direito” de vingança deve voltar ao particular ou o Estado deve “endurecer” as leis (não se defende aqui nenhuma das duas “soluções”, limitando-se apenas a identificar a lógica do pensamento). Percebe-se, assim, que as duas “soluções” apontadas, seja de forma direta, pelo particular, seja de forma indireta, pelo Estado, ensejam o retorno ao estado de natureza, em que a punição se resume à vingança pura e simples. Nesse sentido, Martins (2015) observa que a ausência de normas compatíveis com as relações sociais atuais, para as quais elas estão direcionadas, resulta na adoção de normas de um substrato social precedente.
Segundo Lopes (2000), o tema da punição é central no atual debate social brasileiro. Uns pedem a punição dos violadores dos direitos humanos; outros, a punição dos “bandidos”. Para uma parte da população, espancar, torturar, violentar, e matar, desde que se faça contra alguém que “mereça”, não significam propriamente crime ou violência, mas justiça. São muitos os que querem um Estado vingador, capaz de promover justiça imediata e pelas próprias mãos, fazendo as vezes da vítima. E essa noção punitivista tem sido popular justamente por apelar ao estado de natureza, considerando ser “mais fácil” ao ser humano dar vazão aos seus instintos do que controlá-los.
Controlar o instinto natural de vingança imediata, abrindo mão da sensação imediata de prazer por ela proporcionada, para esperar pela justiça estatal, em nome de um ideal de ordem social, que deseja uma sociedade harmônica, passando pela ressocialização e reintegração do criminoso à sociedade, não é tarefa das mais fáceis para o ser humano, em especial o brasileiro, enquanto ele vai assistindo ao criminoso levar uma vida “normal”, “como se nada tivesse acontecido”, respondendo ao processo em liberdade ou cumprindo uma pena mais branda do que se esperava. A supressão das ideias de vingança privada demanda um considerável grau de instrução e doutrinação da população em todos os sentidos educacionais e intelectuais, o que é raro neste país. Por isso, o Brasil se tornou um “caldo de cultura” ideal para a proliferação do punitivismo, considerando a barbárie criminosa que avança sobre a sociedade, que promove uma onda geral de perigo, medo e insegurança. Tende-se a acreditar que a maior severidade das leis e das penas, inclusive a não aplicação de direitos e garantias individuais, servirá como meio de inibição da violência.
Além disso, é necessário consignar outro ponto importante. Em países onde a criminalidade é baixa, são fracas as vozes de vingança ouvidas pela sociedade, porque as poucas vítimas restam isoladas do todo, considerando que o ser humano possui dificuldade em entender e acolher a dor alheia. Assim, nesses países, não ocorre uma arregimentação social para amplificar as poucas vozes de ressentimento. No entanto, em um país com altíssimas taxas de criminalidade, como o Brasil, são muitíssimas as vozes de vingança ouvidas em todos os “cantos”, visto que o número de vítimas é exponencial. Ademais, predomina a “quase” certeza de que todos os brasileiros, se ainda não o foram de fato, são vítimas em potencial. Dessa forma, as vozes se espalham e se materializam, pois, em todo lugar e a todo momento, o contato com as dores das mais diversas vítimas é frequente. Por isso, é possível afirmar que o crescente punitivismo é reflexo da reverberação coletiva dos sentimentos individuais de vingança.
