Resumo: O discurso jurídico traz em seu imo características que vão além do texto, pois o Direito também é essencialmente interpretativo e argumentativo. Na análise de tais características, o objetivo deste trabalho é demonstrar que o discurso jurídico realiza-se mediante padrões lógicos de linguagem, de interpretação e de argumentação, com ênfase nos raciocínios dedutivo (silogismo jurídico) e analógico, predominantes na lógica de aplicação da norma. Para tanto, o destaque metodológico deste artigo recai na pesquisa bibliográfica nacional e estrangeira. Um dos principais resultados alcançados, almejando a compreensão acerca da lógica da decisão jurídica nos tempos atuais, é que a norma em abstrato, por maior que seja a sua importância sobre a função social que desenvolve na busca da estabilização de expectativas de comportamento, por não ser capaz de prever de antemão as múltiplas possibilidades dos fatos sociais, em muitas ocasiões impõe ao seu intérprete a necessidade de adequá-la ante as circunstâncias contextuais no momento de sua aplicação e, isso, exige do aplicador da norma ao caso concreto uma atividade também criativa do Direito. E, sobretudo por não estar atrelado essencialmente à lógica material (verdade), mas à dialética, tal paradigma do raciocínio jurídico, quando criativo em seu discurso de aplicação, provoca a sensação de menor importância atribuída à segurança jurídica. Assim, algumas decisões judiciais, ainda que respeitando a basilar estrutura lógica do raciocínio jurídico, extrapolam a típica aplicação do Direito, invadindo a esfera daquilo que, em tese, estaria reservado ao debate político, sem respeitar o esteio base de tal debate, que é o princípio democrático. Como consequência desta derradeira conclusão, esta pesquisa propõe-se, ainda, a apresentar uma metodologia, nos parâmetros da lógica jurídica, que mitigue essa específica onda de originalidade judicial.
Palavras-chave: Discurso jurídico; lógica; interpretação; argumentação.
Introdução
O discurso jurídico é, por natureza, um ato comunicativo, que demanda interpretação e justificação. Tal discurso pode ser reduzido a múltiplas formas de linguagem2, como leis, jurisprudências e doutrinas, cada qual com suas características e propósitos peculiares.
Todas as formas que expressam a narrativa jurídica demandam um olhar além do texto, pois o Direito também é interpretativo e argumentativo. Interpretar e justificar movimentam-se ombro a ombro. Enquanto interpretar significa transportar para uma linguagem inteligível o que está posto de forma técnica, na busca do sentido daquilo que se interpreta, fundamentar está diretamente relacionado com a apresentação de motivos que justificam a existência do discurso jurídico, sobretudo da norma. Tais motivos podem pautar-se em argumentos de justificação, quando atentos à validade do discurso, com ênfase no discurso em si, e enquanto existência válida no ordenamento jurídico daquilo que se justifica, principalmente da norma; e em argumentos de aplicação, referentes à utilização adequada do ordenamento jurídico ao se aplicar o Direito na solução de casos concretos.
A distinção aqui adotada entre argumentos de justificação e de aplicação não se iguala estritamente à tese de Klaus Günter, no sentido de demonstrar a forma como o Direito se legitima, numa dependência normativa do Direito em relação à moral, cujo enfoque da moralidade seria justificar as normas de conduta, cabendo ao Direito, por sua vez, a aplicação dessas normas justificadas, ou seja, válidas, nos eventuais contextos, nos quais o exame das características ali presentes irá evidenciar a aplicabilidade da norma em tese, isto é, se a norma justificada é adequada, aplicável3. Nosso propósito não é abordar o argumento de justificação na sua questão de fundo, que visa sustentar uma legitimidade substancial da construção do Direito, mas sim, empregar a expressão tanto no processo para se elaborar a norma de Direito, quando se destacam as razões para o regramento em discussão vir a existir, isto é, por que determinado assunto de interesse social deve ser regulamentado pelo Direito (atividade mais atinente ao legislador), quanto na escolha da norma já existente, ou, na sua ausência, a integração, para a sua aplicação ao caso concreto que demanda julgamento, ou seja, uma decisão judicial (atividade jurisdicional).
O propósito, portanto, deste trabalho é demonstrar que o discurso jurídico realiza-se mediante padrões lógicos de linguagem, de interpretação e de argumentação. Ante tal finalidade, a metodologia predominante é a pesquisa bibliográfica nacional e estrangeira.
