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Comunidades quilombolas: avanços legislativos e a ausência de titulação dos territórios

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Desde 1988, a legislação sobre demarcação e titulação de comunidades quilombolas no Brasil gerou avanços e retrocessos na política de reconhecimento de seus territórios.

Resumo: O presente trabalho faz uma análise da legislação referente aos procedimentos de demarcação e titulação das comunidades quilombolas, trazendo um balanço legislativo desde 1988 até o ano de 2021, apresentando os avanços e retrocessos acerca desta temática, incorporando a discussão acerca da ausência de efetivação dos direitos de reconhecimento e titulação dos territórios quilombolas. Na confecção deste trabalho foi realizada uma pesquisa documental, analisando o tema a partir das legislações existentes e dos dados coletados acerca da política de titulação nos últimos 4 governos federais, buscando identificar os limites e desafios na política brasileira de titulação dos territórios quilombolas.

Palavras-chave: Legislação, quilombo, titulação, demarcação, território.


INTRODUÇÃO

No Brasil, um dos pontos mais sensíveis e discutidos historicamente e, ainda não superado, é o acesso à propriedade, um direito garantido há décadas em nosso país. Desde o período colonial, essa questão vem sendo um dos grandes fatores de conflito dentro da sociedade brasileira. Este movimento carrega um engajamento secular de resistência, na medida em que homens e mulheres negras, desde o Brasil colonial, buscavam no quilombo uma forma de acesso à propriedade e, ao mesmo tempo, um refúgio de liberdade e sobrevivência frente a um regime escravista no qual a população negra era tratada apenas como mercadoria.

As comunidades quilombolas foram e são o grande exemplo de organizações sociais que diariamente lutam pelos direitos territoriais de seus povos e se localizam em todas as regiões do país, na busca pela garantia de efetivação do seu direito de propriedade através da regularização de seus territórios.

O objetivo deste texto consiste em analisar o processo de reconhecimento das comunidades quilombolas no Brasil, a partir da legislação acerca da matéria tendo como finalidade realizar um breve compêndio dos avanços e retrocessos acerca da temática desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 até os dias de hoje, fazendo uma análise de todos os textos legais que incluem leis, portarias, decretos e resoluções dos órgãos competentes, ponderando cada um deles à luz dos direitos garantidos às comunidades quilombolas.

A luta e o movimento das populações negras pela garantia de acesso à propriedade se perpetuam há longos anos. Muitas das comunidades quilombolas existentes no Brasil são reconhecidas em termos identitários, entretanto, ainda não tiveram o seu direito territorial reconhecido e, tampouco, obtiveram os seus procedimentos administrativos/judiciais de reconhecimento, demarcação e titulação efetuados.

Apesar de a Constituição Federal de 1988 trazer, em seu artigo 68 do ADCT, a garantia de acesso à terra por essas comunidades e, consequentemente, adotar um novo método de reconhecimento e titulação dessas terras, a efetivação desse direito caminha a passos vagarosos, com vários avanços e retrocessos que espelham o desrespeito à normativa constitucional e o total desprezo para com aqueles que fizeram e fazem a cada dia mais parte da história do nosso país.

A história do povo negro, principalmente em função da diáspora, aqui e alhures é marcada pelo apagamento e pelo silêncio. O continente africano foi constantemente obliterado na história ou mesmo narrado de forma subalternizada nas narrativas hegemônicas. No Brasil, intelectuais negros e negras, como Abdias do Nascimento e Beatriz Nascimento, já denunciavam esse processo. Abdias, em um pronunciamento feito no dia 13 de maio de 1998, retira o véu ideológico de uma sociedade racialmente harmônica, construída por nossos “irmãos lusitanos” e escancara que os interesses econômicos, muito mais que os humanistas, pressionaram o processo abolicionista no Brasil:

Na verdade, o processo que resultou na abolição da escravatura pouco tem a ver com as razões humanitárias - embora essas, é claro, também se fizessem presentes. O que de fato empurrou a Coroa imperial a libertar os escravos foram, em primeiro lugar, as forças econômicas subjacentes à Revolução Industrial, capitaneadas por uma Inglaterra ávida de mercados para os seus produtos manufaturados. (NASCIMENTO, 1998, p. 1).

