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Comunidades quilombolas: avanços legislativos e a ausência de titulação dos territórios

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A INSTRUÇÃO NORMATIVA N° 49/2008 E OS PROCEDIMENTOS DE CONFECÇÃO DO RTID – RELATÓRIO TÉCNICO DE IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO

Em Setembro de 2008, o INCRA editou uma nova Instrução Normativa, a IN 49/2009, que trouxe algumas mudanças na antiga IN 20/2005, alterando alguns pontos da conceituação dos territórios quilombolas, acresceu um tópico no procedimento administrativo para abertura do processo de reconhecimento e titulação, incluiu a consulta a alguns órgãos do Governo Federal para manifestar acerca dos requerimentos de titulação e, por fim, alterou de forma significativa o procedimento de identificação e delimitação das comunidades, mais especificamente no que toca à elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – RTID.

A primeira alteração trazida pela IN 49/2008 foi a simplificação da conceituação inserida no respectivo ato normativo do que vem a ser considerado como terras ocupadas por remanescentes de quilombos, colocando a instrução normativa que serão consideradas “toda a terra utilizada para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural”, abolindo, assim, do conceito anteriormente dado pela IN 20/2005, os aspectos tradicionais utilizados por essas comunidades, tais como os seus territórios destinados aos cultos religiosos e os demais sítios que continham reminiscências históricas de seus “antepassados”. A alteração do dispositivo foi um retrocesso aos povos quilombolas, uma vez que sintetizou uma conceituação que era aplicada de forma ampla, gerando a oportunidade de eventuais discussões acerca dos aspectos genéricos trazidos pelo novo dispositivo legal.

Em relação à segunda alteração, houve o acréscimo dos §§ 3º e 4º ao artigo 7º, representando um retrocesso ao procedimento administrativo de regulamentação dos direitos quilombolas, visto que o §3º trouxe a hipótese de suspensão do processo administrativo no caso de a comunidade quilombola não possuir a certificação de autodefinição quilombola perante a FCP, o que não ocorria na IN 20/2005, que permitia a continuidade do procedimento administrativo com ulterior apresentação do documento. O §4º, por seu turno, trouxe a obrigatoriedade de intimação de vários órgãos federais para manifestar acerca da abertura dos processos administrativos, para que possam apresentar informações capazes de contribuir com os procedimentos de identificação e delimitação das comunidades quilombolas.

A terceira e mais relevante alteração trazida pela IN 49/2008 foi a alteração nos procedimentos de confecção do RTID – Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, que trouxe uma extensa lista de requisitos, elementos e procedimentos dentro do artigo 10, que deverão ser cumpridos para a expedição do respectivo Relatório Técnico que se trata do mais importante documento previsto na legislação para a concessão do título de propriedade às comunidades quilombolas.

Com a edição da IN 49/2008, o relatório técnico de identificação e delimitação deverá conter em sua composição seis requisitos básicos, que serão aqui elencados, bem como apresentados o teor de documentos e conteúdos que deverão estar presentes em cada requisito.

O primeiro requisito que deverá constar será a confecção do relatório antropológico de caracterização histórica, econômica, ambiental e sociocultural devendo constar nesse relatório os seguintes documentos:

  1. Introdução, contendo os critérios de autoatribuição com a trajetória histórica desses povos, trazendo a presunção da ancestralidade negra relacionada com a resistência e a opressão histórica sofrida por eles e, também, a apresentação da equipe técnica envolvida, bem como da metodologia e dos processos de levantamento de dados qualitativos usados na elaboração do relatório;

  2. A apresentação de dados gerais, que deverá conter as informações gerais sobre o grupo a ser reconhecido; a caracterização do município, bem como da área que faz parte da comunidade; e os dados disponíveis (quando houver) das taxas de natalidade e mortalidade do grupo nos últimos anos;

  3. O histórico da ocupação, trazendo a descrição do surgimento da comunidade, o levantamento de documentos e bibliografias existentes sobre a história do grupo, a menção sobre a existência de patrimônio cultural da comunidade e sua descrição, indicação das terras que são atualmente utilizadas para moradia do grupo e a situação de sua ocupação ou não;

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  4. A organização social do grupo, identificando os critérios de pertencimento e fronteiras sociais do grupo, a descrição da representação genealógica do grupo, o levantamento histórico do grupo com a descrição do percurso histórico vivido pelas gerações anteriores e a descrição da forma de representação política do grupo;

  5. A descrição de todo o ambiente e da produção rural e econômica de maneira ampla existente dentro da comunidade, devendo incluir ainda a descrição da lógica de apropriação, das áreas imprescindíveis à preservação ambiental e a indicação de obras e empreendimentos existentes na comunidade;