A abordagem inicial apresenta as principais características do discurso lógico formal e do discurso lógico dialético. O item seguinte aponta enfoque na relação da lógica com o Direito, ou seja, com todo o seu processo argumentativo, diretamente atrelado à lógica dedutiva, na subsunção do fato à norma (silogismo jurídico). Após, poderá ser visto no item destinado à lógica dialética e verdade no Direito que, apesar de o argumento jurídico se desenvolver nos padrões do silogismo, tal raciocínio está diretamente ligado à lógica dialética e à persuasão, pois a verdade passa a ser aquilo aceito (convencido), ante os argumentos, como verdadeiro. Por derradeiro, o tópico sobre a lógica da decisão jurídica nos tempos atuais aborda o instigante, para não dizer angustiante, imbróglio entre segurança jurídica versus atividade judicial criadora de direitos, buscando apresentar uma proposta, nos parâmetros da lógica jurídica, que mitigue essa onda de originalidade judicial, a qual reflete, em muitos casos, verdadeiras escolhas subjetivas do julgador e que demanda metodologia que justifique a sua legitimidade.
1. Discurso jurídico: paradigmas da lógica formal e da lógica dialética
O fenômeno jurídico se apresenta em forma de linguagem. O Direito é, portanto, um fenômeno de comunicação e não apenas uma ordem coativa de conduta humana, um meio de controle social ou um ideal de justiça. Por ser o Direito comunicacional, o que é justo é o que é racional4, o que é discursivamente correto, uma correção obtida argumentativamente pelo cumprimento das regras formadoras da lógica do discurso.
Lógica é o estudo das operações intelectuais que visam à determinação do que é verdadeiro ou não, mediante processos de inferências. Os processos lógicos partem de proposições5 para se chegar a conclusões. Nas lições do Maria Helena Diniz, enquanto na lógica do discurso comum os valores são a verdade e a falsidade (lógica alética), na do discurso jurídico, em especial do normativo, os valores são a validade ou a invalidade (lógica deôntica). Os enunciados da lógica deôntica referem-se ao dever-ser, a qual procura sistematizar as condições de validade das proposições normativas, sendo uma lógica jurídica proposicional. No entanto, como nenhuma norma pode valer como tal, separada dos fatos e valores componentes da estrutura social de cada época e lugar, as normas positivadas não são esquemas inertes, mas realidades que se inserem no ordenamento jurídico, modificando significações, recebendo novos impactos de novos fatos e valores6. Logo, na tarefa hermenêutica, o jurista não deve apenas ater-se às normas, mas também fazer referência a fatos e valores jurídicos. Disso decorre a compreensão dialética do Direito, a legitimar o processo da lógica persuasiva. (DINIZ, 2012, p. 240).
O discurso lógico, dentre eles o jurídico, ocorre mediante processos de inferências. Inferência é a conclusão a que se chega com base nas premissas (proposições) em análise. É o ato de obter uma conclusão a partir de um conjunto de premissas iniciais. Inferir (concluir) demanda, principalmente, um processo lógico dedutivo, indutivo, abdutivo ou por analogia: a) Dedução, em síntese, é a conclusão (verdade) a que se chega a partir das premissas analisadas. As premissas conduzem a uma irrefutável e determinada conclusão, pois toda a informação contida na conclusão já estava contida nas premissas (explícita ou implicitamente); b) Indução é a conclusão a que se propõe chegar (probabilidade) a partir de premissas analisadas. As premissas fornecem indícios suficientes para permitir (estimar) uma determinada conclusão. De proposições particulares, conclui-se uma proposição universal; c) Analogia também é processo lógico de inferência. Este tipo de raciocínio faz-se através de comparações, como no seguinte exemplo: A apresenta os mesmos sintomas de B. Logo, A está com a mesma doença de B; d) Abdução, embora não seja propriamente demonstrativa, é uma espécie de intuição, mas que não se dá de uma só vez, indo passo a passo para chegar a uma conclusão. A abdução é a busca de uma conclusão pela interpretação racional de sinais, de indícios, de signos. O exemplo mais simples para explicar o que seja a abdução é o conto policial, o modo como os detetives vão coletando indícios ou sinais e formando uma teoria para o caso que investigam. (CHAUI, 2004, p. 68).
A lógica dedutiva é, como mencionado, a relação de inferência que parte de uma proposição geral para uma proposição particular. É a que se estabelece no chamado argumento silogístico. Um silogismo é construído por três proposições. A primeira é chamada de premissa maior, a segunda, de premissa menor e a terceira, de conclusão. A premissa maior deve conter o termo extremo maior e o termo médio; a premissa menor deve conter o termo extremo menor e o termo médio; e a conclusão deve conter o maior e o menor e jamais deve conter o termo médio, pois, sendo a função do médio ligar os extremos, deve estar nas premissas, mas nunca na conclusão. (CHAUI, 2004, p. 111). Exemplo clássico de silogismo pode ser descrito da seguinte forma:
Todo homem é mortal.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.
