XIII – OS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS CONTRATUAIS E SUCUMBENCIAIS E A RESOLUÇÃO DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL no. 559, DE 26.06.2007
A Resolução no. 559, de 26.06.2007, do Conselho da Justiça Federal, em seu art. 4º., parágrafo único dispõe que:
"Art. 4º. – Em caso de litisconsórcio, para efeito do disposto nos arts. 2º. e 3º. desta Resolução, será considerado o valor devido a cada litisconsorte, expedindo-se, simultaneamente, se for o caso, RPVs e requisições mediante precatório.
"Parágrafo único – Ao advogado é atribuída a qualidade de beneficiário, quando se tratar de honorários sucumbenciais, e seus honorários devem ser considerados como parcela integrante do valor devido a cada credor para fins de classificação do requisitório como de pequeno valor." (grifei)
A disposição regulamentar merece severas críticas, e não há como não se tê-la como ilegal.
Assim, e a uma, de um ponto de vista rigidamente formal, a Resolução não poderia "atribuir" a alguém uma "qualidade" jurídica que já não possuísse, sob pena de invadir a reserva da lei (art. 5º., II da CF/88).
Em que sentido, então, se deverá entender ser o advogado "beneficiário"?
Não podendo ser "beneficiário" do próprio crédito relativo à verba honorária advocatícia de sucumbência, a não ser que se tomasse a palavra por uma expressão bastante lata, a única conclusão possível é de que o advogado é tomado como alguma espécie de cessionário de direito de crédito que originariamente pertenceria à parte que o constituiu para o processo judicial, e daí o período seguinte, de que "seus honorários devem ser considerados como parcela integrante do valor devido a cada credor...".
Vê-se, sem maior dificuldade, que a norma regulamentar ora sob comento está a contrariar norma legal federal expressa – o art. 23 da Lei no. 8.906/94.
E a contrariedade é agravada, já que o crédito decorrente dos honorários advocatícios sucumbenciais, se deverem ser considerados como "parcela integrante do valor devido a cada credor", perderão sua natureza de "direito autônomo", cujo precatório, quando necessário, deverá ser obrigatoriamente expedido em seu favor, ou seja, do advogado, na dicção imperativa do art. 23 da Lei no. 8.906/94.
O parágrafo único do artigo 4º. citado sofre ainda de ilogicidade interna.
Se, em relação aos litisconsortes ativos, segundo o disposto no "caput" daquele mesmo artigo, cada crédito será considerado isoladamente ("Em caso de litisconsórcio...será considerado o valor devido a cada litisconsorte...") – logo, e a fortiori, cada credor e cada relação jurídica serão sopesados individual e autonomamente – por que razão misteriosa apenas em relação ao credor que é o advogado, quanto aos honorários sucumbenciais que inegavelmente lhe pertencem, desconsidera-se a autonomia e individualidade do crédito e da respectiva relação jurídica, determinando-se que seja havida como "parcela integrante do valor devido a cada credor"?
Alguém poderia até pretender enxergar algum benefício nessa esdrúxula redação, imaginando que o advogado poderia dividir o crédito que lhe caberia, tantas parcelas quantas fossem os litisconsortes, e assim, eventualmente, teria direito à expedição de Requisição de Pequeno Valor – até sessenta salários mínimos, em âmbito federal -, ao invés de precatório.
Mas tal fracionamento é expressamente proibido pelo art. 100, § 4º. da CF.
Na verdade, a norma representa uma volta a uma ficção jurídica – a de ter-se o advogado como uma espécie de cessionário de direitos da parte, no que diz respeito aos honorários advocatícios de sucumbência, uma cessão de direitos que sequer necessitaria ser instrumentalizada, e que, não obstante, seria passível de efetivação coativa contra a parte "cedente", e de satisfação imediata em favor do advogado, não havendo impugnação pela parte que o constituiu.
Isso ainda encontrava alguma razão de ser, muito embora o inescondível artificialismo da solução, anteriormente à vigência da Lei no. 8.906/94, quando ainda se discutia se os honorários advocatícios de sucumbência pertenceriam à parte, ou ao advogado.
