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O nascedouro e o desenvolvimento do direito humano e fundamental ao meio ambiente

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Agenda 13/09/2023 às 16:20

A degradação ambiental não cessa. Propõe-se a superação do modelo antropocêntrico de proteção da natureza em favor de um direito ecológico propriamente dito, de cunho ecocêntrico ou biocêntrico.

RESUMO: Este trabalho versa sobre o nascedouro e o desenvolvimento do direito humano e fundamental ao meio ambiente. Tem como objetivo destacar os tratados e acordos internacionais de maior relevo e subscritos pelo Brasil, ressaltando a importância da Declaração da Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano. Especificamente, busca-se: analisar a legislação ambiental no direito pátrio e destacar a consagração do direito ao meio ambiente propriamente dito no ordenamento pátrio, mormente a partir da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e da sua incorporação à Constituição de 1988. Realizou-se a pesquisa bibliográfica e documental no desenvolvimento deste estudo. Concluiu-se que a degradação ambiental não cessa, sendo este descompasso entre a promessa da norma e sua concretude uma das razões pelas quais estudiosos têm proposto a superação do modelo antropocêntrico em favor de um direito ecológico propriamente dito, de cunho ecocêntrico ou biocêntrico.

Palavras-chave: Nascedouro. Direito Humano. Meio Ambiente.


Introdução

Antes da década de 1970, a legislação ambiental de proteção dos recursos naturais mirava interesses humanos secundários, especialmente econômicos, mas sem conteúdo propriamente ambiental, cenário que só passou a mudar com a noção moderna de Direito Ambiental exsurgente naquela década. Isso quer significar que o “surgimento de um bem jurídico ecológico autônomo, com contornos conceituais e normativos próprios, somente ocorreu a partir da década de 1970”.1

Com o despertar da consciência comunitária para os valores ambientais ou ecológicos ocorridos nas décadas de 1960 e 1970, surgiram os primeiros diplomas legais promulgados nos Estados Unidos da América e na Europa Ocidental, de âmbito nacional, e a Conferência e Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, de 1972, na esfera internacional.

Esses esforços lograram consolidar um novo direito, o direito humano ao meio ambiente sadio, que, na atual quadra histórica, é um direito humano e fundamental2, de terceira geração ou dimensão (inspirada no lema “fraternidade”, da Revolução Francesa)3 e difuso4. A tutela jurisdicional do meio ambiente, por sua vez, é corolário da segunda “onda renovatória” de acesso à justiça, segundo Mauro Cappelletti e Bryant Garth na obra “Acesso à Justiça”, consistente “na criação de representação e instrumentos adequados de tutela dos direitos difusos e coletivos (como o meio ambiente sadio)”.5

No Brasil, doutrina especializada tem apontado a importância da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, de 1981, para a consagração do direito ambiental em termos modernos, e da sua constitucionalização pela inserção no Texto Constitucional de 1988 do “artigo-capítulo” 225, especialmente dedicado ao meio ambiente.

Demais disso, o Brasil participa de uma série de fóruns internacionais que tratam do meio ambiente. Sediou inclusive a importante Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento Sustentável, de 1992, mais conhecida como Eco-92 ou Rio-92, porque realizada no Rio de Janeiro.

Nosso propósito, a título de aproximação, é destacar os tratados e acordos internacionais de maior relevo, alguns dos quais subscritos pelo Brasil, o que faremos incontinenti, ressaltando a importância da Declaração da Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano. Na sequência, debruçar-nos-emos sobre a legislação ambiental no direito pátrio, oportunidade em que destacaremos a consagração do direito ao meio ambiente propriamente dito no ordenamento pátrio por meio da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e sua previsão na Constituição de 1988, momento em que foi alçado ao status de direito fundamental.

Salientaremos, na mesma senda, que, malgrado o avanço da legislação ambiental e do reconhecimento de um direito ambiental dotado de fundamentalidade e centralidade constitucional, o direito ao meio ambiente sadio padece sob a mesma crítica endereçada aos direitos humanos e fundamentais em geral, qual seja, a profunda crise de efetividade. O fato, dentre outros questionamentos de ordem ética e filosófica, suscita debates acalorados sobre a necessidade de ancorar o direito ambiental em bases ecocêntricas ou biocêntricas, ultrapassando os atuais vetores antropocêntricos que fundamentam a disciplina.