Na lógica formal, a conclusão pode ser válida, mas nem sempre será verdadeira. Válida porque respeita a formalidade da construção argumentativa das premissas, partindo da maior para a menor, chegando-se à conclusão a partir desse processo, sem sopesar o conteúdo das proposições. Então, para a conclusão ser verdadeira, as premissas devem corresponder à verdade. Por isso, importante não confundir conteúdo do argumento com estrutura do argumento. Observe-se o exemplo:
Nenhum homem sabe dançar.
Este dançarino é homem.
Logo, este dançarino não sabe dançar.
No exemplo acima, o procedimento lógico do raciocínio existe (lógica formal), porém, uma das premissas não é verdadeira e, por isso, não ocorre a chamada “lógica material”. Trata-se de um raciocínio que tem validade formal (quanto à estrutura), mas não tem validade material (quanto à veracidade do conteúdo). Destarte, é possível afirmar que a lógica formal (estudo das estruturas) interessa-se pelas formas mais gerais do raciocínio, procurando que o pensamento seja coerente consigo mesmo, enquanto a lógica material (estudo do conteúdo dos argumentos) trata das relações do pensamento com a realidade, isto é, estuda os métodos gerais das ciências em busca da verdade.
Como a lógica formal não se ocupa com a questão da verdade, mas, paradoxalmente a própria ideia conceitual da lógica atine às operações intelectuais que visam à determinação do que é verdadeiro ou não, tal situação fez surgir uma classificação própria para distinguir o raciocínio lógico que demonstra a verdade (científico), do raciocínio argumentativo com aparência demonstrativa (argumentos quase-lógicos). A doutrina de Perelman e Olbrechts-Tyteca prefere a expressão “quase-lógicos” para se referir aos argumentos que se apresentam como comparáveis a raciocínios formais, lógicos ou matemáticos. Isso porque o desenvolvimento da lógica formalizada conseguiu separar a demonstração da argumentação, destarte, os raciocínios argumentativos que se baseiam na estrutura formal da lógica possuem apenas uma aparência demonstrativa. (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 219).
Os raciocínios demonstrativos baseiam-se na lógica formal e na argumentação objetiva, por isso, não admitem probabilidade, ou seja, não se verificam nessas inferências o “pode ser ou não ser”, o “pode acontecer ou não acontecer”. De maneira distinta, os raciocínios argumentativos, por se pautarem em uma argumentação subjetiva, permitem argumentações contrárias, pois as premissas são opiniões que não são objeto de ciência. E, como a dialética é uma discussão entre opiniões e argumentos contrários, cuja conclusão é obtida pela força persuasiva maior de um argumento ou uma opinião sobre outros (CHAUÍ, 2002, p. 375), os raciocínios desta natureza são denominados de silogismo dialético ou lógica dialética.
A dialética, como aponta Fábio Ulhoa Coelho, compreende um dos dois modos básicos de se raciocinar apresentados ao mundo, ainda na Antiguidade, por Aristóteles. Dentre os dois modos – a demonstração analítica e a argumentação dialética – o segundo não teve o mesmo destaque com o passar do tempo, sobretudo com o Renascimento, privilegiando-se o então denominado método científico, pois este traduzia uma demonstração fundada em proposições evidentes, conduzindo-se o pensamento a conclusões verdadeiras. O modelo afeito à argumentação dialética, segundo o citado autor, tem o seu resgate triunfante com a contribuição significativa de Chaïm Perelman7, somente na segunda metade do século XX, com a publicação de seu tratado sobre argumentação, também conhecido como “A nova retórica”. Tal obra, de forma inédita, estabeleceu a ligação entre a aplicação de normas e o raciocínio dialético, em sua formulação aristotélica (COELHO, 2005).
Ora, o pressuposto de tal liame é a negação da existência de interpretações jurídicas “verdadeiras”. As premissas da argumentação não são evidentes mas resultam de um acordo entre quem argumenta e seu auditório: são as opiniões de que falava Aristóteles. O saber fundado em tais premissas pode ser verossímil, ou não, mas nunca será verdadeiro ou falso. Em outros termos, não se ocupa o conhecimento jurídico de qual seria a decisão judicial ou administrativa verdadeiramente derivada de uma norma geral, com exclusão de todas as outras, as falsamente derivadas; ocupa-se, isto sim, dos meios de sustentar determinada decisão como sendo mais justa, eqüitativa, razoável, oportuna ou conforme o direito do que outras tantas decisões igualmente cabíveis (COELHO, 2005, p. XVI).
O discurso jurídico, portanto, por não estar focado na problemática daquilo que é verdadeiro ou falso, típico do pensamento demonstrativo-analítico, mas sim na adequabilidade das múltiplas interpretações da norma, revela-se pela argumentação dialética, seja na predominância dos textos escritos, seja pela via da retórica8.