Mas, com o advento do art. 23 da Lei no. 8.906/94, o retorno àquela solução artificial não encontra qualquer justificativa, muito menos, necessidade.
Também o art. 5º., § 2º. da Resolução CJF no. 559/2007 não merece outra sorte, senão a de ser havido como ilegal.
Diz ele:
"Art. 5º. – Se o advogado quiser destacar do montante da condenação o que lhe cabe por força de honorários, deverá juntar aos autos o respectivo contrato, antes da expedição da requisição.
"§ 2º. – A parcela da condenação comprometida com honorários de advogado por força de ajuste contratual não perde sua natureza, e dela, condenação, não pode ser destacada para efeitos da espécie de requisição; conseqüentemente, o contrato de honorários de advogado, bem como qualquer cessão de crédito, não transforma em alimentar um crédito comum, nem substitui uma hipótese de precatório por requisição de pequeno valor, ou tampouco altera o número de parcelas do precatório comum, devendo ser somado ao valor do requerente para fins de cálculo da parcela."
Novamente, desconsidera-se a autonomia do direito do advogado aos honorários, desta feita, contratados, ou seja, de indiscutível natureza alimentar, até para os que estão a defender a natureza não-alimentar dos honorários advocatícios sucumbenciais.
O que impediria que o valor devido à parte, sobre o qual incidirá o direito de crédito decorrente dos honorários advocatícios contratuais, fosse "destacado" – para usar a terminologia da norma regulamentar – antes da expedição da requisição de pagamento?
A operação seria meramente escritural.
Não implicaria, só por sim, em alguma transferência financeira, até porque nenhuma movimentação creditícia poderia haver, por absoluta falta de objeto, antes de efetivada a requisição – verdadeira espécie de antecipação dos efeitos do futuro depósito à ordem do Tribunal, em razão de determinações da Lei de Responsabilidade Fiscal.
E nova ilogicidade interna é constatada.
A norma trata como direito acessório o direito do advogado aos honorários contratados, em relação ao direito do seu constituinte, como se aquele "direito acessório" não pudesse ser exercido contra aquele; aliás, sua realização pressupõe, forçosamente, esse exercício, e daí o "destaque" mencionado pelo art. 5º.
Ora, como justificar um direito acessório que, ao invés de acompanhar o "principal", pode ser contra ele exercido ?
Mas o pior é que, embora o § 2º. do art. 5º., ora comentado, se esmere em tentar demonstrar que um direito (ao crédito decorrente dos honorários advocatícios contratados) não poderia "transformar em alimentar um crédito comum", o fato é que a norma regulamentar acaba por transformar um crédito de indiscutível natureza alimentar em crédito comum, submetendo-o ao regime do precatório, sem preferência, ou a pagamento parcelado, como resultado do seu somatório "ao valor do requerente para fins de cálculo da parcela".
Ou seja, a aparente intenção de não "beneficiar" créditos comuns acaba por resultar em "prejudicar" o crédito "não-comum", alimentar.
Onde a Constituição Federal deseja semelhante resultado?
Não é só.
Ao favorecer – quando não, determinar, em indisfarçável intromissão de órgão administrativo no modo de exercício de função jurisdicional típica, dizer o Direito, o que é ou não é crédito de natureza alimentar, embora o art. 6º, V da mesma Resolução estabeleça que "o juiz da execução informará na requisição os seguintes dados constantes do processo:...V-natureza do crédito (comum ou alimentar) e espécie da requisição (RPV ou precatório)" – a submissão indevida de um crédito de indiscutível caráter alimentar ao regime de parcelamento de débitos reservado a algumas hipóteses de pagamento de créditos não – alimentares, o art. 5º., § 2º. ampliou restrição ao exercício daquele direito de crédito que o advogado tem, com o que, ainda por esse viés, é materialmente inconstitucional, já que a contrariedade à Constituição Federal dá-se não só quando não se aplique norma ou princípio constitucional que deveria ser efetivado em um caso concreto, mas também quando se aplica uma norma ou princípio constitucional que não deveria ser aplicado naquele caso concreto, em lugar de outra, ou outro, que seria o constitucionalmente adequado e válido.