Esse “contágio” do sentimento individual de vingança, ao ponto de formar um ideal punitivista, pode ser explicado também pela Psicologia Social, que estuda o comportamento humano a partir da influência recebida do grupo ou da sociedade a que pertence. Nesse campo, os psicólogos observam como o meio é capaz de influenciar as ações, os sentimentos, o comportamento e as ideias de um membro desse meio. Segundo Dutra e Blanco (2019), o ambiente social interfere diretamente nas opiniões, crenças e ações das pessoas. Independentemente de sua vontade, determinado comportamento (ideia, crença ou sentimento) nelas se instaura e as domina de forma inconsciente e indutiva. Literaturas, livros, opiniões, crenças, discussões, casos e noticiários criam um universo invisível que orienta os membros do grupo. Além disso, as opiniões produzidas pelo meio social são resistentes, não dando margem para que os membros pensem diferentemente. Esse fenômeno é muitas vezes identificado pela Psicologia Social como “comportamento de manada”, em que, na maioria dos casos, as pessoas costumam seguir o comportamento geral pelo simples fato de ser geral. Para Jesus (2013), existe uma ideia ou ilusão de que a “manada” (massa, multidão, coletividade) possui a sua racionalidade ou “sabedoria”, além de um sentimento de que as decisões tomadas em grupo são melhores do que as individuais. Assim, “se todos fazem, é correto fazer também”; “se todos pensam de uma forma, então esta é a forma correta de pensar”.
Portanto, os sentimentos individuais de vingança vão passando de uma pessoa a outra, alimentados pelas experiências pessoais ou de terceiros próximos ou não, e acabam ganhando corpo, reverberando na noção geral de punitivismo. Assim, mesmo as pessoas que nunca foram vítimas de crimes (ou cujo bem violado pelo criminoso é de menor relevância; ou, se mais relevante, não sentiram inicialmente um forte desejo de vingança) acabam adotando a ideia geral punitivista, porque a sociedade influencia a sua forma de pensar, fazendo nascer ou potencializando sentimentos. Essas pessoas, por sua vez, retroalimentam a sociedade com as suas próprias ideias, e assim o punitivismo “de manada” vai se solidificando.
Diante disso, é possível também apontar os altos índices de criminalidade (causadores da sensação geral de insegurança e descontrole social), a impunidade (que coloca em descrédito o Estado, com suas leis e instituições, como promotor da justiça) e o comportamento de manada (no qual os desejos individuais de vingança são alimentados pela coletividade e, por sua vez, retroalimentam os desejos coletivos, reverberando o ressentimento ao ponto de tornar-se punitivismo) como razões para a dissonância entre a sociedade em geral e os direitos e garantias individuais penais e seus consectários legais. Tais fatores têm impedido os brasileiros de enxergar essas normas como proteção (afinal, esses direitos surgiram especificamente para promover a proteção do indivíduo contra os avanços do Estado), ganhando, ao contrário, contornos de “ameaça”. Pela lógica do pensamento social punitivista, se a barbárie dos criminosos tem ameaçado a segurança dos particulares muito mais do que o próprio Estado, então os direitos que os “protegem”, “favorecendo” as suas condutas, também ameaçam a sociedade, pois “impedem” que a “justiça” seja feita.
4. CULTURA PUNITIVISTA HISTÓRICA
Além das razões relacionadas à natureza e à realidade social atual, é importante investigar também o passado brasileiro, a fim de proporcionar uma compreensão ampla sobre o problema exposto. Dessa forma, propõe-se, primeiramente, uma breve análise da história do sistema penal aplicado no Brasil, para entender aquilo que está incrustado nos seus sentimentos sociais de punição, ou seja, o modo pelo qual o brasileiro apreendeu o seu ideal punitivo, a forma de “justiça” que lhe foi ensinada ao longo do tempo.
Nesse sentido, Carvalho Filho (2004) registra que, nos tempos coloniais, vigoravam em terras brasileiras as Ordenações do Reino de Portugal (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), cuja marca preponderante era a severidade extrema das punições, adotando mutilações físicas e a pena de morte. Além disso, na ausência do Estado, dada a vastidão do território brasileiro, especialmente no sertão (compreendido como o interior do país, ou seja, aquilo que não era litoral), as pessoas exerciam a justiça “pelas próprias mãos”. Silva (2009) consigna que as penas nas Ordenações Filipinas envolviam morte na forca, morte precedida de tortura, corpo suspenso após a morte até a putrefação, morte por fogo, açoites, degredo para a África e mutilações. Lopes (2000) anota que as Ordenações eram monstruosas, aplicando sanções excessivamente rigorosas aos infratores, e continuaram sendo aplicadas mesmo após a independência do Brasil, até a promulgação do Código de Processo Criminal, em 1832 (AMARAL, 2013).