Compartilhamos, a propósito, a atualíssima preocupação e senso de realismo de Norberto Bobbio a respeito do “contraste entre as declarações solenes e sua consecução, entre a grandiosidade das promessas e a miséria das realizações”6, que se aplicam perfeitamente ao direito ambiental. Para Bobbio, o “problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político”.7

1. A normativa internacional.

No cenário internacional, a Convenção para a Proteção de Flora, da Fauna e das Belezas Cênicas Naturais dos Países da América foi aprovada em 1940 e ratificada pelo Brasil em 1948. Coube, no entanto, à Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972, criada pela UNESCO8, ser o primeiro documento normativo internacional a reconhecer a existência de um “direito da humanidade”, definindo bens do patrimônio cultural e natural “que pertencem a todo gênero humano e não podem ser apropriados por ninguém em particular”.9 Tais bens merecem proteção, conforme o documento, por sua importância científica e estética10, conquanto ainda não tenha protegido “a biosfera enquanto tal, independentemente de qualquer valor científico, técnico ou estético em particular”, pontua Comparato.11

Com efeito, o marco normativo da proteção ecológica em termos modernos, resultante de um movimento internacional de preservação do meio ambiente, foi a Declaração da Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, ainda em 197212. Antes dessa Conferência, não apenas a proteção tinha caráter utilitarista, como já pontuado, mas havia inclusive previsão normativa em Convenção internarcional antiecológica, a exemplo do disposto no art. 47 do Pacto Internacional sobre Direito Civis e Políticos (1966), in verbis: “Nenhuma disposição do presente Pacto poderá ser interpretada em detrimento do direito inerente a todos os povos de desfrutar e utilizar plena e livremente suas riquezas e seus recursos naturais”.13 Para Bobbio, “Não é difícil entender as razões dessa afirmação [que classificou como caso “bastante desconcertante”]; bem mais difícil é prever suas consequências, caso ela seja aplicada literalmente”.14

Segundo Guido F. da Silva, apud Sarlet e Fensterseifer, a Declaração de Estocolmo “pode ser considerada um documento com a mesma relevância para o Direito Internacional e para a diplomacia dos Estados que teve a Declaração Universal dos Direitos Humanos [...]. Na verdade, ambas as Declarações têm exercido o papel de verdadeiros guias e parâmetros na definição dos princípios mínimos que devem figurar tanto nas legislações domésticas dos Estados quanto na adoção dos grandes textos do Direito Internacional da atualidade”.15 Para Sarlet e Fensterseifer, a Declaração de Estocolmo consagrou um direito humano ao meio ambiente no seu artigo 1º.16 17 Esse reconhecimento ganhou força normativa nos sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos com a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de 1981 (art. 21), e com o Protocolo Adicional de San Salvador à Convenção Americana de Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1988 (art. 11).

A partir da Declaração de Estocolmo, a proteção internacional ao meio ambiente influenciou as legislações nacionais de vários países, dentre eles o Brasil, criando um repertório normativo moderno e abrangente, o que se verifica nos seguintes exemplos: o Programa O Homem e a Biosfera, criado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO); a Convenção sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional - Ramsar, de 1971, que entrou em vigor em 1975; a Carta Mundial da Natureza, adotada pela Assembleia Geral da ONU, em 1982; a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar - CNUDM, de 1982, realizada em Montego Bay, na Jamaica; o Protocolo de San Salvador Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1988. É desse período o relatório “Nosso Futuro Comum”, da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, mais conhecido como “Relatório Brundtland”, de 1987, que definiu o significado de desenvolvimento sustentável.