  6. E, por fim, a conclusão trazendo a proposta de delimitação da terra com a planta de área proposta, com a descrição pormenorizada dos espaços e das paisagens que fazem parte da comunidade;

O segundo requisito a ser colocado no RTID é o levantamento fundiário de toda a extensão da comunidade a ser titulada, devendo constar desse levantamento os seguintes dados e documentos:

  1. A menção da existência ou não de populações não quilombolas que morem dentro das comunidades e, em caso positivo, a descrição das áreas ocupada por eles, com o seu respectivo mapeamento, as datas da ocupação e a descrição de eventuais benfeitorias existentes;

  2. A descrição pormenorizada das áreas pertencentes aos quilombos, com o respectivo mapeamento, e a menção à existência ou não de títulos de propriedade;

  3. As informações sobre a natureza das ocupações não quilombolas que porventura existam dentro das comunidades, com a respectiva identificação dos títulos de posse ou de domínio que eventualmente existam;

  4. As informações de documentos relacionados à propriedade onde a comunidade está instalada, no caso de algum ocupante dispor de tais documentos;

O terceiro requisito que deverá constar do RTID é a planta e o memorial descritivo do perímetro da área reivindicada, sendo realizado o procedimento de georreferenciamento de todo o perímetro solicitado no processo administrativo de reconhecimento, bem como a menção de todos os imóveis contíguos à área a ser reconhecida, bem como a menção das reservas legais existentes no território quilombola;

O quarto requisito a ser realizado é o cadastramento das famílias remanescentes de quilombos que existem em toda a área objeto de titulação, de acordo com os formulários e os requisitos legais existentes perante o INCRA;

O quinto requisito é a confecção de um mapeamento da área a ser titulada para verificar se o perímetro que ela ocupa esteja sobreposta em áreas sensíveis, quais sejam: área de preservação permanente; áreas de segurança nacional; áreas de faixa de fronteira; terras indígenas ou ainda áreas que estejam situadas em terrenos da Marinha.

O sexto requisito será a confecção de um parecer final da área técnica e jurídica do INCRA sobre a proposta de reconhecimento e titulação da área pleiteada, considerando todos os estudos e os documentos que foram anexados no processo administrativo.

O artigo 10 da mencionada instrução trouxe ainda como mudança, a necessidade de comunicação prévia à comunidade do início dos trabalhos de campo a serem realizados no território com antecedência mínima de 03 (três) dias, sendo que o relatório técnico a ser realizado deve ser confeccionado por especialista que possua vínculo funcional com o INCRA. A comunidade poderá apresentar peças técnicas ou quaisquer documentos necessários à instrução do RTID, as quais poderão ser avaliadas e utilizadas pelo INCRA de acordo com sua avaliação.

No que se refere à última alteração trazida pela IN 49/2008, o RTID será submetido ao Comitê de Decisão regional do INCRA que, ao verificar o preenchimento dos requisitos previstos para a sua elaboração, remeterá ao Superintendente Regional do INCRA para a confecção e publicação de um edital com todas as informações previstas no RTID, na unidade federativa onde se localizada a comunidade a ser titulada.

Assim, podemos afirmar que, conforme os atos normativos editados de 1995 até 2008, há um nítido intuito protelatório e moroso para o reconhecimento dos territórios quilombolas no Brasil. Apesar de percebermos uma melhora gradativa nos anos de 2002 a 2008, mais especificamente com a instituição da autoatribuição (Decreto 4.887/2003) como principal documento para o reconhecimento perante o INCRA e a FCP. Outros fatores como a instituição do RTID, a falta de investimento em servidores efetivos nos órgãos públicos e a ausência de convênios com instituições que poderiam auxiliar no reconhecimento dessas propriedades fazem com que o procedimento de titulação não tenha seguimento ou até mesmo permaneça paralisado por anos.

Dessa forma, as conquistas relativas aos povos quilombolas ainda são demoradas e os desafios a serem alcançados por essas pessoas são maiores ainda. O reconhecimento de um quilombo na atualidade não se resume apenas ao registro formal do título, e tampouco se efetiva com a regulamentação de terras prevista na Constituição Federal. Há uma necessidade flagrante de mais estudos, informações, visibilidade e diálogo entre o poder público e essas comunidades, bem como uma maior celeridade e rapidez na aplicação dos textos normativos que envolvem a matéria, visando, assim, a busca pela efetivação dos direitos garantidos a esses povos.