XIV - CONCLUSÕES
A relação jurídica envolvendo o advogado e seu cliente, a título profissional, envolverá sempre a figura do contrato de mandato;
No mandato judicial, há ainda a figura da representação;
A natureza jurídica da prestação dos serviços do advogado será a mesma, em nada importando que o advogado haja sido constituído antes ou depois de ajuizada uma ação, ou que haja firmado contrato, ou não;
É o efetivo trabalho que confere ao advogado o direito à remuneração, ou seja, aos honorários;
O direito aos honorários, desde que prestados os serviços pelo advogado, independe de instrumento formalizado, e mesmo de se haver convencionado o respectivo valor;
As questões sobre o mandato judicial entrelaçam-se com várias áreas do Direito, e com garantias, princípios e valores constitucionais – coisa julgada, isonomia, dignidade do trabalho e da pessoa humana, devido processo legal, acesso à Justiça, dentre outros;
Os honorários advocatícios sucumbenciais não decorrem do direito da parte, mas da sua vitória na causa; são um dos elementos da sentença; são direito que surge apenas com a sentença; não integram, assim, o pedido da parte;
Os honorários advocatícios, contratuais ou sucumbenciais, serão sempre de caráter alimentar; poderão ter, ou não, a mesma natureza que o crédito da parte, mas nunca serão acessório desse direito de crédito;
A aleatoriedade na percepção dos honorários sucumbenciais não é bastante para desnaturá-los como créditos de natureza alimentar;
Isso porque há exclusão de incidência de honorários advocatícios sucumbenciais em várias ações, e há situações em que o Estado responde por aqueles honorários, ainda que não tenha sido parte, tudo em conformidade com políticas públicas legislativas, legitimadas por visarem ao atendimento de bens jurídicos constitucionalmente mais relevantes;
Não há qualquer política pública legislativa explicitada no art. 100, § 1º., - A da CF/88, que legitime a exclusão dos honorários advocatícios sucumbenciais da categoria de "créditos de natureza alimentar";
Tampouco há fundamento razoável para um tratamento legislativo mais draconiano em relação aos honorários advocatícios sucumbenciais, do que quanto aos honorários advocatícios contratuais;
O art. 100, § 1º. – A da CF/88 representa positivação de entendimento jurisprudencial que vinha sendo defendido pelo STF, e a Corte Suprema entendeu que os honorários advocatícios sucumbenciais tinham natureza alimentar;
Não se pode interpretar literalmente o art. 100, § 1º. – A da CF/88 sem situá-lo no contexto da Constituição Federal, como um todo, e do seu lugar histórico – social – econômico;
A finalidade constitucional de proteção à liberdade e à dignidade da pessoa humana deve nortear aquela e todas as demais técnicas de interpretação da Constituição Federal;
Do silêncio do art. 100, § 1º. – A da Constituição Federal quanto aos honorários advocatícios sucumbenciais não se pode extrair conclusão de que não são créditos de natureza alimentar; o silêncio não é forma de expressão da vontade do Estado (ato jurídico); sob outro prisma, não há norma constitucional que atribua essa conseqüência àquela omissão;
Os arts. 4º., parágrafo único e 5º., § 2º. ambos da Resolução CJF no. 559, de 26.06.2007, são inconstitucionais e ilegais;
O art. 4º, parágrafo único contraria o art. 23 da Lei º 8.906/94; sofre, ainda, de ilogicidade interna, discriminando o credor – advogado em relação aos demais credores – partes, sem fundamento razoável; ignora a autonomia do direito de crédito do advogado decorrente de seus honorários sucumbenciais;
O art. 5º., § 2º. da Resolução também ignora a autonomia do direito de crédito do advogado aos honorários contratuais; trata esse direito como acessório do direito da parte; favorece a transformação daquele direito, de indiscutível natureza alimentar, em crédito comum; enfim, contraria o art. 100, "caput" da Constituição Federal.
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