A questão do aborto no Brasil foi tratada pela primeira vez no Código Criminal do Império de 1830.
Segundo seus artigos 199 e 200 respectivamente, na seção do infanticídio, eram crimes tanto “occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada” como também “fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique”.
De seu turno, conforme o Código Penal de 1890, em seus artigos 300 e 301, foram considerados crimes de aborto respectivamente, “provocar abôrto, haja ou não a expulsão do fructo da concepção” e “provocar abôrto com annuencia e accordo da gestante”.
Finalmente, o Código Penal de 1940, vigente até hoje, trata da questão no capítulo “Dos Crimes Contra a Vida”, essencialmente em seus artigos 124 à 126, segundo os quais é considerado crime “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”, “provocar aborto, sem o consentimento da gestante” e “provocar aborto com o consentimento da gestante”.
Com efeito, a presente análise se restringirá ao aspecto jurídico da questão, não adentrando nos campos religioso, político, social e cultural.
Destarte, o primeiro Código Penal da República possuía um dispositivo que criava exceção à proibição absoluta da vedação ao aborto, qual seja, em seu artigo 302, segundo o qual “si o medico, ou parteira, praticando o abôrto legal, ou abôrto necessario, para salvar a gestante de morte inevitavel...”
Outrossim, o atual Código Criminal, além de reproduzir a exceção vislumbrada na codificação anterior, estatuí outra excludente de ilicitude, qual seja, “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.
Além disso, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 do Distrito Federal, o Supremo Tribunal Federal criou mais uma excludente de antijuridicidade. Vejamos a ementa do acórdão:
ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações.
FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.
Ora, a despeito da ementa destacar os valores da liberdade sexual e reprodutiva da mulher, além da sua saúde, dignidade e autodeterminação, a ratio do julgado reside no fato de inviabilidade de vida extrauterina do feto anencéfalo, não havendo motivo para obrigar as mulheres a seguir com o período de gestação.
Ocorre que, em vias de aposentadoria compulsória, a Ministra Rosa Weber da Suprema Corte pautou o tema da descriminalização do aborto até 12 (doze) meses de gestação, constante da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442 do Distrito Federal, tendo concluído ao final do seu voto que
“… Ante as razões expostas, julgo procedente, em parte, o pedido, para declarar a não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, em ordem a excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação realizada nas primeiras doze semanas”.1
Contudo, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prescreve como direito fundamental, verdadeira cláusula pétrea, insuscetível de revogação, a inviolabilidade do direito à vida (art. 5º).
Além disso, a única ressalva à pena de morte feita pela Constituição Cidadã foi a relativa à guerra declarada, por absoluta necessidade de sobrevivência.
Portanto, em sede preliminar, podemos dizer que a Carta Magna protege a vida, e não a morte.
Nesse diapasão, o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal nº 8.069 de 1990, estipula em seu artigo 7º que “a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.
De outro vértice, o Código Civil de 2002, legislação mais recente, em seu artigo 2º estabelece que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Nesse diapasão, as codificações e estatutos civis escolheram também proteger a vida intrauterina, garantindo ao nascituro alguns direitos inerentes à sua condição, inclusive com políticas públicas dirigidas ao nascimento, e não ao aborto.
Ora, se a própria legislação civil já garante direitos ao nascituro, como não deveria fazê-lo a legislação penal?
É como dizer: aquele que está para nascer possui alguns direitos, como por exemplo aos alimentos gravídicos (art. 6º, Lei Federal nº 11.804 de 2008), mas não possui direito de nascer?
Nesse ponto, podemos verificar uma tentativa de violação ao princípio da proporcionalidade na vertente da proibição da proteção deficiente.