O GOVERNO DILMA ROUSSEFF E AS POLÍTICAS PARA TITULAÇÃO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS

Nos anos de 2011 a 2016 tivemos o governo da Presidente Dilma Rousseff, que se constituiu de maneira tímida no que tange às políticas de reconhecimento e titulação das comunidades quilombolas no Brasil, sendo que, em 6 anos de governo, só tivemos 2 (dois) atos administrativos e 1 (uma) legislação que abarcasse de forma direta a temática de titulação dos territórios quilombolas, sendo mantidas, assim, as políticas de regularização herdadas do governo Lula.

A baixo está uma tabela com os respectivos atos administrativos:

Tabela 1 - Atos legislativos governo Dilma Rousseff

Portaria Interministerial 210/2014

Competência do Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário para outorgar aos grupos remanescentes das comunidades dos quilombos a Concessão de Direito Real de Uso – CDRU;

Portaria Incra 397/2014

Instaurar a Mesa Nacional de Acompanhamento da Política de Regularização Fundiária Quilombola;

Lei 13.043/2014

Isenção ITR para imóveis rurais reconhecidos como áreas ocupadas por remanescentes de quilombos;

Fonte: Própria (2022)

O primeiro ato normativo expedido pelo governo Dilma foi a Portaria Interministerial 210/2014, que atribuiu a competência ao Ministério de Desenvolvimento Agrário para concessão de Direito Real de Uso (CDRU) às comunidades quilombolas que sejam beneficiárias de programas do Governo Federal. A respectiva Portaria Interministerial não apresentou nenhum avanço no que tange aos processos de reconhecimento e titulação, uma vez que tal concessão de Direito Real de Uso não confere aos seus possuidores o direito de propriedade; mas, sim, apenas o direito de uso temporário da terra sobre a qual detenham o domínio.

Conforme preleciona o jurista Flávio Tartuce, em sua obra Manual de Direto Civil:

“O direito real de uso pode ser constituído de forma gratuita ou onerosas, havendo a cessão apenas do atributo de utilizar a coisa, seja ela móvel ou imóvel. Por isso se justifica as nomenclaturas usufruto anão, nanico ou reduzido. São partes do direito real em comento: A. Proprietário – faz a cessão real da coisa. B. Usuário – tem o direito personalíssimo de uso ou utilização da coisa.”

Assim, o direito real de uso não confere aos seus possuidores (quilombolas) o direito de propriedade de suas terras, conferindo apenas uma autorização personalíssima de uso desse bem, ficando a União Federal como legítima proprietária dos imóveis, não solucionando, portanto, a problemática de regularização dessas propriedades; mas, sim, retardando ainda mais os processos administrativos de titulação.

O Governo Dilma editou também em 2014 a portaria INCRA 397, que trouxe em seu teor a criação e instituição da Mesa Nacional de Acompanhamento da Política de Regularização Fundiária Quilombola, a qual teve a finalidade de fortalecer a interlocução entre os órgãos governamentais e a sociedade civil. O objetivo primordial da portaria foi o de discutir a situação dos processos de regularização fundiária com os respectivos movimentos reivindicatórios e buscar conjuntamente com Estados e Municípios ações que visassem à regularização fundiária dos territórios quilombos.

Apesar da edição de atos normativos que objetivassem o desenvolvimento nos procedimentos de regularização fundiária das comunidades quilombolas, conforme dados da Comissão Pró-Índio de São Paulo, no primeiro mandato da Presidente Dilma Rousseff, apenas 12 comunidades quilombolas tiveram o seu processo de titulação deferidos, sendo que todos eles foram reconhecidos de forma parcial, ou seja, não tiveram a sua totalidade de território titularizada. Abaixo, apresenta-se uma tabela com o quantitativo de terras tituladas pelos governos Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma:

Tabela - Terras tituladas nos governos Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma

Fonte: Comissão Pró – Índio de São Paulo (2014)

O segundo mandato da presidente Dilma também não apresentou muitas mudanças, titulando mais 08 (oito) territórios, sendo que dentre eles apenas 04 (quatro) foram concedidos em sua integralidade, conforme dados do INCRA. Assim, podemos perceber uma atuação simplória e ineficaz de regularização das comunidades quilombolas no governo Dilma Rousseff; mas que, em comparação aos demais governos que a sucederam, ainda apresentou uma das melhores taxas de titulação.

Sobre os autores
Aguinaldo Rodrigues Gomes

Universidade Federal do Mato Grosso do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Caio; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Comunidades quilombolas: avanços legislativos e a ausência de titulação dos territórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7359, 25 ago. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105787. Acesso em: 22 nov. 2024.

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