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A Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Convenção-Quadro sobre a Diversidade Biológica (promulgada pelo Decreto nº 2.519/98), a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (promulgada pelo Decreto nº 2.652/98), a Agenda 21 e a Declaração de Princípios sobre Florestas foram estabelecidas na Eco-92. Posteriormente, ocorreram as Conferências Rio+10 e Rio+20, sediadas, respectivamente, em Johanesburgo e no Rio de Janeiro nos anos de 2002 e 2012.

Acresça-se a Declaração e Programa de Ação de Viena, promulgada na 2ª Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (1993), o Protocolo de Quioto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, de 1997 (promulgado pelo Decreto nº 5.445/2005), a Convenção de Aarhus sobre Acesso à Informação, Participação Pública na Tomada de Decisões e Acesso à Justiça em Matéria Ambiental (1998), o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança da Convenção sobre Diversidade Biológica, de 2000 (promulgado pelo Decreto 5.705/06), a Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes (2001), Declaração sobre Direitos dos Povos Indígenas (2007), o Protocolo de Nagoia sobre Acesso a Recursos Genéticos e Repartição Justa e Equitativa dos Benefícios Derivados da sua Utilização (2010), a Declaração de Nova Iorque sobre Florestas (2014) e o Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas (“Agenda 2023”, 2015).

No âmbito do Sistema Regional Interamericano de Direitos Humanos tem ocorrido fenômeno denominado “greening”, “com o progressivo reconhecimento do status de direito humano inerente ao direito de viver em um ambiente sadio e equilibrado, reconhecido, aliás, expressamente no art. 11 do Protocolo de San Salvador (1998)”.18 19

A princípio, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) tendeu ao fenômeno conhecido como “greening”, por meio do qual a judicialização do direito ao meio ambiente equilibrado era feita de forma indireta, por meio da conexão com um direito civil ou político previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Contudo, a partir do Caso Lagos del Campo vs. Peru, a Corte IDH passou a tutelar o direito ao meio ambiente sadio de forma direta, entendendo-o como inserido no artigo 26 da CADH, conclusão a que chegou também na Opinião Consultiva 23, de 24.11.2017. Nesta Opinião Consultiva, a Corte também ressaltou que o direito ao meio ambiente pode ser extraído dos artigos 30, 31, 33 e 34 da Carta da OEA, quando fazem menção à obrigação dos Estados de assegurarem o “desenvolvimento integral” dos povos.20

Em sede de sistema onusiano, destaca-se o Projeto de Pacto Global para a Natureza. A Assembleia Geral da ONU, em 14 de maio de 2018, adotou a Resolução A/RES/72/277 com o propósito de estabelecer um grupo de trabalho ad hoc para desenvolver um Pacto Global para o Meio Ambiente, uma espécie de “Pacto Internacional dos Direitos Ambientais, em complemento à Carta Internacional dos Direitos Humanos do Sistema Global, formada atualmente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1849) e pelos Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e Econômicos, Sociais e Culturais (1966).

Mais recentemente, as Resoluções A/HRC/48/L.23/Rev.1 e A/HRC/48/L.27 do Conselho de Direitos Humanos da ONU, adotadas em 5 de outubro de 2021, reconheceram, respectivamente, o direito ao meio ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável como um direito humano e estabeleceram uma Relatoria Especial sobre Direitos Humanos e Mudanças Climáticas.

2. Legislação brasileira.

As primeiras leis dedicadas a alguma forma de proteção do meio ambiente do território brasileiro datam das primeiras iniciativas de colonização pelos portugueses e se estendem até a proteção mais ampla da atualidade, mormente com a promulgação da Constituição de 1988 e a legislação infraconstitucional que surgiu sob sua égide.

Durante um longo período, a legislação possuiu caráter fragmentário e sua “proteção dos recursos naturais se deu preponderantemente em virtude de interesses de índole econômica ou mesmo em vista da proteção da saúde humana, imperando, portanto, uma visão ainda meramente instrumental ou utilitarista dos recursos naturais”21, panorama que só veio a mudar com a adoção de valores ecológicos propriamente ditos pela Lei nº 6.938/81.

