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O não-princípio da licitação

Agenda 04/11/2007 às 00:00

Discorrer-se-á sobre a diferença entre princípios e regras, para explicar o motivo pelo qual deve ser a licitação entendida como regra e não como princípio.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO; I.1 APRESENTAÇÃO. CAPÍTULO II – A LICITAÇÃO; II.1 CONCEITO. CAPÍTULO III – O DEVER DE LICITAR; III.1 DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS; III.2 A LICITAÇÃO COMO REGRA. CAPÍTULO IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS; IV.1 CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.

CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO

A licitação, desde os primeiros diplomas legais que dispuseram sobre o tema, tem suscitado discussões doutrinárias e divergência jurisprudencial quando da aplicação do instituto, em suas diversas modalidades.

Respeitados doutrinadores, constitucionalistas [1] e administrativistas [2], elevam-na à categoria de princípio, instrumental bem verdade, como decorrência dos princípios da isonomia e da moralidade administrativa.

Em que pese entendimento contrário, como os acima mencionados, propõe-se, aqui, desmistificar o chamado "princípio" da licitação, mostrando que, não obstante a regra ser licitar, as exceções à regra assumem tal significação que não se pode atribuir ao instituto o status de princípio.

Assim, a proposta deste trabalho é demonstrar, respeitadas as opiniões em contrário, que inexiste um "princípio da licitação".

Em uma primeira etapa, discorrer-se-á sobre a diferença entre princípios e regras, para, depois e a partir desta distinção, explicar o motivo pelo qual deve ser a licitação entendida como regra.


CAPÍTULO II – A LICITAÇÃO

Ao Poder Público é imprescindível a realização de atividades que permitam a prestação de serviços públicos e o funcionamento da burocracia. Para tanto, dentre um sem-número de providências, fazem-se necessários certos atos, v.g., a contratação de serviços, a aquisição de bens e a outorga de concessões e permissões para a prestação de serviços públicos. E o meio pelo qual a Administração lança mão para tanto é a licitação.

Assim, Adilson de Abreu Dallari considera a licitação "um procedimento administrativo unilateral, discricionário, destinado à seleção de um contratante com a Administração Pública para a aquisição ou a alienação de bens, a prestação de serviços e a execução de obras" [3]

Hely Lopes Meirelles, no clássico Direito Administrativo Brasileiro, concebe a licitação como:

"o procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse. Como procedimento, desenvolve-se através de uma sucessão ordenada de atos vinculantes para a Administração e para os licitantes, o que propicia igual oportunidade a todos os interessados e atua como fator de eficiência e moralidade nos negócios administrativos." [4]

De maneira analítica, define Celso Antônio Bandeira de Mello:

"(...) a licitação é o procedimento administrativo pelo qual uma pessoa governamental, pretendendo alienar, adquirir ou locar bens, realizar obras ou serviços, outorgar concessões, permissões de obra, serviço ou de uso exclusivo de bem público, segundo condições por ela estipuladas previamente, convoca interessados na apresentação de propostas, a fim de selecionar a que se revele mais conveniente em função de parâmetros antecipadamente estabelecidos e divulgados." [5]

Deste conceito, infere-se que a licitação possui, de fato, dois objetivos, a saber: a) selecionar a proposta mais vantajosa às entidades governamentais; e, b) permitir a qualquer interessado em celebrar contratos com a Administração a participação no certame, ou seja, garantir o respeito à isonomia.

Sem a pretensão de originalidade, senão de síntese, pode-se afirmar que a licitação é um procedimento promovido pelo Poder Público, que tem como objeto a escolha de um contratante com a Administração Pública, que será aquele que apresentar a proposta mais vantajosa "às conveniências públicas." [6]

Não se presta, pois, a licitação, a nortear ou traçar diretrizes à Administração, senão ser obrigatória ou não em determinado caso concreto. Pelo que consideramos a licitação uma regra a ser obedecida pelo Poder Público, como explanaremos com mais minúcia em capítulo específico.