2. Lógica e argumentação jurídica
A lógica, como visto, possui relação com a construção da argumentação, ou seja, com todo o processo argumentativo. Conforme o destaque de Fiorin, “a argumentação é a ferramenta pela qual fazemos com que um discurso progrida a partir de inferências: partimos de uma ideia inicial e a desenvolvemos para, por fim, chegarmos a uma conclusão”. (FIORIN apud BERTAGNOLI; CARVALHO, 2016, p. 116). O Direito é o resultado de uma conclusão (decisão) sobre o que deve ser regulamentado, como esta regulamentação deve ocorrer – de maneira abstrata - e como deve ser decidido (concluído) um litígio, isto é, um conflito de interesses decorrente de um fato ou ato jurídico – em particular, ante o caso concreto. O Direito, portanto, como força de decisão, possui um processo de desenvolvimento lógico. A lógica jurídica é, assim, o instrumento da dogmática jurídica, pois tem por objeto conhecer e sistematizar princípio gerais, leis e regras atinentes às operações intelectuais utilizadas no estudo do direito, na interpretação, na integração, na elaboração e na aplicação jurídicas. (DINIZ, 2012, p. 239).
Daquilo que se extrai dos apontamentos de Marilena Chaui: “De modo geral, diz-se que a indução e a abdução são procedimentos racionais que empregamos para a aquisição de conhecimentos, enquanto a dedução é o procedimento racional que empregamos para verificar ou comprovar a verdade de um conhecimento já adquirido” (CHAUI, 2004, p. 68), é possível afirmar que o discurso jurídico de aplicação está diretamente atrelado à lógica dedutiva, na subsunção do fato à norma (silogismo jurídico).
Silogismo, como visto, é um método de raciocínio que parte de premissas para se chegar à conclusão. Se as premissas forem verdadeiras, está-se diante da lógica material, também chamada de substancial ou analítica, enquanto, se as premissas forem frutos de opiniões (probabilidade), o raciocínio argumentativo pauta-se na lógica dialética. O silogismo jurídico pode ser entendido como a análise conclusiva dos fatos jurídicos a partir de premissas estabelecidas (positivadas). Diante de uma situação, o enunciado normativo seria premissa maior; o fato ocorrido, a premissa menor; e a conclusão seria a decisão decorrente dessa subsunção do fato à norma. Assim, no processo interpretativo decorrente da aplicação do Direito,
Determinada, afinal, a norma jurídica aplicável ao caso concreto, o juiz deverá interpretá-la. Pela interpretação estabelece o exato sentido da norma, o seu alcance, as suas consequências jurídicas e os elementos constitutivos do caso típico nela previsto. Interpretada, verificará o juiz a tipicidade do caso que ele tem de julgar, isto é, se corresponde ao modelo legal. Se corresponder, aplicará ao mesmo as consequências jurídicas previstas na norma. Tal aplicação tem a forma do raciocínio silogístico. Daí denominar-se silogismo jurídico ou judicial a atividade mental de aplicação do direito. Dito silogismo tem por premissa maior a norma jurídica; por premissa menor, o caso concreto a ser decidido pelo juiz, e por conclusão ou corolário, a sentença, que impõe a uma das partes ou a ambas as consequências previstas na norma jurídica. (GUSMÃO, 2018, p. 221).
Apesar de no universo jurídico (ciência social), o argumento se desenvolver nos padrões do silogismo (lógica formal), tal raciocínio dedutivo é afeito, mais apropriadamente, à lógica dialética, pois as premissas, por serem interpretativas, acabam caracterizando-se verdadeiras opiniões e, por isso, “no Direito concorrem teses diferentes, e não necessariamente há uma verdadeira e outra falsa. O que existe é, no momento da decisão, uma tese mais convincente que as demais.” (RODRÍGUEZ, 2011, p. 13). Por ser retórico, o Direito admite teses e antíteses, prevalecendo na síntese (decisão) o argumento mais convincente, ou seja, que melhor demonstrou a verdade alegada.
O argumento9, para se convencer, deve ser lógico (válido). Argumento lógico é aquele em que as proposições possuem relação umas com as outras. Como já analisado, é importante reprisar que não há uma correlação direta entre a falsidade das proposições e a invalidade do argumento, uma vez que é possível ter um argumento válido construído a partir de premissas falsas. (BERTAGNOLI; CARVALHO, 2016, p. 107).
Como a lógica jurídica parte, muitas vezes, de opiniões, pois o direito é, por natureza, interpretativo e argumentativo, a argumentação ganha papel de destaque, sobretudo no mundo em que cada vez mais as verdades se tornam relativas, ora prevalecendo uma forma de pensar e entender certa coisa, ora outra forma.