Antônio H. Benjamin propõe uma divisão da evolução legislativa ambiental pátria, por nós seguida neste artigo, nas seguintes fases: fase da “exploração desregrada ou do laissez-faire ambiental” (caracterizada pelo individualismo); fase “fragmentária” (marcada pela proteção esparsa, preocupação com a atividade econômica, ausência de política ambiental e de reconhecimento do meio ambiente em sua natureza difusa) e fase “holística” (inaugurada pela edição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, de 1981).22 É como veremos.

2.1) A legislação ambiental na “fase da exploração desregrada ou do laissez-faire ambiental”.

Antônio H. Benjamin denomina esta primeira fase da evolução legislativa brasileira ambiental de “fase da exploração desregrada ou do laissez-faire ambiental”, que vai do período da chegada dos portugueses, em 1500, até aproximadamente o início do século XX.23

A Coroa portuguesa tratou do tema em primeira mão quando das cartas de doação das capitanias hereditárias, em 1532, momento em que impôs seu monopólio na exploração do pau-brasil. Ainda no início do século XVI, as cartas de sesmarias, no mesmo sentido, dispunham de dispositivo proibindo que os sesmeiros cortassem os paus reais e de lei, particularmente a peroba, destinadas à construção das embarcações. Zé Pedro de Oliveira Costa sublinha que essas espécies eram denominadas “madeira de lei” em decorrência do documento.24

Em 1605, o rei Filipe III promulgou o Regimento do Pau-Brasil, no qual ressaltou a necessidade de coibir “muitas desordens que há no sertão do pau-brasil, e na conservação dele, de que se tem seguido haver hoje muita falta”, sempre objetivando, frise-se, “reservar o monopólio da Coroa portuguesa e possibilitar uma exploração racional da madeira”, de propriedade exclusiva da Coroa, assim como as matas e árvores litorâneas e às margens de rios.25 Nesse documento, vaticinou que:

A causa de se extinguirem as matas do dito pau, como hoje estão, e não tornarem aas árvores a brotar, é pelo mau modo como se fazem os cortes, não lhe deixando ramos e varas, que vão crescendo, e por se lhe pôr fogo nas raízes, para fazerem roças [...].26

Outro relevante documento foi o regimento de 1677 do governador-geral Roque da Costa Barreto, “uma espécie de Constituição do Estado-Colônia até a chegada da família real, em 1808”. Nesse documento considerou-se que as matas diminuíam pela demanda dos engenhos de açúcar, razão pela qual o governador foi incumbido de adotar as medidas necessárias à sua conservação, ao bem dos engenhos como da construção naval e outras fábricas. O regimento determinava também que haveria distâncias mínimas entre as aldeias indígenas e os engenhos e de ambos entre si, como também que o corte seria racionado de modo que quando uma mata estivesse crescendo, outra estaria submetida ao corte. As medidas prescritas à preservação das matas, como cediço, pretendiam alcançar maneira mais eficiente de exploração econômica, sem, no entanto, lograr êxito, consoante observação de Zé Pedro de Oliveira: “Em 1800, o governador-geral já comentava que essas ordens tinham deixado de ser necessárias, uma vez que as matas de pau-brasil estavam totalmente destruídas”.27

De relevo registrar, por fim, a imposição insculpida no Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas, de 1808, que, conquanto tenha permitido o livre comércio de diversas mercadorias, excepcionou o pau-brasil.

As devastações das matas seguiram intocadas no Império brasileiro, durante o qual praticamente não houve avanços legislativos. O governo imperial apenas revogou a licença do período colonial para o corte de madeiras de lei em terras particulares.

2.2) A fase “fragmentária” e “utilitarista” da legislação republicana.