Conforme o Ministro do Tribunal Constitucional Luís Roberto Barroso, ao que tudo indica um dos entusiastas do movimento pró-aborto2,
Em resumo, o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: (a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado; (b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual (vedação do excesso); (c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha. Nessa avaliação, o magistrado deve ter o cuidado de não invalidar escolhas administrativas situadas no espectro do aceitável, impondo seus próprios juízos de conveniência e oportunidade. Não cabe ao Judiciário impor a realização das melhores políticas, em sua própria visão, mas tão somente o bloqueio de opções que sejam manifestamente incompatíveis com a ordem constitucional. O princípio também funciona como um critério de ponderação entre proposições constitucionais que estabeleçam tensões entre si ou que entrem em rota de colisão. (g. n.)
Dessa feita, para o referido autor, não cabe ao Poder Judiciário invalidar escolhas administrativas, no caso, a eleição do aborto como infração penal, e impor seus próprios critérios de conveniência e oportunidade, como por exemplo, estabelecer um prazo no qual a interrupção da gravidez seria legítima.
Noutra quadra, para o também Ministro da Suprema Corte Gilmar Ferreira Mendes, em obra com o Procurador da República Paulo Gustavo Gonet Branco,
De ressaltar, porém, que, enquanto princípio expressamente consagrado na Constituição ou enquanto postulado constitucional imanente, o princípio da proteção do núcleo essencial destina-se a evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental decorrente de restrições descabidas, desmesuradas ou desproporcionais. (g. n.)
Ademais, os mencionados autores igualmente tratam da outra vertente do princípio da proporcionalidade, nos seguintes termos:
Ao lado da ideia da proibição do excesso tem a Corte Constitucional alemã apontado a lesão ao princípio da proibição da proteção insuficiente. Schlink observa, porém, que, se o Estado nada faz para atingir um dado objetivo para o qual deva envidar esforços, não parece que esteja a ferir o princípio da proibição da insuficiência, mas sim um dever de atuação decorrente de dever de legislar ou de qualquer outro dever de proteção. Se se comparam, contudo, situações do âmbito das medidas protetivas, tendo em vista a análise de sua eventual insuficiência, tem-se uma operação diversa da verificada no âmbito da proibição do excesso, na qual se examinam as medidas igualmente eficazes e menos invasivas. Daí concluiu que “a conceituação de uma conduta estatal como insuficiente (untermässig), porque ‘ela não se revela suficiente para uma proteção adequada e eficaz’, nada mais é, do ponto de vista metodológico, do que considerar referida conduta como desproporcional em sentido estrito (unverhältnismässig im engeren Sinn)”. (g. n.)
Nessa senda, a proteção do núcleo essencial do direito à vida reside na figura do crime de aborto expressamente previsto no vigente Código Penal.
Além de tudo, é dever do Estado envidar esforços para que não haja uma proteção deficiente da vida humana, que se concretizou na codificação criminal.
Nesse sentido, o entendimento exposado no voto da relatora da ADPF nº 442-DF vai na contramão da legislação pátria.
Sob outro prisma, em tema de direitos fundamentais, deve incidir o princípio da máxima efetividade, que segundo o professor Pedro Lenza,
Também chamado de princípio da eficiência ou da interpretação efetiva, o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais deve ser entendido no sentido de a norma constitucional ter a mais ampla efetividade social. Segundo Canotilho, “é um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (THOMA), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)”.
Entretanto, para Eduardo dos Santos, a teoria mais adequada à proteção sério do feto, nos âmbitos civil e constitucional, seria a teoria da personalidade condicionada. Para o autor,
Não há como defender um direito fundamental à vida do feto, em primeiro lugar porque não é titular de direitos fundamentais, em segundo lugar porque seria de grande temeridade já que até hoje sequer se tem um consenso universal na biologia ou na medicina sobre o início da vida. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 3.5103 que discutia a (in)constitucionalidade de alguns dispositivos da Lei de Biossegurança que regulamentam as pesquisas com células-tronco e o uso de embriões humanos, em posição capitaneada pelo relator, Min. Carlos Ayres Britto, e seguida pela maioria, decidiu que não há titularidade de um direito à vida antes do nascimento com vida, havendo contudo uma proteção constitucional da vida intrauterina decorrente da dignidade da vida humana em potencial, de modo que, “embora não se possa falar de uma pessoa, na condição de sujeito de direitos fundamentais, existe uma proteção que atinge todo o processo vital, compreendido como um processo indivisível de formação do ser humano, que deságua no indivíduo-pessoa resultante do nascimento com vida”, ou em outras palavras, o feto não possui direito (subjetivo) fundamental à vida, mas possui uma robusta proteção constitucional que se funda na dignidade da pessoa humana e enseja uma série de deveres aos indivíduos já personalizados, ao Estado e até mesmo a pessoas jurídicas a depender da situação, estabelecendo um complexo sistema de proteção da vida humana em potencial. (g. n.)