Atualmente, o papel da argumentação na vida cotidiana encontra-se relacionado ao processo de ‘desencantamento do mundo’, que foi amplamente descrito por Max Weber. A ideia de ‘desencantamento’, em linhas gerais, implica reconhecer o emprego da racionalidade e da ciência como critérios de produção de conhecimento válido no mundo, sem apelo a qualquer justificativa sobrenatural ou mística. Na medida em que não mais se observa, no contexto contemporâneo, espaços produtores de verdades universais, ou que a própria ideia de verdade também tem sido problematizada por diversos estudos ao longo dos séculos XX e XXI, uma transformação tem se operado na vida dos indivíduos, o que produz alterações substanciais no campo da argumentação. Diante da derrocada da verdade no mundo contemporâneo, o argumento se apresenta como a principal forma de interação social nas diversas situações em que os indivíduos se encontram, recebendo destaque o argumento mais persuasivo, e não necessariamente o mais verdadeiro. (ASENSI, 2010, p. 3-4).
Para o Direito, portanto, a lógica é ferramenta crucial para o desenvolvimento da mais adequada argumentação, tanto na busca do convencimento, quanto na apresentação das razões da decisão tomada.
3. Lógica dialética e a questão da verdade no Direito
Para a ciência, verdade é tudo aquilo que pode ser comprovado. A Ciência tem como objeto a descoberta das leis que presidem os fenômenos sensíveis e, como método, serve-se da observação sistemática e, quando possível, da experimentação. Já a retórica, por não ser uma ciência exata, não tem por propósito apresentar provas (demonstração) sobre suas proposições, mas convencer (argumentação) sobre a opinião proposta.
A verdade na retórica, portanto, é aquilo aceito (convencido), ante os argumentos, como verdadeiro. A retórica não busca, assim, provar a verdade de maneira irrefutável, destina-se, por outro lado, à persuasão. Ela procura fazer com que a plateia creia na conclusão daquele que argumenta. Tem, destarte, como objetivo convencer o interlocutor (auditório) sobre alguma “verdade”, utilizando-se, para isso, de argumentos.
É de costume entender por verdade: fatos; aquilo que é comprovado cientificamente; o que faz parte da tópica (topoi), senso comum; o que é crível, razoável, plausível, verossímil. Em especial, no mundo do Direito entende-se por verdade aquilo que foi efetivamente provado no processo, seja de justificação, seja de aplicação. Na aplicação do Direito, são assentes os institutos denominados verdade real, verdade formal, verossimilhança e fumus boni iuris, estes dois últimos, probabilidade do direito. A verdade real é relativa ao fato como aconteceu realmente no mundo naturalístico e a verdade formal é aquela decorrente da conclusão de toda a instrução do processo, ou seja, é aquela efetivamente evidenciada no processo. No campo da probabilidade, é tradicional a expressão fumus boni iuris, que significa “fumaça do bom direito”, ou seja, há, à primeira e urgente análise sobre o alegado, certa plausibilidade. Em sentido análogo está o termo verossimilhança, que corresponde à provável certeza10.
A verdade formal é atingida (chega-se) mediante as provas apresentadas no processo, mas nem sempre corresponde à verdade real. Para evidenciar a verdade formal, o ordenamento jurídico admite diversos meios probatórios, sendo espécies de prova, a documental; a testemunhal; a pericial; o depoimento pessoal das partes; e a inspeção judicial. Outras vezes, a verdade a que se chega na conclusão de um processo é decorrente de interpretação daquele que analisa a causa (magistrado), o qual deverá apresentar as razões do seu entendimento, em homenagem ao princípio da persuasão racional do juiz11. A relação entre retórica e verdade que perfaz o mundo jurídico leva à assertiva de que a argumentação, na ciência do Direito, nem sempre será conclusiva da verdade real, mas sempre será persuasiva (retórica)12.
É preciso encontrar uma conclusão interpretativa antes que se possa aplicar a lei ao caso em apreço, ou concluir que ela é inaplicável. Trata-se também de perceber que essas conclusões podem elas mesmas ser justificadas pela argumentação, pelo sopesamento e pela ponderação dos argumentos apresentados em favor de cada uma das possibilidades que estão em jogo. [...] Então, no final das contas, não é o silogismo jurídico sozinho que determina o resultado de um caso. Alguns ou todos os termos da lei terão que ser interpretados, e os fatos do caso deverão ser interpretados e avaliados para verificar o que realmente conta, se eles realmente se enquadram nos termos da lei (MACCORMICK, 2008, p. 56-57).