Durante o Império, ensina Carvalho Filho (2004), são editados no Brasil o Código Criminal de 1830 e o Código de Processo Criminal de 1832. A incidência da pena de morte foi reduzida (apenas para casos de homicídio, latrocínio e rebelião de escravos), e as execuções passaram a ser realizadas de forma austera, sem o espetáculo da mutilação e da exposição do cadáver, havendo, inclusive, previsão de pena de açoite.
Com o advento da República, a Constituição de 1891 aboliu a pena de morte, o banimento judicial e o trabalho forçado nas galés. Apesar disso, o sistema penal brasileiro cambaleou, marcado por dúvidas e inseguranças geradas pelos dois primeiros Códigos Criminais da República, até parar no Código Penal de 1940 e no subsequente Código de Processo Penal, que vigoram até hoje, com as suas inúmeras reformas.
A partir dessa análise, é possível apontar, como mais uma das razões contributivas para a explicação do problema desta pesquisa, o fato de que a tradição punitiva brasileira seja fortemente marcada pelo autoritarismo e pela severidade das sanções. Nos primeiros 391 anos da história do Brasil, a aplicação das penas teve caráter meramente punitivo, voltada à satisfação dos anseios vingativos do ofendido, da sociedade ou do próprio Poder Público. E essa ideia de vingança parece ter se entranhado no ideal brasileiro de punição, uma vez que não se pode desprezar o peso desse longo período histórico na formação da sociedade. Afinal, como já demonstrado, os instintos naturais e a influência da história da civilização, desde os tempos mais remotos, continuam agindo no ser humano (e o brasileiro não foge à regra).
Obviamente, a República, com seus ventos liberais, inaugurou no Brasil uma nova forma de enxergar o sistema penal, tendo abolido penas cruéis, perpétuas, banimentos e trabalhos forçados, além de conferir a acusados e condenados mais direitos individuais e seus consectários legais. Porém, as fortes e constantes instabilidades sociais (pobreza, falta de educação, criminalidade, insegurança, impunidade), econômicas (crises internas e externas, inflação, planos frustrados, incertezas financeiras) e políticas (dois períodos de Ditadura, nos quais os direitos individuais foram flagrantemente violados), que permearam a história da República, não propiciaram a criação de condições necessárias para a mudança dos anseios punitivos da população. A ausência “sempre presente” de investimentos sérios e adequados em educação, especialmente voltada à conscientização da sociedade sobre a importância dos direitos e garantias individuais penais, sempre impediu o brasileiro de compreender as demais funções da pena (ressocialização, reintegração) e as suas finalidades, bem como de receber os direitos que lhe são próprios e de aceitar que o outro também é sujeito de direitos.
Desse modo, verifica-se que a ideia brasileira de punição ainda está fortemente ligada ao período anterior à República, parecendo mais natural à sociedade desejar meios penais mais primitivos. É como se tantos direitos e garantias penais, processuais e executórias não conseguissem dialogar com a sociedade, os seus instintos e a sua histórica cultura punitiva arraigada à sua formação. E não se pode ignorar que é preciso muito diálogo para que o estado de natureza ceda lugar ao estado social, o que é raro no Brasil. Segundo Lopes (2000), a sociedade brasileira ainda não aprendeu que a punição estatal não deve se confundir com a vingança pura e simples. No entanto, para o autor, esse aprendizado é difícil de acontecer, uma vez que essa mistura está diretamente ligada à tradição autoritária e anticivil da formação social brasileira.