CAPÍTULO III – O DEVER DE LICITAR

Como o objetivo deste trabalho é demonstrar que o instituto da licitação é uma regra a ser observada pela Administração, faz-se necessário diferenciar princípios e regras. Doravante, pois, buscar-se-á discorrer acerca dessas duas espécies de normas que formam um sistema normativo que rege o Estado Democrático de Direito. [7]

Antes de mais nada, reconhece-se que parte da doutrina [8] nem mesmo admite uma diferença de natureza lógica entre princípios e regras. A doutrina tradicional, a seu turno, contrapunha norma e máxima (princípio) ao invés de regras e princípios. [9] Não obstante, nos filiamos à corrente majoritária que entende serem princípios e regras dois tipos de normas, ainda que haja divergência quanto à natureza da diferenciação, o que, de forma alguma, implica identidade entre os conceitos.

Trata-se assim de uma difícil tarefa tal separação. Autores consagrados no meio acadêmico jurídico ensinam, cada um a seu modo, o que deve ser chamado de princípio e o que é uma regra. Mas o que é praticamente unanimidade entre eles é considerar princípios e regras como duas espécies do gênero norma. Ambos dizem o que deve ser. Robert Alexy, por exemplo, assinala que "tanto as regras como os princípios também são normas." [10]

Canotilho [11] anota vários destes critérios sugeridos pela doutrina. Vejamos alguns deles:

1. Grau de abstração: por este critério, os conceitos de princípio e regra poderiam ser individualizados pelo fato de que o primeiro possuiria um grau de abstração elevado, enquanto que a regra teria um grau relativamente baixo de abstração.

2. Grau de determinabilidade quando da aplicação ao caso concreto: os que assim entendem, defendem que os princípios carecem de mediações concretizadoras, através do legislador ou do juiz, porque são vagos e indeterminados. As regras, por sua vez, teriam aplicação direta.

3. Caráter de fundamentalidade no sistema de fontes do direito: os princípios estariam num patamar superior às regras por serem normas de natureza estruturante ou com papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema de fontes ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico.

4. Proximidade da idéia de direito: princípios seriam padrões da justiça. Regras poderiam ser normas vinculativas com conteúdo meramente funcional.

5. Natureza normogenética: as regras advêm dos princípios. São estes que fundamentam aquelas.

Apresentados esses critérios clássicos, passar-se-á à análise das diferenças, sobretudo qualitativas, apresentadas por diversos autores, entre princípios e regras.

Em 1956, Josef Esser [12] já tratava do tema. Para ele, os princípios continham apenas fundamentos para justificar uma ordem e não ordens de maneira direta. Em conformidade com esse pensamento, Hans Wolff, Otto Bachof e Ernst Forsthff [13], defenderam que os princípios seriam diferentes das regras por serem dedutíveis objetivamente do princípio do Estado de Direito, da idéia de Direito ou do princípio da justiça, funcionando como fundamento jurídico das decisões, faltando-lhes, porém, a qualidade de normas de comportamento, ante a ausência de determinação. Nessa mesma linha, Karl Larenz [14] definiu princípios como normas jurídicas que não possuem hipótese e uma conseqüência determinadas, mas apenas uma idéia jurídica geral que direciona o processo normativo de concretização.

Os autores citados no parágrafo anterior foram personagens de uma primeira fase da definição de princípios e regras, na qual "se constatou que pertencem ao Direito não apenas aquelas normas que têm uma hipótese e uma conseqüência determinadas (regras), mas também aquelas que estabelecem prescrições ligadas indiretamente a valores, fins, idéias e topoi a serem institucionalmente determinados (princípios). [15]

Numa segunda etapa, o estudo aprofundou-se. O jurista Ronald Dworkin [16] também assinalou que o Direito é constituído por regras e princípios. Ante a dificuldade de conceituação, propôs uma definição negativa de princípio, que depende da distinção entre regras e outros padrões (standards): conjunto de normas outras que não são regras jurídicas.