Mas, será a tarefa do juiz a de descobrir o “verdadeiro” direito nos textos ou na realidade social? Aqueles que se posicionam que a hermenêutica jurídica deve descobrir o direito na realidade social13, ou seja, os defensores da chamada “Escola do Direito Livre” (ou Direito Alternativo), sustentam que a justiça está acima da lei, sacrificam, para fazer justiça, a certeza e a segurança do direito (tentativa proporcionada pela legislação). De outra sorte, a via que representa a tese de que o direito deve ser descoberto nos textos argumenta que o fato de que a interpretação deve partir da norma para a solução do problema, e não do problema para a busca de uma norma que justifique o resultado desejado pelo intérprete, evita a condução de um casuísmo ilimitado e, por consequência, uma insegurança interpretativa.
Mesmo quando a ênfase interpretativa está no texto normativo, é assente que a aplicação do Direito, além de seu caráter lógico, possui substrato axiológico. Conforme a descrição de Miguel Reale, durante muito tempo, uma compreensão formalista do Direito julgou possível reduzir a aplicação da lei à estrutura de um silogismo, no qual a norma legal seria a premissa maior; a enunciação do fato, a premissa menor; e a decisão da sentença, a conclusão. Porém, o ato de subordinação ou de subsunção do fato à norma não é um ato reflexo e passivo, mas antes um ato de participação criadora do juiz, com a sua sensibilidade e tato, sua intuição e prudência, operando a norma como substrato condicionador de suas indagações teóricas e técnicas. Seria inútil e nociva, no mundo jurídico, qualquer concepção lógica divorciada da experiência social e histórica. (REALE, 2002, p. 301-302).
Mais intrigante se torna, ainda, a questão da verdade na decisão judicial quando a questão posta em litígio não encontra um ponto normativo específico para aplicação. Nesses casos de omissão legislativa ou de ausência de precedentes, o raciocínio analógico é o mecanismo natural em busca da integração da ordem jurídica a possibilitar o que será decidido. Quando existente a norma jurídica de identificação mais ajustada ao problema em litígio, ou seja, a norma existe para as peculiaridades do caso concreto, a atividade do intérprete, utilizando-se das técnicas e princípios hermenêuticos, é buscar o sentido da norma no exercício típico da interpretação. Todavia, enquanto houver lacuna na lei, isto é, não existir regramento jurídico a ser aplicado na hipótese discutida judicialmente, neste caso, o intérprete utilizará de elementos integrativos (integração), para solução do caso, como os princípios gerais do Direito, os costumes, a equidade e, principalmente, a analogia.
A analogia é o método lógico pelo qual se busca inferir uma semelhança (alvo) a partir de outra (fonte). Segundo Lloyd Weinreb, a analogia pode ser definida como raciocínio por meio de exemplo, ou seja, encontra-se a solução de um problema ao relacioná-lo com um outro problema semelhante e sua solução. Para ele, os argumentos analógicos são especialmente proeminentes no raciocínio jurídico14, a ponto de serem considerados a sua marca característica, mas não substituem as outras formas de raciocínio do Direito, quando estas são adequadas (WEINREB, 2008, p. XIV).
Conforme sustenta o autor de Harvard no percurso de suas páginas, se os fatos, conforme determinados, não se mostram claramente sujeitos a uma norma dispositiva, o juiz15 irá recorrer ao raciocínio analógico para decidir se, levando tudo em consideração (detalhes específicos dos fatos), os fatos se assemelham (semelhança pertinente) mais aos regidos por uma norma ou outra. A escolha do magistrado é instruída por um amplo entendimento daquilo que se relaciona ao tipo de decisão a ser tomada. A acumulação da experiência no universo forense faz com que o intérprete confie no seu conhecimento e na sua perícia jurídica para justificar e convencer os outros sobre a escolha realizada.
A necessidade e a proeminência dos argumentos analógicos estão diretamente relacionadas com a extensão da lacuna entre os fatos e a norma, que tais argumentos servem para preencher. Assim, na disputa judicial, cada um dos lados no litígio tentará apresentar os fatos e o direito numa perspectiva coerente com o resultado que lhe favoreça, pois, no raciocínio jurídico de aplicação, os fatos e o direito estão intimamente ligados, e as partes do litígio têm opiniões diferentes não apenas sobre a norma a ser empregada, como podem divergir também sobre os fatos (WEINREB, 2008).
Esse hábito desenvolvido pelas partes e pelo juiz de comparar o caso sub judice a outros, inclusive já julgados (método casuístico16), evidencia o quanto o argumento analógico é corriqueiro nos debates judiciais, extraindo-se, muitas vezes, a “verdade jurídica” do chamado stare decisis (precedente judicial), como forma de promoção da segurança jurídica e da igualdade.