Como bem apresenta o autor, o movimento abolicionista, encampado pelos políticos, tinha foco muito mais na visão de pensar a escravidão como um entrave para construção da nação brasileira do que na condição humana do negro escravizado. Uma nação moderna precisava ser branqueada e possuir um viés liberal aos olhos do mundo, mesmo que estruturalmente a condição do negro não mudasse.

O pronunciamento de Abdias do Nascimento denota claramente que o pós-abolição promoveu uma liberdade peculiar aos africanos e afro-brasileiros recém-libertos, qual seja a possibilidade de serem entregues à própria sorte. Dentre os fatores que influenciaram a derrubada da monarquia está a questão da abolição, que causou descontentamento de agricultores cafeeiros, ávidos da mão de obra escrava para sustentar suas lavouras.

Esse foi um dos nós estruturais e políticos com os quais os republicanos tiveram que lidar a partir da Proclamação da República, em 1889. Há um enorme contingente de mão de obra escrava que, no pensamento republicano, era incompatível com a modernização do país. Portanto, o projeto desse regime político e étnico foi a miséria e a exclusão da população negra a espaços segregados nos sertões brasileiros, aquilombados por esses ex-escravos na zona rural e ou nas favelas e morros dos centros urbanos.

Nesse sentido, a ideologia da modernização capitalista era erigida a partir de ideias de branqueamento da sociedade brasileira, a partir da tese da miscigenação, conseguida, principalmente, pela importação da mão de obra estrangeira, que recebia incentivos estatais num duplo movimento de tentativa de inserir o Brasil no mercado mundial e do apagamento das matrizes africanas e indígenas da história da nação.


REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DOS QUILOMBOS NO BRASIL

O procedimento de regularização fundiária dos quilombos no Brasil tem como ponto de partida a necessidade histórica e social de reconhecimento das terras originárias das comunidades negras, partindo-se sempre nesse processo da edição de atos normativos e legislações que regulamentam sobre a temática, que, na maioria das vezes, não concedem o direito de propriedade a esses povos; mas, sim, retardam o processo de reconhecimento, privando essas comunidades do direito de identificação do seu território.

O primeiro dispositivo legal que reconhece o direito de propriedade às comunidades quilombolas veio com a instituição da 7ª Constituição do Brasil, que trouxe em seu artigo 68 dos Atos de Disposições Constitucionais Transitórios (ADCT) o seguinte texto:

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

O artigo 68 da Constituição Federal de 1988 garante a todos aqueles que são remanescentes de comunidades quilombolas, e que ocupem seus territórios, o reconhecimento de legítimos proprietários desses espaços, cabendo ao Estado emitir e entregar a essas pessoas os seus respectivos títulos de proprietários. Assim, a Constituição Federal de 1988 já reconhece como legítimos proprietários das terras ocupadas por remanescentes de quilombos os próprios quilombolas, não sendo necessária qualquer discussão acerca do reconhecimento dessas propriedades.

Apesar disso, desde a promulgação da constituição até os dias atuais, o que se percebe é o real descumprimento dessa normativa, a partir do ajuizamento de diversas ações judiciais, questionamentos administrativos perante os órgãos competentes e a instituição de textos legislativos que buscam o entrave e a postergação da titulação dos territórios quilombolas.

Após a vigência da constituição de 1988, o próximo texto legislativo que abarcou a temática de reconhecimento dos territórios quilombolas se deu com a edição da Portaria nº 307, de 22 de novembro de 1995, que trouxe diretivas sobre a concessão de títulos para o reconhecimento de propriedade às comunidades quilombolas, vejamos o teor da portaria:

“I- Determinar que as comunidades remanescentes de quilombos, como tais caracterizadas, insertas em áreas públicas federais, arrecadadas ou obtidas por processo de desapropriação, sob a jurisdição do INCRA, tenham suas áreas medidas e demarcadas, bem como tituladas, mediante a concessão de título de reconhecimento, com cláusula “pro indiviso”, na forma do que sugere o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal;”