Definição geral que engloba, de forma mais precisa, a noção de diretriz política que diz respeito a um tipo de norma (standard) cujo objetivo é o bem-estar geral (econômico, político e/ou social) da comunidade. O termo princípio, de modo mais específico, diz respeito a um tipo de norma cujo respeito é um requisito de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade. Exemplificando, a determinação de que ninguém deve beneficiar-se da sua própria torpeza funciona como um princípio, enquanto que a determinação de que os acidentes de trânsito devem diminuir é norma que funciona como diretriz política.

A distinção entre princípios e regras é uma distinção lógica. Ambos são conjuntos de normas (standards) que apontam para decisões particulares sobre obrigações jurídicas numa particular circunstância. Mas se diferenciam no caráter da direção que apontam. As regras são aplicáveis na forma do tudo-ou-nada, ou seja, são disjuntivas, aplicam-se ou não se aplicam ao caso. Por sua vez, os princípios, embora muito se pareçam com as regras, não indicam uma conseqüência legal que automaticamente se segue quando as condições dadas se realizam.

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As regras remontam a seu pedigree: ao modo e à origem pela qual foram adotadas. É um critério de reconhecimento formal. Os princípios, por sua vez, são reconhecidos por sua medida de valor e intencionalidade.

Um princípio apresenta uma razão que aponta para uma direção, porém, não exige uma decisão específica naquele mesmo sentido (apontado). A título de ilustração, se um homem vai receber algo como produto direto de uma conduta ilegal, o princípio de que ninguém deve se beneficiar do seu próprio erro precisa ser levado em conta, mas há outros princípios e políticas apontando para uma outra direção: a política da segurança do título, por exemplo, ou o princípio da legalidade. Um princípio pode não prevalecer, no entanto não significa que não seja um princípio do nosso Direito. Trata-se de um dos princípios que os funcionários do sistema precisam levar em conta, se for relevante, como uma consideração que aponta para uma outra direção.

Finalmente, uma outra diferença é que princípios têm uma dimensão de peso ou importância. Se duas regras estão em conflito, uma não poderá ser válida, já os princípios, será aplicado aquele que tiver maior peso ou importância naquela circunstância.

Robert Alexy, repise-se, também defende a distinção entre princípios e regras. Assim, os primeiros são mandados de otimização [17], que se caracterizariam pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, de acordo com as possibilidades reais e jurídicas. Princípios e regras opostos determinam o âmbito das possibilidades jurídicas. Já as regras somente podem ou não ser cumpridas, contêm determinações no âmbito do fático e juridicamente possível. Se uma regra é válida deve-se fazer exatamente o que ela exige. Ou seja, as regras encerram uma dimensão de validade; os princípios, por sua vez, vão além, possuindo a dimensão do valor.

Nesse sentido, as regras diferenciam-se dos princípios quando há a ocorrência de colisão. Explicando: se há um conflito entre regras, este é solucionado se declarada inválida uma delas ou se introduzida uma outra de exceção. A exclusão dessa regra dá-se por critérios previstos por outras normas constantes do próprio ordenamento jurídico. Quanto aos princípios, isso não se aplica. Eles vão além da validade. Se conflitantes, serão sopesados e aplicado aquele adequado ao caso concreto, considerando os valores e interesses do caso, prescindindo de qualquer declaração de invalidade ou criação de norma de exceção.

Há, dessa forma, uma diferença não só quantitativa ou de abstratividade entre esses dois tipos de norma, mas também, e sobretudo, uma distinção no âmbito qualitativo, que obriga o aplicador do Direito a agir de modo diverso quando da solução de conflitos.