4. A lógica da decisão jurídica nos tempos atuais
Como visto, a decisão jurídica, seja na perspectiva da criação do Direito in abstracto, seja no aspecto da sua aplicação prática, como solução do caso concreto, trata-se de uma conclusão, cujas premissas decorrem do fato social e da norma, com os propósitos que justificam a decisão. No atual momento da sociedade – plural e complexa – tanto a criação quanto a aplicação do Direito demandam análises que fogem do modelo objetivo e mais previsível como outrora. A filtragem constitucional do Direito exige que todo o ordenamento jurídico esteja em sintonia fina com a Constituição do Estado e a aplicação jurisdicional não seja mais vista apenas como uma função isolada de emprego da lei17, totalmente distinta da função legislativa, pois na aplicação da lei também há atividade criadora de direitos.
Em que pese as críticas à atividade criadora de direitos exercida pelo juiz, as leis, enquanto premissas silogísticas, não são suficientes para a previsibilidade de todas as hipóteses e fenômenos sociais que buscam regulamentar. As relações sociais, ante o seu dinamismo, impedem a total regulamentação normativa dos fatos jurídicos, por isso sempre haverá espaço para um direito novo a partir da decisão judicial. Por mais grandiosos tenham sido, os primeiros códigos da Idade Contemporânea - assim também os atuais - não escapam dos imbróglios da obsolescência e, para minimizar o risco do divórcio entre o direito e os fatos, sobretudo com o envelhecimento da lei, a jurisprudência intenta a sua adaptação ao novo contexto social18. Essa onda de originalidade judicial coloca em risco a tradicional concepção de segurança jurídica e, por isso, há aqueles que defendem que a atividade judicial deve ser sempre interpretativa e não criativa19.
Mesmo inseridos no contexto de aparente perplexidade, em que não existe, diante de uma questão jurídica, a única conclusão correta a se alcançar, pois mesmo na análise dos mesmos fatos e normas, pessoas diferentes podem chegar a conclusões diversas, a Teoria do Direito busca apresentar metodologias para a obtenção, em tese, de decisões legítimas. Para Luís Roberto Barroso, o discurso jurídico, neste cenário de questões plúrimas e intricadas, que admitem diversas soluções possíveis e que frequentemente não possibilita falar em “a resposta correta”, para ser racional, correto e justo, dependerá de sua autocapacidade argumentativa20. Assim, para o autor, um critério que oriente a argumentação jurídica deve atender a três parâmetros basilares: a) a necessidade de fundamentação normativa, em respeito à dogmática jurídica, para não ser uma argumentação estritamente lógica, moral ou política; b) a necessidade do respeito à integridade do sistema, demonstrando compromisso com a unidade, com a continuidade e com a coerência da ordem jurídica; e c) o peso (relativo) a ser dado às consequências concretas da decisão, pois o intérprete deverá envolver, em sua atividade, um equilíbrio entre a prescrição normativa (deontologia), os valores em jogo (filosofia moral) e os efeitos sobre a realidade (consequencialismo) (BARROSO, 2018, p. 387-388).
Neste cenário da contemporaneidade, os raciocínios jurídicos, que combinam a dialética e a lógica formal, estão cada vez mais dependentes das escolhas – subjetivas e pragmáticas – daquele que operacionaliza o Direito. Compete, pois, ao intérprete com poder de decisão fazer a escolha do resultado, iluminado por suas preferências e preconceitos, na esteira daquilo que preconiza um dos movimentos teóricos do Direito, denominado realismo jurídico21. A preocupação consequencialista, que estabelece, pois, o olhar pragmático da decisão, está presente inclusive como enunciado normativo, contemplado na relevante Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), a qual, alterada em 2018 pela Lei nº 13.655, sofreu o acréscimo de alguns artigos, dentre eles: “Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Pela lógica de sua estrutura, a decisão jurídica a que se chega parte dos assim denominados “valores jurídicos abstratos”, os quais são múltiplos, simpáticos para uns e rejeitados por outros. Por isso o crescente ponto de atenção com as consequências práticas da decisão, pois, como adverte Jean-Louis Bergel, toda tentativa de abordagem global dos raciocínios jurídicos é presunçosa e aleatória. Os intérpretes não escapam de suas próprias paixões e, inspirados, conforme os casos a que são apresentados, em princípios conservadores, liberais ou sociais, orientados para a segurança, o progresso ou a justiça social, eles modulam, cada uma à sua maneira, essas diversas aspirações, buscando fundamentar as suas conclusões nos mais diferentes instrumentos jurídicos, notadamente fontes diferentes, ora na autoridade da lei, ora nos precedentes judiciários e no costume. (BERGEL, 2006, p. 380).