5. DISTANCIAMENTO ENTRE SOCIEDADE, CONSTITUCIONALISMO E IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS INDIVIDUAIS PENAIS
Além do sistema penal, investiga-se também a relação da sociedade brasileira com os processos históricos de tomadas de decisão sobre os rumos do país, em especial o constitucionalismo, as constituições proclamadas e a adoção dos direitos fundamentais. Procura-se, assim, constatar o nível de presença popular e as forças atuantes nesses acontecimentos, a fim de medir a proximidade e a “familiaridade” da sociedade brasileira com as suas próprias normas e de saber se o brasileiro em geral tende a enxergar os direitos como algo que é “seu”, que emana de si, ou como algo externo, do qual ele não fez parte e não se sente parte.
Maciel (2002) relata que, após convocar e fechar a Assembleia Constituinte destinada a elaborar a constituição imperial, D. Pedro I nomeou um Conselho de Estado, formado por apenas dez pessoas consideradas notáveis, que preparou, em um mês, a Constituição de 1824. Para o autor, essa constituição merece, na verdade, o nome de “carta”, tendo em vista ter sido outorgada, sem participação e assentimento do povo. Além disso, a Constituição de 1824 se resumiu a copiar da Constituição Francesa de 1791 aquilo que interessava ao imperador. Bedin e Spengler (2013) destacam que a Constituição imperial se preocupou muito mais em estabelecer a divisão política e administrativa do país, destinando menor espaço e atenção aos direitos individuais. Ademais, apesar da adoção expressa dos direitos fundamentais, a instituição do Poder Moderador, que consignava uma espécie de absolutismo na figura do imperador, e outros fatores, como o fraco desenvolvimento econômico, as grandes distâncias, a precariedade dos transportes e das comunicações, tornaram muito difícil a efetividade desses direitos (BONAVIDES e ANDRADE, 2002).
Percebe-se, de antemão, a ausência de integração da sociedade em geral no processo de elaboração da primeira constituição e que os direitos individuais não resultaram de luta e conquista da população, mas foram meramente positivados. Esse distanciamento não foi menor nem mesmo com o advento da República, pois é fato histórico que não houve participação popular no movimento de conspiração que derrubou a Monarquia. Consequentemente, a Constituição de 1891, embora com ares liberais, conferindo mais direitos individuais e abolindo os severos sistemas punitivos (MAIA, 2012), foi elaborada distante do povo brasileiro.
Por sua vez, a Constituição de 1934 pareceu refletir melhor os anseios da sociedade, com a implantação dos direitos sociais e a previsão de normas programáticas, tendo a Constituição de Weimer (Alemanha) como paradigma principal (ARAÚJO, 2007). Para Cunha (2001), é a mais inovadora das constituições brasileiras. No entanto, uma análise mais acurada revela que a sua base histórica reside na crise global do liberalismo econômico e do Estado Mínimo com os movimentos sociais que reivindicavam melhores condições de trabalho e de vida (MAIA, 2012). Constata-se, assim, que o olhar do constituinte está voltado mais para fora do Brasil do que para dentro. É claro que não se pode ignorar a importância do documento, tendo em vista que no país já eclodia a “guerra” entre liberalismo e direitos sociais. Porém, essa importância era maior em relação aos grandes centros urbanos da época, onde a industrialização e seus respectivos problemas se concentravam. O restante do país, a sua maior parte, agrário e ainda atrasado, com problemas diferentes e necessidades próprias, não foi representado pelo texto constitucional, o que demonstra, mais uma vez, a distância entre as normas e o povo brasileiro em geral.
Apesar dos avanços, a Constituição de 1934 logo cedeu lugar à Constituição de 1937: a face normativa do período ditatorial instaurado por Getúlio Vargas após o golpe de estado. Se a constituição “social” não conseguiu refletir suficientemente os anseios de toda a sociedade, muito menos a Constituição de 1937 logrou esse êxito, considerando a sua inspiração fascista. A Carta outorgada esvaziou as funções do Legislativo e do Judiciário e concentrou o poder nas mãos do Executivo, além de ter restabelecido a pena de morte em determinados casos (ARAÚJO, 2007). Mais uma vez, a sociedade em geral assiste de fora aos processos históricos, tendo sido dispensada a representação popular constituinte (MAIA, 2012). Ademais, nesse período marcadamente autoritário, direitos e garantias individuais foram restringidos.