Nas palavras do doutrinador alemão:

"El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que algo sea realizado em la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los princípios son mandados de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos em diferente grado e que la medida debida de su cumplimiento no solo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas. El âmbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos. Em cambio, las reglas son normas que solo pueden ser cumplidas o no. Si uma regla es válida, entonces de hacerse exactamente o que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones em el ámbito de lo fáctica y juridicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y principios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien uma regla o um principio." [18]

De tudo isso, resulta uma importante propriedade: o diferente caráter prima facie das regras e dos princípios. Se os princípios devem ser realizados na maior medida possível, relevando possibilidades jurídicas e fáticas, não podem constituírem-se em mandados definitivos, senão prima facie. Um princípio válido para um determinado caso não permite a conclusão de que a solução oferecida por este princípio valha como resultado definitivo.

Com as regras, a questão é outra. Elas exigem que se faça aquilo que determinam. No entanto, essa determinação pode fracassar por impossibilidade jurídica ou fática, o que pode levar a sua invalidade. Caso contrário, são definitivas. Mas, se introduzidas regras de exceção, perdem seu caráter definitivo.

Importante delimitar, então, são o caráter prima facie dos princípios e das regras. O primeiro pode reforçar-se com uma carga de argumentação em favor de terminados princípios. O segundo, apóia-se numa disposição já tomada, contendo, pois, uma "pretensão de definitividade". [19]

O já citado constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em seu Direito Constitucional e Teoria da Constituição, de maneira didática e objetiva, discorre sobre a distinção entre regras e princípios e classifica-os como espécies de norma jurídica. Isto, não sem antes deixar claro que os princípios em comento tratam-se de princípios jurídicos, em contraste com os hermenêuticos, que desempenhariam uma função argumentativa, o que lhes conferiria a possibilidade de denotar a ratio legis de uma disposição ou mesmo revelar normas implícitas na legislação, integrando o direito. [20]

Ensina, então, que os princípios jurídicos são normas jurídicas compatíveis com vários graus de concretização, de acordo com as circunstâncias fáticas e jurídicas. Já as regras são normas que, de modo imperativo, prescrevem uma conduta a ser realizada ou proibida, ou mesmo permitida. Conseqüência disso, é que os princípios constituem exigências de otimização, permitindo o balanceamento de valores e interesses. As regras, por sua vez, devem ser cumpridas da maneira como são prescritas. Isto porque entre princípios pode haver conflito e, nestes casos, eles serão ponderados consoante o caso concreto, verificado seu peso. Com relação às regras, fala-se apenas em validade ou não da prescrição. Sua convivência é antinômica.

Desse modo, fica assentado, na esteira do pensamento do doutrinador lusitano, que a Constituição assenta-se num sistema interno de princípios estruturantes fundamentais, subprincípios e regras concretizadoras desses princípios.

Os primeiros, os estruturantes, são princípios constitutivos e indicativos de idéias diretivas básicas de toda a ordem jurídica, como o princípio do Estado de Direito e o princípio democrático. Mas esses princípios se concretizam por outros princípios gerais fundamentais que, nos dizeres de Canotilho [21], "densificam" tais princípios, clareando seus sentido jurídico-constitucional, formando, ao mesmo tempo, um sistema interno. Como exemplo, o princípio da legalidade. Há, também, a possibilidade de estes últimos princípios densificarem-se por outros princípios mais específicos e, estes, ainda, mas não apenas estes, concretizados pelas regras jurídicas constitucionais.

O que se infere dessa explanação é que o conjunto de princípios estruturantes, constitucionais gerais e especiais e regras constitucionais forma um sistema interno constitucional que funciona em duas direções, pois à medida que se direciona para baixo, ganha-se em densidade normativa e diminui-se a abstração. Na direção contrária, as regras formam com os princípios uma unidade material – unidade da Constituição (todas as normas contidas numa constituição formal têm igual dignidade). Todos estes princípios e regras podem, ainda, obter um maior grau de concretização e densidade através da concretização legislativa e jurisprudencial. Observe-se a representação abaixo:

define princípio como:

"(...) um mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico." [22]

A partir deste conceito, pode-se afirmar que constituem proposições primárias do Direito, que vinculam-se a valores fundantes da sociedade, norteando a interpretação e aplicação das regras jurídicas. É de se notar que este conceito se aproxima da idéia de princípios hermenêuticos proposta por Canotilho, como já mencionamos supra.

