OS GOVERNOS LULA, DILMA, TEMER, BOLSONARO E AS POLÍTICAS DE TITULAÇÃO DAS PROPRIEDADES QUILOMBOLAS
A Constituição Federal de 1988 foi o primeiro mecanismo legal que regulamentou o direito das comunidades quilombolas à propriedade de seus territórios. O artigo 68 do ADCT foi o marco regulamentar do acesso à terra por essas comunidades, foi ele que determinou o reconhecimento das propriedades dos quilombos que já estão ocupados, garantindo-lhes a titulação.
De acordo com a Comissão Pró-Índio de São Paulo, o primeiro ato administrativo de regulamentação dos procedimentos para concessão de título de propriedade aos povos quilombola se deu através da Portaria de nº 307, expedida pelo INCRA no ano de 1995, determinando que suas áreas fossem medidas, demarcadas e tituladas mediante a concessão de título de reconhecimento. A respectiva legislação foi a única que vigorou até o ano de 1999, não promovendo, portanto, nenhum procedimento de desapropriação de terras quilombolas invadidas, gerando, assim, segundo a CPI-SP conflitos permanentes entre essas comunidades até os dias atuais.
Ainda na gestão Fernando Henrique Cardoso, foi editado o decreto 3.912, que estabeleceu a regra do marco temporal. Essa regra estabelecia que somente poderiam ser titularizadas as terras que fossem ocupadas por quilombolas até outubro de 1988 e que eram ocupadas por quilombos até o ano de 1888. Tal regra foi contestada perante o Supremo Tribunal Federal e no ano de 2021 teve a sua aplicação rejeitada e foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte.
Durante a vigência do decreto, nenhum território quilombola foi titulado, o que mostra a insignificância do governo FHC nas políticas de reconhecimento das comunidades quilombolas, não concedendo em 4 anos nenhum título de propriedade definitivo, proporcionando apenas 12 títulos de reconhecimento de comunidade quilombola, sendo todos parciais.
A gestão do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) foi a mais próspera no que se refere ao reconhecimento e à titulação das comunidades quilombolas. De acordo com dados obtidos no site do INCRA e da CPI-SP, o governo Lula certificou, de 2003 a 2006, cerca de 811 territórios quilombolas e, no seu segundo mandato (de 2007 a 2010), mais 600 territórios, totalizando 1.411 territórios quilombolas. Segue, abaixo, gráfico com as certificações das comunidades quilombolas pelo governo federal.
Tabela - Certificação de territórios quilombolas na Fundação Cultural Palmares 2003 a 2021
Fonte: Achados e pedidos (2021)
Os dois governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foram os melhores governos com relação a territórios titulados. No primeiro mandato, 4 (quatro) territórios foram titulados e, no segundo, foram mais 12 (doze) territórios titulados, alguns de forma total e outros de forma parcial. Assim, o governo Lula foi um dos melhores em termos de avanços para as comunidades quilombolas, seja em termos de avanços nas legislações acerca da temática, seja em números de reconhecimento e de titulação dessas comunidades.
Os dois governos da Presidente Dilma Rousseff também foram muito bons em comparação aos governos que os sucederam, certificando no primeiro mandato (2011-2014) 737 territórios e, no segundo (2015-2016), 98 comunidades.
No que tange às titulações, o Governo Dilma não teve a melhor das referências, sendo que no primeiro mandato titulou 12 territórios e, no segundo, 8 territórios. Ocorre que, no segundo mandato, a Presidente titulou 8 territórios sendo todos eles de forma parcial, isto é, não concedeu às comunidades a totalidade de suas terras, havendo sempre supressão de áreas. Abaixo, apresenta-se um gráfico com o quantitativo de territórios titulados por governo:
Tabela - Territórios quilombolas titulados por governo
Fonte: Achados e pedidos (2021)
Apesar dos poucos avanços do governo Dilma, este se consagrou como o segundo melhor governo em termos de políticas públicas voltadas as comunidades negras, sendo que os governos que a sucederam quase nada fizeram em prol dos povos quilombolas.
O golpe instituído em 2016 contra a Presidente Dilma colocou no poder o Ex-Presidente Michel Temer, que com um governo pífio e sem qualquer relevância no cenário nacional, instituiu em dois anos de governo um desmanche nas políticas públicas de reconhecimento das comunidades quilombolas. O governo Temer certificou 452 terras quilombola, todos processos antigos que estavam represados no INCRA, uma vez que em seus dois anos de governo suspendeu a abertura de novos processos de reconhecimento com base na ADI n° 3.239, que posteriormente veio a ser rejeitada pelo STF.