Na sequência do primeiro ato normativo expedido pelo governo federal (Portaria INCRA 307, de 1995) e, após a implementação do artigo 68, do ADCT da Constituição federal, foi necessária a criação de uma legislação infraconstitucional que conferisse aos órgãos de controles (INCRA) o embasamento jurídico necessário para a continuação e efetivação das regularizações fundiárias no Brasil, o que veio a ocorrer anos mais tarde com a implementação da Medida Provisória de nº 1.911 – de 11 de 1999, que atribuiu expressamente ao Ministério da Cultura a competência de instituição do teor do artigo 68 do ADCT, nos seguintes termos:

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"Art. 14. Os assuntos que constituem área de competência de cada Ministério são os seguintes:

IV - Ministério da Cultura:

c) cumprimento do disposto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;”

A respectiva medida provisória foi o primeiro texto normativo que atribuiu, de forma expressa, a competência para efetivação do direito garantido pelo artigo 68 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórios. Entretanto, no mês de dezembro do mesmo ano, a competência antes instituída ao Ministério da Cultura foi delegada à Fundação Cultural Palmares, conforme previsão expressa contida na portaria 447, de 2 de dezembro de 1999, conforme expresso abaixo:

“Art. 1º Delegar competência à titular da Presidência da Fundação Cultural Palmares para praticar e assinar os atos necessários ao efetivo cumprimento do disposto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, atendidas as prescrições legais pertinentes.”

Apesar disso, só em abril do ano 2000 a Fundação Cultural Palmares editou a portaria de nº40, que trouxe os procedimentos administrativos regulamentadores para a identificação e reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos e para a delimitação, demarcação e titulação das áreas ocupadas por quilombolas.

A respectiva portaria emitida pela FCP tinha por objetivo estabelecer normas que nortearam os trabalhos administrativos realizados pela entidade para identificação, reconhecimento, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos quilombolas bem como daquelas propriedades ocupadas por grupos autodenominados como “ Terras de Pretos”, “Comunidades Negras”, “Mocambos”, “Quilombo”, dentre outras denominações existentes à época, mas que fizessem parte do processo de titulação e se encaixassem nos parâmetros trazidos pelo artigo 68 do ADCT.

A portaria trouxe importantes requisitos para a efetivação do direito de propriedade às comunidades quilombolas, tais como: a necessidade de elaboração de um relatório técnico para a outorga do respectivo título, a identificação de aspectos étnicos e históricos, a delimitação e descrição topográfica do território objeto do pedido de reconhecimento, o levantamento dos títulos e registros incidentes sobre as terras ocupadas, entre outros expressos no dispositivo legal.

Tais requisitos enriqueciam o procedimento de regularização e trazia ao processo administrativo de titulação um embasamento teórico, prático e jurídico robusto que impediria futuros questionamentos sobre ilegalidade ou ausência de fundamentação para o reconhecimento dessas comunidades.

Em seu artigo 5º, a portaria abordava também os procedimentos necessários para a elaboração do relatório técnico, trazendo em seus dispositivos a obrigatoriedade do acompanhamento de representantes das comunidades envolvidas durante os procedimentos de estudos e a necessidade de constar no relatório técnico o histórico de ocupação da terra à luz das informações prestadas pelos ocupantes, incluindo fotos e, sempre que possível, filmagens sobre a cultura bem como as particularidades existentes em cada comunidade.

Assim, a portaria nº 40 da Fundação Cultural Palmares foi a primeira grande normativa elaborada pelo poder executivo que trouxe de forma efetiva mecanismos e procedimentos para o reconhecimento e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes dos quilombos no Brasil.


A DELEGAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES DE RECONHECIMENTO À FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES

No ano de 2000, mediante a determinação de cumprimento do artigo 68 do ADCT previsto na Constituição Federal, foi delegada de forma definitiva a Fundação Cultural Palmares (FCP) através da Medida Provisória 2.123-27, que inclui o inciso III no artigo 1º da Lei 7.668/88, conferindo à respectiva fundação a competência para reconhecimento, delimitação e demarcação de terras quilombolas, que concede efetividade ao teor da portaria de nº 40 acima descriminada. Vejamos o que diz o respectivo texto legislativo:

“Lei nº 7.668/1988 Art.1º - Inciso III – realizar a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a correspondente titulação. Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares – FCP é também parte legítima para promover o registro dos títulos de propriedade nos respectivos cartórios imobiliários.”