E, defronte os conceitos já dados, regras jurídicas regulam especificamente o comportamento e a conduta social, indicam como agir em determinadas situações específicas, previstas por estas regras. Os princípios, por outro lado, estabelecem direções, mas também têm uma função normativa. A eles, então, enquanto proposições fundamentais, cabe orientar concretamente o Direito, qualificando as normas dentro de determinados padrões axiológicos.

Humberto Bergmann Ávila [23], em artigo publicado na Revista de Direito Administrativo, sugere definições de princípio e regra:

"(...)pode-se definir princípios como normas imediatamente finalísticas, para cuja concretização estabelecem com menor determinação qual o comportamento devido, e por isso dependem mais intensamente da sua relação com outras normas e de atos institucionalmente legitimados de interpretação para a determinação da conduta devida.

As regras podem ser definidas como normas mediatamente finalísticas, para cuja concretização estabelecem com maior determinação qual o comportamento devido, e por isso dependem menos intensamente da sua relação com outras normas e de atos institucionalmente legitimados de interpretação para a determinação a conduta devida." [24]

Há, ainda, valiosas distinções entre esses conceitos. A título de subsídio para o próximo capítulo, permitimo-nos citar mais algumas, mencionadas pelo Des. Kildare Gonçalves Carvalho em seu Direito Constitucional Positivo. Faz menção ao conceito de Guilherme Peña de que os princípios são extraídos de enunciados normativos, com elevado grau de abstração e generalidade, que prevêem valores que informam a ordem jurídica, visando informar atividades como a produção, interpretação e aplicação das regras. A colisão entre eles desfaz-se na dimensão do peso, avaliado no caso concreto, pelo critério da ponderação. E as regras, continua o autor, extraem-se de enunciados normativos com reduzido grau de abstração e generalidade, descrevendo situações fáticas e prescrevendo condutas intersubjetivas, com a fenomenologia de incidência dirigida pelos princípios, de modo que o conflito entre elas é resolvido na dimensão da validade, considerando os critérios cronológico, hierárquico ou da especialidade." [25]

Mais a frente, alude à diferenciação que o mesmo Guilherme Peña faz entre princípios e regras, no que toca à estrutura, com mais minúcia.

Quanto ao conteúdo, os princípios contêm a previsão de um valor fundamental da ordem jurídica. As regras, apenas a descrição de uma situação de fato e a prescrição de uma conduta entre sujeitos. Os primeiros, então, guardam um maior grau de abstração e generalidade ante as segundas.

Quanto à origem, os princípios são válidos por seu próprio conteúdo, enquanto as regras possuem validade decorrente de outras regras. Por isso que os conflitos de princípios solucionam-se na dimensão do peso e o de regras, na de validade, utilizando-se dos critérios cronológico (lex posterior derogat priori), hierárquico (lex superior derogat lex inferior) ou especialidade (lex specialis derogat general).

Quanto aos efeitos, a eficácia das regras é delimitada pelo enunciado. A dos princípios, relativamente indeterminada na ordem jurídica.

Quanto à forma de aplicação, as regras incidem sobre o conceito dos fatos descritos nos seus antecedentes normativos, e os princípios não. Segundo o autor, os princípios imprescindem da mediação concretizadora para tornarem-se aplicáveis a hipóteses determináveis.

Por fim, quanto à função no ordenamento jurídico, ao contrário das regras, os princípios tem múltiplas funções, a saber: interpretativa (função exética), aplicativa (função integrativa), produtiva (função normogenética), de forma a sistematizar o Direito Constitucional (função sistêmica). [26]

III.2 A LICITAÇÃO COMO REGRA

Abordada a distinção entre princípios e regras, passa-se a tentar demonstrar o porquê de se acreditar na licitação como uma regra a ser cumprida pela Administração Pública.

José Afonso da Silva [27] preconiza que o "princípio" da licitação foi albergado pela Constituição, em seu art. 37, XXI:

"XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações."