Nesse ponto, não concordamos com o autor, haja vista que, exatamente por não termos uma definição na biologia ou na medicina sobre o despertar da vida, deve incidir o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, pois em tema de direitos fundamentais não cabe interpretação restritiva.
Ainda com Santos, este defende um direito fundamental ao aborto, invocando como um de seus argumentos “a liberdade sexual e garantia de não punição pelo seu exercício” e a “equiparação plena de gênero em direitos”.
Nesse ponto, também rechaçamos as teses do autor, pois, não se está limitando a liberdade sexual da mulher, mas apenas exigindo responsabilidade pela prática de atos que excedem seu âmago e afetam terceiros, e a própria Constituição da República não abarca a cabal igualdade de gêneros em direitos e deveres, não sendo lícita tal linha de raciocínio para justificar a morte.4
À guisa de conclusão neste breve mas provocativo escorço, apesar da Constituição de 1988 não estabelecer um marco temporal quanto ao momento ou início da proteção do direito à vida, é assente que o legislador infraconstitucional vem estabelecendo vetores normativos para a garantia seja na seara civil, seja na seara penal, sendo inconstitucional a criação de regras contra legem pelo Poder Judiciário, mormente no sentido de cessação da vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. – 9. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. – 16. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021. (Série IDP)
LENZA, Pedro. Direito Constitucional. – 26. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2022. (Coleção Esquematizado)
SANTOS, Eduardo. Direito constitucional sistematizado [recurso eletrônico]. - Indaiatuba, SP : Editora Foco, 2021.
Notas
1 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=514619&ori=1 Acesso em: 28 set. 2023.
2 Ementa: DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. (HC nº 124.306-RJ)
3 CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DE BIOSSEGURANÇA. IMPUGNAÇÃO EM BLOCO DO ART. 5º DA LEI Nº 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005 (LEI DE BIOSSEGURANÇA). PESQUISAS COM CÉLULAS TRONCO EMBRIONÁRIAS. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO DIREITO À VIDA. CONSTITUCIONALIDADE DO USO DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS EM PESQUISAS CIENTÍFICAS PARA FINS TERAPÊUTICOS. DESCARACTERIZAÇÃO DO ABORTO. NORMAS CONSTITUCIONAIS CONFORMADORAS DO DIREITO FUNDAMENTAL A UMA VIDA DIGNA, QUE PASSA PELO DIREITO À SAÚDE E AO PLANEJAMENTO FAMILIAR. DESCABIMENTO DE UTILIZAÇÃO DA TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA ADITAR À LEI DE BIOSSEGURANÇA CONTROLES DESNECESSÁRIOS QUE IMPLICAM RESTRIÇÕES ÀS PESQUISAS E TERAPIAS POR ELA VISADAS. IMPROCEDÊNCIA TOTAL DA AÇÃO.
4 Aqui, podemos apontar, como exemplos, a idade diferenciada de aposentadoria entre homens e mulheres no artigo 40, § 1º, inciso III, e artigo 201, § 7º, incisos I e II, da Constituição, independentemente da mulher passar pela maternidade, e a isenção do serviço militar obrigatório para as mulheres, independentemente de qualquer condição, conforme o artigo 143, § 2º, da Constituição.