Devemos ressaltar que, com a redação trazida pela medida provisória 2.123-27, a FCP não ficou responsável propriamente pelo cumprimento e pela execução do teor do artigo 68 do ADCT. Na verdade, o que a lei proporcionou foi a atribuição à FCP da função de reconhecimento e de delimitação das terras remanescentes de quilombos e, também, de realizar o procedimento de titulação de terras a esses povos. Facultou-se ainda à Fundação a competência de realizar o registro dos respectivos títulos de propriedade perante os Cartórios de Registro de Imóveis de todo o país.

No mês de janeiro do ano de 2001, 30 dias após a edição da medida provisória 2.123-27, que trouxe as alterações no rol de competências institucionais da FCP, houve uma alteração da redação do artigo 14, inciso IV, alínea C, da Lei de Organização da Presidência da República e dos respectivos Ministérios, através da Medida Provisória 2.123-28, de 26 de janeiro de 2001, que desenvolveu o antigo inciso IV da lei 9.649/98, trazendo as competências para delimitação e demarcação das terras quilombolas, bem como o método legislativo a ser utilizado para validação das respectivas demarcações. A lei continua vigente e traz em seu artigo 14 o seguinte teor:

Redação dada pela Medida Provisória 2.123-28/98 ao artigo 14 da Lei 9.649/98: “Art. 14. Os assuntos que constituem área de competência de cada Ministério são os seguintes: (...) IV – Ministério da Cultura: a) política nacional da cultura; b) proteção do patrimônio histórico e cultural; c) aprovar a delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como determinar as suas demarcações, que serão homologadas mediante decreto;”.

Assim, desde o ano de 2001, mantém-se a redação do artigo 14, inciso IV, alínea c da Lei 9.649/99, conferindo ao Ministério da Cultura competência para aprovar o delineamento das terras quilombolas, assim como determinar as demarcações e a efetivação desse processo mediante homologação e decreto regulamentador. Assim, desde então, a FCP se tornou o órgão responsável pelo reconhecimento e efetivação do direito de reconhecimento das propriedades dos remanescentes quilombolas, por força da edição das medidas provisórias 2.216-37 e 2.123-98, ambas de 2001, que regulamentaram os respectivos procedimentos.


O GOVERNO LULA E A CRIAÇÃO DO DECRETO 4.887 DE 2003: AVANÇOS E LIMITES

No ano de 2003, o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva toma posse e revoga no mês de novembro o decreto 3.912/2001, trazendo ao ordenamento jurídico brasileiro um novo dispositivo para efetivação do artigo 68 do ADCT (decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003), que trouxe inúmeras inovações ao processo de reconhecimento e demarcação das terras quilombolas.

O decreto 4.887 de 2003 abrange um quadro de mudanças na política de identificação, delimitação, demarcação e titulação de terras quilombolas, com o objetivo de facilitar e agilizar o processo de regularização dessas terras.

A primeira grande mudança trazida pelo decreto 4.887 foi a mudança do órgão responsável pelo processo administrativo para reconhecimento das comunidades, sendo que, no decreto 3.912, a Fundação Cultural Palmares era a responsável pelo procedimento e, com o decreto 4.887, a responsabilidade ficou a cargo do Ministério do Desenvolvimento Agrário por meio do INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Vejamos o disposto no artigo 3º do mencionado decreto:

Art. 3º Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

A segunda e mais importante mudança trazida pelo decreto 4.887 foi a alteração acerca do relatório técnico previsto no decreto 3.912, em seu artigo 3º, que trazia em seu teor cinco componentes que deveriam constar no relatório técnico, quais sejam: 1. Identificação dos aspectos étnicos, históricos, culturais e econômicos da comunidade a ser reconhecida; 2. Estudos complementares de natureza cartográfica e ambiental; 3. Levantamento dos Títulos e Registros Incidentes sobre as terras ocupadas; 4. Delimitação das terras consideradas suscetíveis de reconhecimento e demarcação; 5. Parecer jurídico.