Em outro dispositivo constitucional, no art. 175, há consonância com o inciso supra, o que não poderia ser diferente pelo princípio, este sim princípio, diga-se de passagem, da unidade da Constituição. Veja-se:

"Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos."

Com uma simples leitura, fica evidente a opção do legislador constituinte de tornar obrigatória a licitação. O Poder Público necessariamente tem de licitar, seja para a contratação de serviços, seja para a aquisição de bens, seja para a outorga de concessões e permissões para a prestação de serviços públicos.

No entanto, acreditamos que tanto a expressão "serão contratados mediante processo de licitação pública", quanto a "sempre através de licitação", respectivamente contidas no art. 37, XXI, e art. 175, caput, em nenhum momento conferem à licitação status de princípio.

Entendemos, data venia maciça doutrina já citada, que a simples prescrição legal impositiva não faz da licitação um princípio. Não se pode considerá-la um princípio, senão uma regra. A uma, porque não é um mandamento nuclear do sistema jurídico. Decorre dos princípios da isonomia e da moralidade administrativa e, por isso, deve ser obrigatória em regra – o que não implica classificá-la como princípio. A duas, porque há clara evidência, inclusive na legislação brasileira pertinente (Lei n. 8.666/93), de regras de exceção à regra da licitação, como as hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação. E até mesmo há a questão da licitação proibida. Como comenta Celso Antônio [28], não obstante a regra estar contida no rol da licitação dispensável, trata-se verdadeiramente de uma licitação proibida, aí colocada por falta de técnica legislativa, a saber, art. 24, IX da Lei 8.666/93: "quando houver possibilidade de comprometimento da segurança nacional, nos casos estabelecidos em decreto do Presidente da República, ouvido o Conselho de Defesa Nacional."

Levando em conta a tese de Alexy, já mencionada, da colisão de princípios, não poderíamos ter a licitação como tal. Um exemplo: a elevar a licitação à categoria de princípio, como o interesse público, há a possibilidade de se considerar, em alguma hipótese concreta, a prevalência daquela sobre este? Parece-me que não.

A licitação, assim, nada mais seria que uma regra prevista na Constituição Federal, decorrente dos princípios da isonomia e da moralidade administrativa, na medida em que ao Poder Público é obrigatório o tratamento igualitário a todos os administrados, agindo sempre de maneira proba. Daí a necessidade de licitação na grande maioria dos casos nos quais a Administração pretende contratar, atendendo a estes princípios.

Aqui, não é negada a força normativa dos princípios. Simplesmente pensamos não ter as transcritas disposições constitucionais a densidade – para usar a nomenclatura sugerida por Canotilho [29] – adequada para ser considerada um princípio.

Se há uma hipótese e uma conseqüência determinada, há uma regra. Se vemos um conceito como um fim, estamos diante de um princípio. Ora, tomando emprestado o exemplo formulado por Humberto Bergmann Ávila [30], pode-se fazer um paralelo com a licitação. Ávila afirma que a interpretação pode transformar uma mesma disposição em princípio ou em regra. Exemplifica o caso da igualdade: se analisada como proibição de discriminação baseada em sexo, raça ou outro critério, possui uma hipótese e uma conseqüência. É regra. Se vista como fim, não há hipótese determinada. Logo, é princípio. A licitação, por sua vez, sempre é regra, pois ao Poder Público é obrigatório licitar, sob pena de sofrer o administrador as sanções legais. Ela, a licitação, não pode ser tomada como princípio, porque ela não é um fim, mas decorre de outros fins determinados, como o interesse público, a isonomia e a moralidade administrativa.