Além do mencionado limitador legal (art. 20, da LINDB), outro instrumento metodológico que pode mitigar as acrobacias ou artifícios da decisão judicial que reflete escolhas subjetivas do julgador, é o mecanismo típico de construção do Direito no Estado de Direto Democrático, isto é, o princípio democrático, o que deve permear todo o debate político, como também as decisões judiciais que invadem tal esfera de discussão. Isso ocorrendo – o debate ativo das teses jurídicas - em nada minimiza a imparcialidade do julgador, pelo contrário, destaca a sua intenção de se abstrair de suas convicções éticas pessoais sobre o que é bom, colocando em preponderância o que é justo22.
Muitas decisões judiciais extrapolam a típica aplicação do Direito, invadindo a esfera daquilo que, em tese, estaria reservado ao debate político. Como faz menção Lloyd Weinreb, o realismo jurídico, teoria do direito norte-americana proeminente nos anos 30, evidencia, na prática, que muitas normas que os tribunais pretendem basear-se em suas decisões mascaram, na verdade, decisões essencialmente políticas, sem que haja separação clara entre atividade legislativa e atividade judicial (WEINREB, 2008, p. XVII – XVIII).
Mesmo diante das incertezas do atual panorama dos raciocínios forenses, a lógica mantém significativa relevância para a argumentação e para a interpretação jurídica.
[...] a lógica formal é apenas um instrumento a serviço da dialética, nutrida pela argumentação. Mas, ela proporciona ao raciocínio a precisão, o rigor, a certeza e a objetividade necessárias. Entretanto, ela não deve imprimir-lhe um dogmatismo hermético às realidades que se afastaria do objeto do direito, da vida dos homens em sociedade e da edição das regras de conduta. Portanto, ela depende de escolhas racionais e deve sempre ser orientada ou corrigida consoante critérios racionais ou empíricos. As soluções instiladas pelos raciocínios jurídicos dependem, por conseguinte, da escolha das proposições empregadas”. (BERGEL, 2006, p. 372-373).
Como afirmado, escolha das proposições empregadas deve respeitar o princípio democrático para que a conclusão seja legítima. Ainda assim, não se pode deixar de lado o dever de cautela com as possíveis consequências da decisão (conclusão). Aliando-se esses pontos basilares hermenêuticos, a lógica do discurso jurídico ajudará na contenção dos excessos do normativismo puro, de um lado e, de outro, da criação subjetivista da jurisprudência.
Conclusão
Como observado, o discurso jurídico realiza-se mediante padrões lógicos de linguagem, de interpretação e de argumentação, pois é um discurso que se desenvolve nos variados modelos de inferências, arraigado na interdependência linguística apropriada entre a lógica e a argumentação. Tal interdependência decorre do fato de o Direito possuir um discurso de índole persuasiva, para que exista eficácia social, isto é, efetividade do cumprimento da norma e da decisão judicial, o que, sob o manto da democracia, só ocorre quando há respeito e obediência da lei e da jurisprudência pelos seus destinatários, ou seja, pela população.
Por ser persuasivo, um dos primordiais propósitos do discurso jurídico é o convencimento e, para convencer, é necessário, sobretudo, comunicar-se bem, interpretar bem e argumentar bem. Essa premissa se fortalece ainda mais por ser o Direito o resultado de uma decisão, tanto a que dá origem à norma abstrata (lei), como a decisão de uma questão envolvendo a aplicação da norma a determinado fato (decisão judicial). Logo, por não ser a decisão, necessariamente, uma verdade real, ela não fornece certeza, sendo possível que as pessoas em geral discordem daquilo que foi decidido. Isso porque no Direito, assim como nas ciências humanas como um todo, não existe a verdade exata, destarte, o discurso jurídico está estritamente relacionado com a lógica dialética.
As constantes mudanças sociais, políticas e econômicas interferem significativamente na lógica da decisão jurídica nos tempos atuais, cujos padrões do silogismo sofrem instabilidades em seu ponto de partida – premissa maior -, vez que a “escolha” da norma a ser aplicada ao caso judicializado encontra cenários de múltiplas possibilidades em que nem mesmo o raciocínio analógico de aplicação dos precedentes é capaz de solucionar as inovações factuais que exigem do Direito uma nova percepção e análise. Não basta mais reaplicar as mesmas normas que foram estabelecidas em litígios passados análogos, pois se faz imprescindível também entender como essas normas devem ser aplicadas a outros litígios parecidos, porém, com circunstâncias diferentes. Com essas diferenças pertinentes de cada caso, muitas normas são criadas pelo próprio julgador, em sua decisão sobre o caso sub judice, num discurso criativo de justificação e aplicação, sempre pautado num juízo humano falível e que, inevitavelmente, abre espaço para incertezas.