Com o decreto 4.887 não é mais necessária a confecção de parecer técnico para o reconhecimento das comunidades como remanescentes de quilombos, uma vez que, conforme preconiza o artigo 2º caput e seus §1º e 2º, o reconhecimento se dará segundo critérios de autoatribuição, ou seja, através de autodeclaração desses povos como comunidades quilombolas, e não através de um laudo técnico realizado pela FCP, conforme era estabelecido no antigo decreto.

Apesar de não ser mais necessária a elaboração de um parecer técnico para o reconhecimento das comunidades como remanescentes de quilombos, o artigo 7 do mencionado decreto traz a necessidade da confecção pelo INCRA de um estudo (relatório operacional) de identificação, delimitação e levantamento ocupacional e cartorial da área quilombola a ser reconhecida que deverá conter várias informações, tais como: I. a denominação (descrição e reconhecimento) do imóvel ocupado pelos quilombolas; II. a área judiciária e o órgão administrativo competentes para dirimir conflitos inerentes à regularização fundiária; III. as confrontações, limites e dimensões do imóvel das terras a serem tituladas; e IV. os títulos, registros e matrículas incidentes sobre as terras objeto do reconhecimento e da demarcação;

As duas últimas inovações trazidas pelo decreto 4.887 estão previstas no artigo 13 caput e artigo 14, que dizem respeito às hipóteses de ocupação por terceiros das terras quilombolas. O artigo 13 traz que, no caso de os territórios quilombolas estarem ocupados por terceiros e os proprietários possuírem título de domínio particular (escritura pública ou registro cartorário do território), será realizada vistoria e avaliação no imóvel em questão, objetivando a adoção dos atos necessários à desapropriação. Tal dispositivo trouxe rapidez e efetividade ao procedimento de desapropriação de terras quilombolas ocupados por terceiros.

O artigo 14, por sua vez, trouxe uma nova competência ao INCRA, pela qual, a partir do momento em que se verificar a presença de ocupantes nas terras dos remanescentes dos quilombos, poder-se-á acionar os meios administrativos e judiciais cabíveis para reintegração dos povos quilombolas nesses territórios, e também fará o reassentamento das famílias que estavam nesses locais ou procederá com a indenização das benfeitorias de boa-fé realizadas nestes espaços. O artigo 14 do decreto assim dispõe:

Art. 14. Verificada a presença de ocupantes nas terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, o INCRA acionará os dispositivos administrativos e legais para o reassentamento das famílias de agricultores pertencentes à clientela da reforma agrária ou a indenização das benfeitorias de boa-fé, quando couber.

Assim, o decreto 4.887 trouxe inúmeras inovações aos procedimentos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos. Essas inovações objetivaram trazer maior rapidez e efetividade ao procedimento de regularização das terras quilombolas; mas, infelizmente, não se perpetuaram e, tampouco, se efetivaram, como será demonstrado ainda neste capítulo, em virtude de interesses políticos partidários e, principalmente, pela falta de autonomia dos órgãos responsáveis pela efetivação dessas medidas.

Nos anos de 2004 e 2005, o Incra instituiu as instruções normativas 16/2004 e 20/2005, as quais mantiveram as fundamentações legais a serem aplicadas aos procedimentos extrajudiciais (administrativo) para reconhecimento e titulação das terras quilombolas, o método para o reconhecimento (autodefinição pela comunidade), a necessidade de elaboração de relatório técnico de identificação e os métodos de medição, demarcação e titulação dos territórios quilombolas.

No que tange à Instrução Normativa n°16 de março de 2004, podemos ressaltar como inovações trazidas pelo dispositivo os seguintes elementos: 1º . O artigo 5º, em seus §§ 1º e 2º, trouxe o envolvimento direto dos órgãos estaduais ligados ao INCRA e a eles subordinados, no processo de titulação das terras quilombolas, trazendo atribuições de supervisão e coordenação a órgãos estaduais que possuem subordinação direta com o INCRA. No que tange à participação dos Asseguradores do Programa de Promoção da Igualdade, tal dispositivo foi incluído visando cumprir com uma nova cultura organizacional implementada pelo Governo Federal à época, pretendendo combater as dinâmicas de discriminação e desigualdade de gênero e raça dentro e fora do executivo federal, garantindo aos órgãos públicos servidores independentes que apliquem de forma imparcial a legislação em vigor, atreladas aos preceitos da igualdade de gênero e raça.