As regras constituem normas de conduta e os princípios normas finalísticas. Bem verdade que ambas possuem a conduta como objeto, mas o grau de determinação é diferente. As primeiras contêm uma precisão direta de conduta devida, sem ligação direta com os fins. Nas segundas, a conduta devida é aquela adequada à realização dos fins. [31]

De pôr em relevo que, segundo Kildare Gonçalves Carvalho [32], os princípios são dotados de elevado grau de abstração, generalidade e vagueza, orientando todo o ordenamento jurídico. Providos de menos carga normativa do que as regras, possuem maior força valorativa. Mais uma vez, como pode-se conceber a licitação como princípio, tomando como parâmetro esta abalizada opinião? As disposições constitucionais que dela tratam são diretas possuem baixo grau de abstração e generalidade. Pelo contrário, são bem concretas. Os detalhes de como se proceder à licitação não estão na Constituição porque lá não deveriam estar deveras.

Considerando a licitação como regra, também não vemos obstáculos para o Poder Público, sempre com fulcro no princípio da legalidade, promover um certame ágil, de forma a atender às reais vicissitudes da sociedade. O bem-comum sempre deve ser o fim último a ser buscado pelo Estado.

Por isso, aplaudimos a iniciativa do Congresso Nacional que aprovou a Lei 6.478, de 6 de agosto de 1997. Nesta lei, que criou a Agência Nacional do Petróleo, está previsto, em seu art. 67, que os contratos celebrados pela Petrobrás, para aquisição de bens e serviços, serão precedidos de procedimento licitatório simplificado, a ser definido em decreto do Presidente da República (Decreto n. 2.745, de 24 de agosto de 1998).

Ora, nada mais adequado ao interesse público. A Petrobrás, embora detenha o monopólio estatal da extração do petróleo, compete, no âmbito mundial, com empresas de diversos lugares do planeta. Um procedimento licitatório simplificado, só vem ao encontro do interesse público. E cumpre-se a regra constitucional.

Ademais, ressalte-se que o fato de a licitação ser regra, em nenhum momento afasta a obrigação de licitar da Administração.

Deve-se licitar "na forma da lei". O objetivo desta monografia não reside no "afrouxamento" da licitação. Até porque não é a classificação da licitação como princípio ou regra que vai determinar se ela é ou não exigência para o Poder Público quando da realização de certos atos já expostos. Neste sentido, diz José Reinaldo de Lima Lopes, que "tanto princípios como regras apresentam a mesma dificuldade, nenhum deles ‘garante’ que se produzam decisões em um sentido ou outro." [33] Ou seja, qualificar a licitação como princípio não aumenta sua imperatividade. É o que pensa Plínio Melgaré, ao afirmar:

"De outra parte, decorrente mesmo da vacuidade e generalidade próprias dos princípios jurídicos, tal-qualmente Josef ESSER (1961) já o fizera, percebemos que esses são mobilizados para os mais diversos e ambíguos fins, requerendo-se deles, por vezes, mais do que essencialmente podem oferecer, ou crendo-os como um recurso salvífico para solucionar toda a gama de problemas existentes na seara jurídica." [34]

E, mais adiante, reafirma categoricamente que "independentemente das distinções entre princípios e regras, tanto aqueles quanto estas também são obrigatórios e vinculativos, devendo ser observados pelos juízes." [35]

Então, poder-se-ia questionar qual a real intenção em se tentar desqualificar a licitação como princípio, classificando como regra. Ora, cada qual em sua posição! Hodiernamente, tudo é entendido como princípio. Há uma profusão deles, o que acabam por desnaturar o próprio conceito. A escolha deste "princípio" deveu-se justamente pela gama de consagrados autores que assim o qualificam, como já aludido na introdução.

CAPÍTULO IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS

O autor deste trabalho reconhece que a posição por ele adotada vai de encontro à praticamente toda a doutrina. Seu objetivo, no entanto, foi simplesmente externar uma posição particular, sem maiores pretensões, por achar adequada a oportunidade.

No entanto, de todo o exposto, conclui-se que a licitação, não obstante a obrigatoriedade para a Administração Pública, deve ser considerada regra a ser aplicada pelo Poder Público e não mais um princípio, o que de modo algum retira seu valor e imperatividade. É que as disposições constitucionais que tratam da licitação não possuem o grau de abstração e generalidade, bem como de vagueza, condizentes com um princípio.