O governo Temer em dois anos de governo, conforme dados do INCRA, titulou 8 comunidades quilombolas, sendo que dentre essas comunidades tituladas, apenas 2 de fato foram efetivadas em sua gestão, visto que conforme consulta ao site do INCRA, as demais comunidades já haviam sido tituladas e apenas os respectivos títulos foram entregues em sua gestão, mas a titulação em si não ocorreu em seu governo.
Após a onda de retrocesso do governo Temer, veio a catástrofe do governo Bolsonaro que deu sequência aos bloqueios dentro do INCRA que impediram o prosseguimento dos processos de regularização das terras quilombolas. O Governo Bolsonaro foi o governo que menos concedeu títulos às comunidades quilombolas, reconhecendo em 4 ano de governo apenas 4 territórios sendo que todos estes de forma parcial.
Ademais, conforme dados obtidos no site da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), o governo Bolsonaro foi o que menos investiu em políticas para as comunidades quilombolas, cortando 90% da verba para ações de reconhecimento e indenização desses territórios. O orçamento da FCP esteve em queda desde o primeiro ano de governo (2019) com a cifra de 25,9 milhões, passando em 2020 para 19,4 milhões, em 2021 para 9,6 milhões, representando só no último ano um corte de 50,5%.
Destarte, podemos afirmar que, apesar de os governos Lula e Dilma ficarem muito aquém do que se espera para governos populares no que tange à efetivação de políticas públicas para as comunidade quilombolas, conseguimos afirmar, em vista do exposto acima, que os anos de 2003 a 2015 foram os melhores anos para reconhecimento e titulação de comunidades quilombolas, seja pela edição de textos legislativos que auxiliassem nos trâmites regulamentários, seja pelo número de territórios reconhecidos, ou ainda pela maior agilidade nos procedimentos perante o INCRA; mas, principalmente, por terem sido os únicos dois governos pós-Constituição Federal que de fato fizeram políticas públicas para efetivar o direito de propriedade ao povo remanescente dos quilombos no Brasil.
CONCLUSÃO
A partir dessa análise histórica sob o viés legislativo acerca da efetivação ao direito de propriedade das comunidades quilombolas, percebe-se no antigo e no atual cenário brasileiro dois planos indissociáveis, quais sejam o plano da existência das leis, decretos e portarias, que visam regulamentar o processo de efetivação ao direito de propriedade, e de outro o plano da concretização do direito de propriedade às comunidades quilombolas.
Assim, é possível afirmar que o processo de reconhecimento e de titulação das comunidades quilombolas é longo, conflituoso, burocrático e esbarra em interesses da direita conservadora e dos grandes latifundiários, o que dificulta e torna o processo moroso e na maioria das vezes mais distante de sua conclusão. Com as pesquisas realizadas para a confecção deste artigo, foi possível perceber que o reconhecimento abrange muito mais do que fatores meramente econômicos, esbarrando em interesses políticos/partidários e da elite tradicional brasileira.
O debate acerca de um conceito mais restrito ou mais amplo do que vem a ser “comunidades remanescentes de quilombo” vem causando um grande entrave nos procedimentos de titulação, uma vez que o instituto da “autodeclaração” não traz limites ou previsões do que venham a ser considerado quilombo, o que vem sendo usado como uma justificativa para o não reconhecimento e titulação de territórios quilombolas.
Desta feita, o início de uma política de reconhecimento e discussão sobre as comunidades quilombolas se faz necessária em nossa sociedade, para que através dela possamos reafirmar esses sujeitos como integrantes da nossa realidade, e a partir disso, afastar as diversas justificativas para o não reconhecimento e titulação das propriedades quilombolas.
Destarte, apesar de todos os problemas aqui apresentados com relação a efetivação dos territórios quilombolas, os avanços em termos legislativos sobre a temática foram diversos, começando com o artigo 68 do ADCT e prosseguindo com diversos decretos e portarias, dando visibilidade e voz a um grupo que até antes de 1988 era juridicamente inexistente.
Podemos afirmar, portanto, que conforme os dados aqui apresentados houve um processo de expansão legislativa acerca dos procedimentos de titulação das propriedades pertencentes as comunidades quilombolas, mas não houve até o presente momento um processo de real efetivação desses direitos garantidos pela legislação. A realidade atual é que o direito é vastamente reconhecido, mas a efetivação dele ainda caminha a passos vagarosos.
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https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
Abstract: The present work makes an analysis of the legislation referring to the demarcation and titling procedures of the quilombola communities, bringing a legislative balance from 1988 to the year 2021, presenting the advances and setbacks on this theme, incorporating the discussion about the lack of effectiveness of the rights recognition and titling of quilombola territories. In the preparation of this work, a documentary research was carried out, analyzing the theme from the existing legislation and the data collected about the titling policy in the last 4 federal governments, seeking to identify the limits and challenges in the Brazilian policy of titling the quilombola territories.
Keywords: Legislation, quilombo, titling, demarcation, territory.