O segundo elemento trazido pela IN de 16 de março de 2004 foi a necessidade de confirmação pela FCP do procedimento de autodefinição da comunidade como remanescente de quilombo, através do procedimento de certificação do Registro no Cadastro Geral de Comunidades Quilombolas realizado pela FCP, conforme estabelecido no decreto 4.887/03 e pela portaria FCP nº 6 de 2004.

A IN de 26 de março de 2004 trouxe ainda em seu artigo 10, caput e incisos, a elaboração do relatório técnico de identificação, aumentando, entretanto, a quantidade de etapas e de características que deveriam ser colocadas no referido documento, estabelecendo, ainda, a competência da divisão técnica do INCRA quanto à responsabilidade pela confecção do relatório. Vejamos o mencionado artigo:

DA ELABORAÇÃO DE RELATÓRIO TÉCNICO

Art. 10. O Relatório Técnico de Identificação será elaborado pela Divisão Técnica e se dará pelas seguintes etapas:

I – levantamento de informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas e históricas, junto às Instituições públicas e privadas (Secretaria de Patrimônio da União – SPU, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis -IBAMA, Ministério da Defesa, Fundação Nacional do Índio – FUNAI, Institutos de Terra, etc.);

II – Planta e memorial descritivo do perímetro do território;

III – Cadastramento das famílias remanescentes de comunidades de quilombos, utilizando-se o formulário específico do SIPRA e contendo, no mínimo, as seguintes informações:

a) Composição familiar.

b) Idade, sexo, data e local de nascimento e filiação de todos.

c) Tempo de moradia no local (território)

d) Atividade de produção principal, comercial e de subsistência.

IV Cadastramento dos demais ocupantes e presumíveis detentores de título de domínio relativos ao território pleiteado, observadas as mesmas informações contidas nas alíneas “a” a “d” do inciso III;

V Levantamento da cadeia dominial completa do título de domínio e outros documentos inseridos no perímetro do território pleiteado;

VI Parecer conclusivo sobre a proposta de território e dos estudos e documentos apresentados pelo interessado por ocasião do pedido de abertura do processo;

Os artigos 11 e 12 da respectiva instrução normativa elencam que será publicado pela superintendência regional do INCRA, após a elaboração do relatório técnico e do levantamento cartorial e ocupacional, o extrato do edital de reconhecimento dos remanescentes de comunidades quilombolas, realizando no mesmo ato notificações aos ocupantes e confrontantes eventuais dessas propriedades, sendo disponibilizado prazo de contestação do procedimento em questão.

O artigo 13º da IN de 16 março de 2004 traz a resolução de que deverá ser encaminhado pelo INCRA, concomitantemente à publicação do edital de reconhecimento, o Relatório Técnico de Identificação aos órgãos e entidades relacionados no artigo para que, no prazo de 30 (trinta) dias, apresentem manifestação sobre as matérias de suas respectivas competências. Assim, preconiza o artigo 13:

CONSULTA A ÓRGÃO E ENTIDADES

Art. 13. Após os trabalhos de identificação e delimitação, conforme disposto no artigo 8º, do Decreto 4.887, de 20/11/2003, concomitantemente com a publicação do edital, a Superintendência Regional do INCRA remeterá o Relatório Técnico de Identificação aos órgãos e entidades abaixo relacionados, para, no prazo comum de trinta dias, apresentar manifestação sobre as matérias de suas respectivas competências:

I – Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional – IPHAN;

II – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA;

III Secretaria do Patrimônio da União, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão;

IV – Fundação Nacional do Índio – FUNAI;

V – Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional;

VI – Fundação Cultural Palmares.

§1º No caso dos incisos V e VI, a Superintendência Regional procederá a consulta através da Superintendência Nacional de Desenvolvimento Agrário.

§2º Expirado o prazo e não havendo manifestação dos órgãos e entidades, dar-se-á como tácita a concordância sobre o conteúdo do relatório técnico.