Antônio H. Benjamin denomina a segunda fase da legislação ambiental brasileira de “fase fragmentária”, aduzindo que embora o legislador já estivesse atento à preservação de largas categorias de recursos naturais, ainda não havia se preocupado com o meio ambiente em si mesmo considerado. O período ainda é marcado pelo “utilitarismo (tutelando somente aquilo que tivesse interesse econômico) e, no plano formal, pela fragmentação”.28

O botânico Alberto Löfgren e outros produziram o relatório de uma comissão em 1917, publicado pelo Ministério da Agricultura, pontuando a necessidade de preservação de um mínimo de 25% da área florestada. Os autores do relatório “defendiam ser indispensável a criação de um Código Florestal e de um serviço florestal a nível nacional”. Paralelamente, intelectuais europeus e brasileiros começaram a discutir o impacto das ações humanas sobre as florestas e dezenas de núcleos e grupos passaram a atuar em território nacional, a exemplo da Sociedade de Amigos das Árvores, criada em 1931.29

Contudo, o primeiro Código Florestal Brasileiro só surgiu em 1934 (Decreto nº 23.793/34). Ele dispôs que as florestas do país são de interesse comum a toda a população brasileira. Definiu as áreas a serem protegidas, denominadas “áreas de preservação permanente”, “para evitar escorregamentos das encostas, garantir a proteção de manguezais fixadores de dunas, das margens dos rios e de espécies raras ou ameaçadas”. Inovou também ao criar áreas denominadas “reservas legais”, determinando que todas as propriedades devem reservar pelo menos 25% da sua área com vegetação nativa. Nas áreas de florestas virgens, como na maior parte da floresta amazônica, essa reserva seria de 50%.30 Segundo Zé Pedro de Oliveira, “trata-se de uma legislação bastante evoluída e complexa, assim como os demais códigos nacionais. O principal problema é que quase nada dela se cumpriu [...]. Em 1950, continuávamos a receber queixas sobre a erosão e a exaustão das terras. Todos vivíamos o drama das terras cansadas e esgotadas [...].31 Ainda em 1934 foram aprovados a Lei de Proteção dos Animais (Decreto nº 24.645/34) e o Código de Águas (Decreto nº 24.634/34), que retirou dos donos das terras o controle dos rios que fluíssem por suas propriedades.

Ainda nesse período, houve a edição do Decreto-lei 25/37, sobre a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, e do Código de Pesca (Decreto-lei 794/38). A Constituição de 1934 cuidou basicamente da atribuição de competência à União e aos Estados em matérias afins (art. 5º, XIX, “j”; art. 10, II e III), no que foi seguida pela Constituição de 1937 (art. 16, XIV), que estabeleceu ainda o dever da Nação, Estados e Municípios de preservar os monumentos históricos, artísticos e naturais (art. 134). A Constituição de 1946 adotou conteúdo praticamente idêntico às de 34 e 37 (v.g. art. 5º, XV, “l”; art. 175), não havendo inovação no que pertine ao Direito Ambiental.

O primeiro Código, de 1934, perdurou até que surgiu nova legislação, o Código Florestal de 1965 (Lei nº 4.771/65). Esse Código aprimorou a legislação ambiental, embora tenha mantido a preservação de 25% em terrenos particulares, prevendo a regra de preservação de 50% por propriedade na Amazônia e em outras áreas de mata virgem.32 Entre os diplomas legislativos surgidos no mesmo período, destacam-se ainda o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64), o Código de Pesca (Decreto-lei nº 221/67), o Código de Mineração (Decreto-lei nº 227/67), o Decreto-lei nº 1.413/75 (sobre o controle da poluição ambiental causada pela atividade industrial) e o Decreto nº 79.437/77 (incorporando ao ordenamento nacional a Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo). O resultado foi mais uma vez escasso. Ademais, em alguns casos, a exemplo da Lei de Proteção à Fauna ou Código de Caça (Lei nº 5.197/67), “tem-se até mesmo forte conteúdo antiecológico, ao admitir e regularizar a prática da caça”.33

A Constituição de 1967 apenas reproduziu as disposições estabelecidas nas anteriores (art. 8º, XVII, “h” e “i”; art. 170, parágrafo único) e a Constituição de 1969 (Emenda nº 1/69) tampouco avançou em termos ecológicos (v.g. art. 180). Por fim, ainda antes da edição da Lei nº 6.938/81, foram editadas as Leis nº 6.453/77 (que consagrou a responsabilidade civil objetiva na hipótese de danos nucleares), nº 6.803/80 (sobre o estudo de impacto ambiental) e nº 6.902/81 (criação de Estações Ecológicas a Áreas de Proteção Ambiental).