A licitação, assim, não é um fim em si mesma. Existe para servir ao interesse público e não pra afrontá-lo. Por isso mesmo é que se prevêem hipóteses de sua inexigibilidade e dispensa e até mesmo a possibilidade de proibição. É de se ter em mira que a licitação não pode emperrar a máquina administrativa, mas sim servi-la de modo eficiente. Preciso é usar-se dela de modo racional, não se prendendo a minúcias, o que de forma alguma implica afronta à legislação.

Um procedimento licitatório que acarretasse prejuízo ao interesse público por certo não estaria cumprindo sua finalidade.

Portanto, consideramos a licitação um importante instrumento que deve ser utilizado pelo Poder Público quando o ordenamento assim prescrever, mas nunca um princípio.

NOTAS

  1. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 335 e SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 672: "O princípio da licitação significa que essas contratações ficam sujeitas, como regra, ao procedimento de seleção de propostas mais vantajosas para a Administração Pública. Constitui um princípio instrumental de realização dos princípios da moralidade administrativa e do tratamento isonômico dos eventuais contratantes com o Poder Público."
  2. DALLARI, Adilson Abreu. Aspectos Jurídicos da Licitação. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 33 e DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 294.
  3. DALLARI, Adilson Abreu. Op. cit., p. 197.
  4. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 254.
  5. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 485.
  6. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 483.
  7. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1159.
  8. Uma análise nesse sentido ver-se-á em LOPES, José Reinaldo de Lima. Juízo jurídico e a falsa solução dos princípios e das regras. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 40, n. 160, p. 49-64, out/dez 2003.
  9. Apud AMORIM, Letícia Balsamão. A distinção entre regras e princípios segundo Robert Alexy: esboço e críticas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 42, n. 165, p. 125, jan/mar 2005.
  10. Apud AMORIM, Letícia Balsamão. A distinção entre regras e princípios segundo Robert Alexy: esboço e críticas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 42, n. 165, p. 124, jan/mar 2005.
  11. CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1160.
  12. Apud ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 215, p. 155, jan/mar 1999.
  13. Idem, ibidem. p. 155
  14. Idem, ibidem. p. 155.
  15. ÁVILA, Humberto Bergmann. Op. cit., p. 156.
  16. Apud MELGARÉ, Plínio. Princípios, regras e a tese dos Direitos: apontamentos à luz da teoria de Ronald Dworkin. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 41, n. 163, p. 97-112, jul/set 2004.
  17. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fudamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 87.
  18. ALEXY, Robert. Op. cit., pp. 86-87.
  19. AMORIM, Letícia Balsamão. A distinção entre regras e princípios segundo Robert Alexy: esboço e críticas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 42, n. 165, p. 129, jan/mar 2005.
  20. CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1161.
  21. CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1174.
  22. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 841-842.
  23. ÁVILA, Humberto Bergmann. Op. cit.
  24. Idem, ibidem. P. 167
  25. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: Teoria do Estado e da Constituição / Direito Constitucional Positivo. 11. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 359.
  26. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Op. cit., p. 365.
  27. SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 672.
  28. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 508-509.
  29. CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1174.
  30. ÁVILA, Humberto Bergmann. Op. cit., p. 162.
  31. ÁVILA, Humberto Bergmann. Op. cit., p. 167.
  32. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Op. cit., p. 360
  33. LOPES, José Reinaldo de Lima. Juízo jurídico e a falsa solução dos princípios e das regras. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 40, n. 160, p. 49, out/dez 2003.
  34. MELGARÉ, Plínio. Op. cit., p. 98.
  35. MELGARÉ, Plínio. Op. cit.,p. 101.

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Sobre o autor
Pedro Luiz Barros Palma da Rosa

bacharel em Direito pela UFMG, especialista em Direito Eleitoral, analista judiciário do TRE/MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Pedro Luiz Barros Palma. O não-princípio da licitação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1586, 4 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10606. Acesso em: 22 nov. 2024.

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