Em contraposição ao totalitarismo, é promulgada a Constituição de 1946, que retoma as conquistas promovidas pela Constituição de 1934. O novo texto restabelece o regime democrático republicano, com nova proibição da pena de morte e de sanções severas (MAIA, 2012) e com a proteção de direitos e garantias, priorizando os direitos sociais e as normas programáticas. No entanto, apesar de seu apelo popular, a sua duração foi curta e insuficiente para aproximar a sociedade em geral dos processos históricos e das normas, tendo em vista a instabilidade política durante a sua vigência, que desaguou em novo golpe de estado e na implantação da ditadura em 1964. Outorgada em 1967, a Constituição da Ditadura, com suas modificações e Atos Institucionais, apesar de ter previsto direitos e garantias individuais, afastou ainda mais a população dos centros de tomadas de decisão sobre os rumos do país e de elaboração das leis, visto que os direitos fundamentais, especialmente os individuais penais e seus consectários legais, foram flagrantemente violados nesse período.
Essa análise dos documentos constitucionais do Império à Ditadura de 1964 revela a distância entre o brasileiro e as normas jurídicas. Verifica-se que, na elaboração das constituições, bem como nos processos históricos que resultaram em suas promulgações ou outorgas, nas tomadas de decisões e na elaboração das leis, a sociedade brasileira não foi devidamente chamada a participar ou, se chamada, não se envolveu como um todo organizado. Não há notícias, nas pesquisas diversas, sobre a presença e/ou a intensidade da participação de forças ou de movimentos sociais no constitucionalismo brasileiro e na conquista dos direitos fundamentais. Não há informações sobre debates sociais acerca dos direitos e garantias individuais penais constitucionalmente assegurados e seus corolários legais, pois, talvez, a questão da proteção contra o avanço estatal não fosse uma preocupação geral da sociedade brasileira, que se manteve alheia, em seus respectivos e isolados rincões, às discussões políticas ou à maior ou menor sede estatal em reprimir as liberdades individuais. Tais problemas sempre pareceram mais restritos aos grandes centros da época (Rio de Janeiro e São Paulo, entre outros), não sendo encarados como gerais. Além disso, o fenômeno do aumento exponencial da criminalidade, que assola o país como um todo e gera o debate atual propenso a rejeitar os direitos individuais penais, é relativamente recente na história do Brasil. Antes, a criminalidade não era tão alta, além de ter sido mais restrita aos grandes centros. Por isso, não se desenvolveu um cenário que demandasse uma discussão sobre a aplicação dos direitos penais. Assim, durante muito tempo, autoritarismo estatal e criminalidade não foram problemas reais, decisivos, determinantes e comuns à maior parte do país.
Dessa forma, uma vez que, historicamente, a sociedade brasileira em geral se manteve distante dos problemas e fatores que levaram à previsão dos direitos individuais penais no Brasil, a tendência é que o brasileiro não perceba tais direitos como conquistas. Se não foi chamado a participar, ou se não se sentiu motivado a participar, porque não se viu envolvido pelos fatores históricos geradores, então logicamente o brasileiro não enxerga os direitos individuais penais como algo que é seu, como direitos subjetivos, pertencentes ao seu patrimônio jurídico. Quem não participa de uma conquista tende a não se sentir parte dela e a não sentir que ela lhe pertence.
É como se, historicamente, o brasileiro tivesse assistido a tudo “de fora” (se é que chegou a assistir) e, de repente, os direitos individuais penais “caíram em seu colo”, e ele não sabe o que fazer com “isso”, tampouco entende a sua necessidade e importância, nem para o que “serve”. É visível que, na elaboração das constituições analisadas e de suas respectivas leis, a previsão dos direitos individuais resulta de mera reprodução das constituições de países “mais evoluídos”. Assim, uma vez que o brasileiro em geral não consegue enxergar os direitos individuais penais como conquista sua, mais difícil se torna enxergá-los como conquista e direito do outro, principalmente quando tais direitos parecem “ameaçá-lo”, ora “protegendo bandidos” e não “permitindo” que ele faça justiça por conta própria, ora “impedindo” o Estado de promover a punição adequada conforme as suas convicções pessoais.