Tal artigo tem enorme importância para o procedimento de titulação, uma vez que a análise por esses órgãos irá apontar futuros problemas que podem inviabilizar o procedimento de titulação, como por exemplo a existência de tombamento da área pelo IPHAN, a eventual necessidade de autorização para uso e gozo dessa área pelo IBAMA, ou a autorização pelo órgão para a titulação dessas propriedades, a análise da SPU (Secretaria de Patrimônio da União) pra informar se tais propriedades não são do Governo Federal e, caso sejam, os trâmites para a regularização nas mãos dos quilombolas, e também a análise pela FUNAI informando se há interesse dos povos indígenas em tais áreas e se estas são reivindicadas por eles.

A última e uma das mais importantes inovações trazidas pela Instrução Normativa de 16 de março de 2004, trata-se da efetivação da titulação em nome dos remanescentes dos quilombos. Os artigos 16, 17 e 18 trazem que, não havendo impugnações ou no caso de estas serem julgadas indeferidas pelo INCRA, a Superintendência Regional procederá com o trabalho de titulação da terra ocupada pelos remanescentes dos quilombos. A titulação será reconhecida mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades, em nome de suas associações legalmente constituídas, sem qualquer dispêndio financeiro para os quilombolas, sendo obrigatória a inclusão das cláusulas de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade, devidamente registradas no cartório de imóveis competente.

De acordo com o parágrafo único do artigo 17, o caso de contestação do procedimento de titulação, seja em qual fase for, não impede a solicitação pelas comunidades de emissão de título de Concessão de Direito Real de Uso, uma autorização provisória de uso da terra a ser titulada, enquanto não se finaliza o procedimento de concessão do título definitivo de reconhecimento de propriedade. Tal previsão antecipa os direitos dos remanescentes ao uso e gozo de suas terras, direitos que são garantidos por lei.

Assim, podemos perceber que a IN de 16 de março de 2004 trouxe enormes avanços em termos procedimentais para reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos, exaurindo de forma clara e precisa os trâmites administrativos para a titulação dessas propriedades; trazendo, ainda, competências administrativas para outros órgãos também intervirem de forma direta ou indireta no procedimento de regularização, buscando dar ao máximo agilidade e efetivação a este importante direito garantido aos nossos povos originários.

A IN 20 de 2005 foi expedida cerca de 1 ano e meio após a entrada da IN 16 de 2004 e traz algumas inovações. As alterações realizadas visam complementar alguns artigos e alterar outros, tendo por objetivo a aplicação de novos métodos e modelos de reconhecimento e titulação das propriedades dos remanescentes dos quilombos dentro do processo administrativo realizado pelo INCRA.

A primeira alteração a ser citada foi a do §1º do artigo 5 pela IN 20 de 2005, que trouxe a previsão de coordenação e execução do procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação e titulação das terras quilombolas ao INCRA, através do seu órgão sede, conjuntamente com seus órgãos regionais e também por grupos ou comissões constituídas através de atos administrativos permissivos. Desta forma, apesar do caput do artigo 5º da mencionada portaria afirmar que Estados, Distrito Federal e Municípios possuem competência concorrente para os atos inerentes à titulação das terras quilombolas, a competência para execução das medidas inerentes ao procedimento administrativo de titulação até poderá ser feita de forma conjunta, mas deverá ser coordenado e executado exclusivamente pelo INCRA.

A segunda alteração traz a inclusão do §3º ao artigo 7º, estabelecendo que o processo administrativo que não contiver a Certidão de Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos da FCP será remetido pelo INCRA, através de cópia, para a Fundação, para que as providências de registro sejam tomadas, não interrompendo o prosseguimento administrativo correspondente.

A terceira alteração diz respeito à inclusão dos §§ 1º e 2º ao artigo 10, que possibilita às comunidades quilombolas que estão pleiteando a titulação de suas propriedades apresentar documentos à instrução do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, os quais poderão ser utilizados pelo INCRA após a sua análise legal e procedimental. O §2º elucida que, na hipótese de trabalho de campo em que haja ocupantes nas terras localizadas no território a ser titulado, deverá haver procedimento de comunicação prévia aos eventuais ocupantes, informando sobre a realização de visita técnica na área abrangida, com antecedência mínima de 03 (três) dias úteis.