Sobre o período, Sarlet e Fensterseifer advertem:

Os diplomas (inclusive em termos constitucionais) editados durante o regime militar, ao longo da segunda metade da década de 60, não avançaram em relação ao paradigma “conservacionista” (o Código Florestal de 1965 é o melhor exemplo), já que não estavam nos seus fundamentos valores propriamente “ecológicos”.34

2.3) A “fase holística” da legislação ambiental brasileira.

A edição da Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) inaugurou o que Antônio H. Benjamin denominou de “fase holística” da legislação brasileira ambiental, fase na qual “o meio ambiente passa a ser protegido de forma integral e com autonomia valorativa, ou seja, como bem jurídico autônomo”.35 Para Sarlet e Fensterseifer, é no momento da promulgação dessa lei que nasce o Direito Ambiental brasileiro; ela é a sua “certidão de nascimento”36, o marco inicial do Direito Ambiental Brasileiro.37

A Lei nº 6.938/81 (LPNMA) surgiu alinhada com inovações legislativas no direito comparado e no plano internacional, sobretudo a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente (1972). Sistematizou a proteção jurídica dos valores ecológicos no ordenamento pátrio, consagrou o meio ambiente como bem jurídico autônomo merecedor de proteção jurídica. Inovou e aperfeiçoou a legislação precedente, prevendo a responsabilidade objetiva do poluidor (art. 14, §1º) e a exigência de estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra ou atividade lesiva ou potencialmente lesiva ao meio ambiente (art. 10). Identificou a relação indissociável entre a qualidade e segurança ambientais e a proteção da dignidade e da vida humanas (art. 2º, caput). Criou o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA).

Após a promulgação da LPNMA, surgiu a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), estabelecendo como seu objeto a responsabilidade por danos causados ao meio ambiente e aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 1º, I e III). Também alargou o rol dos legitimados (art, 5º38) - considerando que a LPNMA atribuiu legitimidade apenas ao Ministério Público para a propositura de ação de reparação por danos ambientais (art. 14, §1º) -, além de haver ampliado as atribuições do Parquet, a exemplo da sua participação como fiscal do ordenamento jurídico quando a Ação Civil Pública for proposta por outro legitimado (art. 5º, §1º), da possibilidade do termo de ajustamento de conduta (art. 5º, §6º) e da instauração de inquérito civil (art. 8º, § 1º).

A Constituição republicana promulgada em 5 de outubro de 1988 coroou o período de redemocratização e o avanço da legislação ambiental pátria, consagrando definitivamente o direito ao meio ambiente como direito fundamental. Tornou-se “a primeira do mundo a conter um capítulo específico sobre o meio ambiente [...]”.39 Sobre a importância da Constituição de 1988 para a consolidação dos valores ambientais no ordenamento jurídico doméstico, Sarlet e Fensterseifer pontuam: “Após a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), o marco normativo mais significativo para a consolidação do Direito Ambiental e afirmação dos valores ecológicos no sistema jurídico brasileiro foi, sem dúvida, a consagração da proteção constitucional do meio ambiente no âmbito da Constituição Federal de 1988 e do seu paradigmático art. 225”.40 Essa era constitui para os autores citados o terceiro período legislativo, que denominaram “fase da constitucionalização da proteção ambiental e do Direito Ambiental”. Sua inovação consiste em tornar os valores ecológicos centrais ao ordenamento jurídico brasileiro, o que denominaram “virada ecológica de índole jurídico-constitucional”.41

Inúmeros dispositivos da Constituição de 88 são relevantes para o direito fundamental ao meio ambiente, dentre os quais destacam-se: a ação popular para evitar ou reparar lesão ao meio ambiente (art. 5º, LXXIII); a atribuição de competência comum aos entes federativos para “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (art. 23, VI); a legitimidade do Ministério Público para promover inquérito civil e ajuizar ação civil pública para a proteção do meio ambiente (art. 129, III); a previsão da defesa do meio ambiente como um dos princípios que regem a ordem econômica (art. 170, VI); a inclusão do meio ambiente no conceito de função social da propriedade rural (art. 186, II), etc.42