Na verdade, em termos de direitos fundamentais, o olhar brasileiro sempre esteve mais voltado aos direitos sociais do que aos individuais penais. As Constituições de 1934 e de 1946 e a própria Constituição de 1988 são as mais celebradas não só porque democráticas, mas principalmente pela previsão dos direitos sociais e de normas programáticas destinadas à sua implementação. Carreirão e Melo (2014), em seus estudos sobre as várias pesquisas de opinião pública, realizadas entre 1987 e 1988, acerca dos temas discutidos pela Assembleia Nacional Constituinte, que resultou na promulgação da Constituição de 1988, demonstram que as questões debatidas no cenário nacional à época estavam voltadas a temas institucionais, trabalhistas, econômico-financeiros e morais. Nenhum questionamento sobre direitos e garantias individuais penais foi dirigido à população, evidenciando que esse tema estava distante das preocupações da sociedade. E isso é curioso porque, após duas décadas de ditadura, o natural, em tese, seria justamente a preocupação com a garantia dos direitos individuais penais, em razão das flagrantes violações cometidas no período anterior.
É fato histórico que um dos movimentos mais fortes, nesse período de transição entre ditadura e democracia, foi o “Diretas Já”, voltado ao restabelecimento integral dos direitos políticos da população. Analisando o trabalho de Negrão e Ribeiro (2022) sobre o processo de elaboração da Constituição de 1988, constata-se que as forças sociais e políticas mais pulsantes do período estavam relacionadas à necessidade de instalar o regime democrático. Além disso, é possível identificar também a influência dos movimentos sindicais na promoção dos direitos sociais e na implementação de normas programáticas. Porém, não há notícias sobre forças semelhantes destinadas à previsão e garantia dos direitos individuais penais. Sobre estes, é possível inferir, a partir do estudo dos autores mencionados, que a produção das normas constitucionais sobre tais direitos se limitou a reproduzir textos de tratados assinados pelo Brasil antes da consolidação da Assembleia Nacional Constituinte. Os autores identificaram várias normas que continham similaridades específicas, inclusive na sua forma escrita, com as normas internacionais (mais uma vez, o olhar voltado mais para fora do país do que para dentro). Além disso, atestam que, em relação aos direitos individuais penais, os temas que mais permearam as discussões da Assembleia foram acerca da tortura e da pena de morte. Aliás, segundo eles, em vários momentos do debate constituinte, os direitos individuais penais são citados como “barreiras protetivas ao criminoso”. Percebe-se, ainda aqui, a presença entranhada do ideal punitivo resultante da história penal brasileira. Talvez essa atenção maior aos direitos sociais e às normas programáticas tenha origem nos problemas mais urgentes que sempre assolaram o Brasil: pobreza, fome, desigualdades, saúde, educação etc. Essas questões dizem respeito às necessidades mais primárias do ser humano. Afinal, para que se tenha liberdade é preciso estar vivo, e para que se esteja vivo são necessárias melhores condições de vida.
Portanto, além das razões já identificadas para explicar o problema que guia esta pesquisa (instintos vingativos do homem enquanto indivíduo, influência dos moldes civilizacionais transmitidos desde tempos remotos da humanidade, problemas atuais acerca da crescente criminalidade e baixa punibilidade que incomodam a sociedade brasileira, tendência punitiva arraigada ao pensamento social brasileiro a partir do seu histórico dos sistemas penais), também é possível apontar como razão a ausência ou a insuficiência da participação da sociedade na implementação dos direitos e das garantias individuais penais e de seus consectários legais, evidenciado pelo distanciamento do brasileiro dos processos históricos, das tomadas de decisão, do constitucionalismo, da elaboração das constituições e da “conquista” dos referidos direitos.