A quarta alteração foi feita pela IN 20/2005, que traz a modificação dos artigos 13 e 14 da antiga instrução normativa 16/2004, alterando as disposições sobre a contestação ao relatório técnico de identificação e delimitação dos territórios quilombolas e sobre o julgamento dessas contestações.

O artigo 13 da mencionada instrução normativa 20/2005 manteve o prazo de 90 (noventa dias) para contestação, mediante pedido a ser feito perante a Superintendência Regional do INCRA, juntando ao pedido de contestação todos os documentos julgados necessários ao deslinde do recurso.

O órgão competente para o julgamento das contestações será o Comitê de Decisão Regional, órgão vinculado ao INCRA com âmbito e atuação estatal, que tem por competência analisar os recursos apresentados a nível Estadual das matérias de competência do INCRA. O §3º do mencionado artigo inova ao trazer a previsão de que, nos casos de contestação e recursos aos relatórios técnicos de identificação e delimitação, não suspenderão o processo administrativo, uma vez que tais recursos e contestações serão admitidos apenas em efeito devolutivo, ou seja, apenas remeterão os recursos ao órgão competente para análise (Comitê de Decisão Regional – CDR), dando prosseguimento normal ao procedimento administrativo de titulação.

No que concerne ao artigo 14, acerca do julgamento desses recursos, a IN 20/2005 traz que as contestações e manifestações relativas aos relatórios técnicos de identificação e delimitação serão julgadas por um Comitê de Decisão Regional (CDR) após a oitiva dos setores técnico e jurídico. Devemos citar ainda que os artigos acima abordam de forma transparente os procedimentos que serão tomados para análise e julgamento dos pedidos de revisão, recursos e contestação ao relatório técnico de identificação, bem como os efeitos práticos no caso de aceite ou recusa dos recursos interpostos.

A partir da leitura dos artigos citados, devemos destacar a previsão de nova publicação do relatório técnico de identificação e delimitação, nos casos em que o recurso ou a contestação forem julgados procedentes e houver mudança no relatório, garantindo nova publicidade e oportunidade de manifestação àqueles que possuam interesse no reconhecimento das propriedades em discussão.

Outra grande inovação foi o artigo 15, segundo o qual, após o julgamento realizado pelo Comitê de Decisão Regional, o relatório técnico de identificação e delimitação do território quilombola, em sua versão definitiva, será encaminhado à presidência do INCRA, para a correspondente publicação de portaria, reconhecendo e declarando os limites do território quilombola, não cabendo, assim, mais nenhum recurso administrativo.

No ano de 2007, a Fundação Cultural Palmares – FCP editou a portaria nº 98, que trouxe a regulamentação do Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos, conforme previsão contida na portaria nº 6 de 2004 da FCP e para efetivação do que dispõe o decreto nº 4.887/03, mais especificamente em seu artigo 3º, §4º, que traz a necessidade de realização do cadastro pelas comunidades.

A portaria reúne em seus artigos 1º, 2º e 3º os procedimentos para a inclusão da comunidade no Cadastro, o qual é realizado em livro próprio, a partir da declaração de autodefinição de identidade étnica, segundo uma origem presumida, conforme previsão do artigo 2º do decreto nº 4.887/03. O artigo 3º da portaria sintetiza os procedimentos para a emissão da certidão de autodefinição que deverão ser cumpridos em sua integralidade para ter o pedido deferido pela FCP.

A portaria nº 98 da FCP foi importante para regulamentar o procedimento de Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos, uma vez que, através desse registro perante a Fundação, os órgãos públicos ligados ao Governos Federal, Estadual e Municipal podem oferecer a essas comunidades assessoria administrativa através de seus órgãos e entidades, auxiliando-as, e também a seus integrantes, na busca por seus direitos elencados em nossa legislação, atuando no reconhecimento efetivo desses povos, como parte integrante de nossa história, concedendo-lhes a garantia de seus direitos e obrigações como cidadãos.

Sobre os autores
Aguinaldo Rodrigues Gomes

Universidade Federal do Mato Grosso do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Caio; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Comunidades quilombolas: avanços legislativos e a ausência de titulação dos territórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7359, 25 ago. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105787. Acesso em: 22 dez. 2024.

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