A par dos importantes instrumentos apontados supra, o principal dispositivo constitucional a tratar do meio ambiente é o art. 225, um “capítulo-artigo” (o “Capítulo VI: Do Meio Ambiente”) inserido no Título VIII do Texto Maior, que trata da “Ordem Social”, que em seu caput preceitua que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O artigo referido prevê os deveres do Poder Público (§1º) e a responsabilidade pelo dano ambiental (§2º), como também contempla, segundo posição pacificada mormente a partir da promulgação da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), a responsabilidade penal da pessoa jurídica em matéria ambiental (§3º).

Apesar das modernas e abrangentes disposições constitucionais, a década de 1990 presenciou índices alarmantes de desmatamento, havendo salto de 4.900 quilômetros quadrados em 1994 para 29.000 em 1995.43 Para fazer frente à avalanche de destruição, o governo “determinou que as reservas legais nas propriedades na Amazônia deveriam passar de 50% para 80%”.44 Também foi criada “uma série de novas áreas protegidas ao longo do Arco do Desmatamento, região que concentra as maiores atividades de destruição da floresta”.45

Paralelamente, diversas leis miraram a proteção da biodiversidade. É o caso da Lei Federal nº 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Gerenciamento de Unidades de Conservação da Natureza, o SNUC. Merece destaque também o Decreto Federal nº 4.339/2002, que instituiu a Política Nacional de Biodiversidade, e as Lei Federais nº 11.105/2005 (da Biossegurança e Organismos Geneticamente Modificados – OGM) e nº 11.428/06 (sobre a Utilização e Proteção da Vegetação Nantiva do Bioma Mata Atlântica).

As forças pró-desmatamento, todavia, reagiram aprovando em 2012 um novo Código Florestal (Lei nº 12.651/12), afrouxando uma série de medidas de proteção desse patrimônio. “A parte iluminada” do novo código, nas palavras de Zé Pedro de Oliveira, determinou a inscrição de todas as terras privadas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) no prazo de um ano. Esse prazo, porém, foi sucessivamente adiado por um ano, depois por mais dois, até ser excluído por lei de 2019. “E assim chegamos à caótica destruição das nossas florestas, com ênfase no Arco do Desmatamento”.46 Por fim, registramos a Lei nº 13.123/2015, a Lei de Proteção ao Patrimônio Genético e ao Conhecimento Tradicional.

3. As unidades de conservação.

As áreas protegidas são a forma mais eficiente de conservação da natureza e por isso merecem uma abordagem apartada sobre sua evolução legislativa.

O mapa florestal do Brasil de Gonzaga de Campos, de 1912, foi o primeiro trabalho realizado na República com a intenção de oferecer subsídios à criação de um sistema nacional de áreas protegidas. Em 1921, foi criado o Serviço Florestal no âmbito do Ministério da Agricultura, com o objetivo de cuidar do uso e conservação das florestas brasileiras. Sucederam o Serviço Florestal a Seção de Parques Nacionais (em 1939) e o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF).

Em 1973, antes da edição da LPNMA, mas em decorrência da Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente, foi criada no Brasil uma Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA). Em 1985, instituiu-se o que até hoje é o Ministério do Meio Ambiente.47 Em 2007, foi criado no Ministério do Meio Ambiente o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para implementar as políticas públicas sobre espécies ameaçadas de fauna e gerenciar as áreas protegidas federais.48

Os parques nacionais e as reservas florestais foram estabelecidos pelo Código Florestal de 1934, e as reservas biológicas, pelo Código de 1965. Os parques nacionais preservam a biodiversidade de áreas de beleza cênica excepcional. As reservas florestais preveem a utilização econômica de florestas nativas ou plantadas. As reservas biológicas preservam áreas de grande interesse para a ciência e preservam a biodiversidade.49 Em 1981, a Secretaria do Meio Ambiente (SEMA) instituiu mais duas novas unidades de conservação: as estações ecológicas (ESEC), voltadas para a pesquisa, e as áreas de proteção ambiental (APA), de uso sustentável, em complemento às chamadas áreas de proteção integral.50

Os governos regionais e locais, por sua vez, passaram a criar áreas protegidas com as mais diversas designações, criando-se um conjunto amorfo e confuso de unidades de conservação. Nota-se ainda o caráter utilitarista e fragmentário da regulamentação legislativa da matéria, razão pela qual foi concebido um novo projeto baseado em categorias definidas pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), fazendo avançar a legislação pertinente à “fase holística”, segundo classificação de Herman Benjamin.

Esse projeto propôs a criação de dois grupos de categorias de unidades de conservação: as unidades de proteção integral (estações ecológicas, reservas biológicas, parques nacionais, monumentos naturais e refúgios de vida silvestre) e as unidades de uso sustentável (áreas de proteção ambiental, áreas de relevante interesse ecológico, florestas nacionais, reservas extrativistas, reservas de fauna, reservas de desenvolvimento sustentável, reservas particulares do patrimônio natural). São, ao total, doze categorias de unidades de conservação.

A lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) foi sancionada em 2000 (Lei nº 9.985/2000), que também instituiu a categoria de corredores ecológicos e reconheceu os sistemas da UNESCO de reservas da biosfera e de sítios do patrimônio mundial.51

A extensão atual das unidades de conservação contemplada em 2020 pelo Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC) traduz a seguinte realidade nas três esferas de governo: “2.468 unidades de conservação no Brasil, totalizando 254.932.961 hectares [...], o que abrange 18,63% da área continental protegida e 24,47% da área marinha”.52

Conclusão

A proteção do meio ambiente e o reconhecimento do direito humano e fundamental ao meio ambiente, com valores propriamente ambientais, percorreu caminho acidentado e seu estabelecimento é recente. No primeiro momento, predominou o laissez-faire ambiental, a fase do completo desregramento e da exploração sem limites dos recursos ambientais.

A legislação evoluiu para uma regulamentação fragmentária e utilitarista, e somente após a Conferência e Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, de 1972, no plano internacional, e com a edição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), no ordenamento jurídico doméstico, logrou-se alçar o meio ambiente a um direito humano e fundamental autônomo, merecedor de tutela jurídica específica e dotado de valores propriamente ecológicos.

O movimento, por fim, foi coroado com a promulgação da Constituição Federal de 1988, momento histórico em que o direito ao meio ambiente equilibrado passou à centralidade da ordem jurídica interna e a se espraiar a todos os ramos do direito. Adotou-se um constitucionalismo ecológico antropocêntrico, na medida em que o meio ambiente sadio foi alçado a direito humano e fundamental e para o fim de promover a dignidade da pessoa humana.

Parte considerável do aporte teórico, como também as declarações internacionais, a Constituição de 1988 e os diplomas normativos internos – com seus respectivos procedimentos, instrumentos jurídico-legais e órgãos -, surgiram ancorados no ambientalismo antropocêntrico e na noção de sustentabilidade.

Nada obstante, a degradação ambiental não cessa, havendo maior índice de desmatamento na série histórica no Cerrado e na Amazônia em fevereiro de 2023, segundo o INPE, sendo este descompasso entre a promessa da norma e sua concretude uma das razões pelas quais estudiosos têm proposto a superação do modelo antropocêntrico em favor de um direito ecológico propriamente dito, de cunho ecocêntrico ou biocêntrico, ao argumento de que “Não há como pensar soluções ambientais efetivas ignorando o ponto de partida sobre o valor da natureza e de seus elementos constitutivos”.53

Sobre o autor
Ary Queiroz Vieira Júnior

Bacharel em Ciências Jurídicas, pós-graduado em Direito do Estado, Defensor Público do Estado do Pará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA JÚNIOR, Ary Queiroz. O nascedouro e o desenvolvimento do direito humano e fundamental ao meio ambiente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7378, 13 set. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106098. Acesso em: 22 nov. 2024.

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