1. Introdução
A dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, o que está enunciado logo no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Já ao tratar dos direitos fundamentais, a atual Constituição Federal contempla os direitos sociais à saúde e à moradia (artigo 6º, caput, da Constituição Federal), sendo sempre oportuno relembrar que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado também se insere entre os direitos fundamentais previstos no texto constitucional (artigo 225, caput, da Constituição Federal). Apesar disso, parcela significativa da população brasileira ainda não tem acesso à água potável e ao esgotamento sanitário. Ademais, as enchentes são cada vez mais frequentes e intensas, bem como a destinação final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos ainda não foi implementada em grande parte do país.
Verifica-se, assim, que, tais normas constitucionais estão longe de serem concretizadas, sendo nesse contexto que se insere o novo Marco Legal do Saneamento Básico, cujo teor é objeto do presente artigo, especificamente no que tange à modelagem da prestação dos serviços.
2. Considerações Iniciais
A Constituição Federal de 1988, ao realizar a repartição de competências entre os Entes da Federação, estabelece, no seu artigo 21, inciso XX, que compete à União “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos” (grifo nosso). Diante disso, foi editada a Lei nº 11.445, de 2007, que estabelece as diretrizes nacionais do saneamento básico, a qual sofreu significativa alteração por meio da Lei nº 14.026, de 2020, que, por sua vez, é chamada de Novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil.
A definição de saneamento básico nos é apresentada no artigo 3º, inciso I, da Lei nº 11.445/2007, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020, nestes termos:
I - saneamento básico: conjunto de serviços públicos, infraestruturas e instalações operacionais de: (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)
a) abastecimento de água potável: constituído pelas atividades e pela disponibilização e manutenção de infraestruturas e instalações operacionais necessárias ao abastecimento público de água potável, desde a captação até as ligações prediais e seus instrumentos de medição; (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)
b) esgotamento sanitário: constituído pelas atividades e pela disponibilização e manutenção de infraestruturas e instalações operacionais necessárias à coleta, ao transporte, ao tratamento e à disposição final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até sua destinação final para produção de água de reúso ou seu lançamento de forma adequada no meio ambiente; (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)
c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos: constituídos pelas atividades e pela disponibilização e manutenção de infraestruturas e instalações operacionais de coleta, varrição manual e mecanizada, asseio e conservação urbana, transporte, transbordo, tratamento e destinação final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos domiciliares e dos resíduos de limpeza urbana; e (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)
d) drenagem e manejo das águas pluviais urbanas: constituídos pelas atividades, pela infraestrutura e pelas instalações operacionais de drenagem de águas pluviais, transporte, detenção ou retenção para o amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição final das águas pluviais drenadas, contempladas a limpeza e a fiscalização preventiva das redes; (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)
Em outras palavras, saneamento básico é o conjunto de serviços públicos de abastecimento de água potável, de esgotamento sanitário, de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, bem como de drenagem e manejo das águas pluviais urbanas, incluídas as respectivas infraestruturas necessárias à realização dessas atividades. Observa-se que, nos termos da lei, cada um dos serviços que compõem o saneamento básico abrange desde a atividade inicial do referido serviço - como a captação de água, a coleta de esgoto e de resíduos urbanos, além da drenagem de águas pluviais - até a atividade final - com as ligações prediais e a medição de água nas residências, a destinação final do esgoto, dos resíduos sólidos domiciliares e dos resíduos de limpeza urbana de forma ambientalmente adequada, bem como a disposição final das águas pluviais drenadas, incluídas a limpeza e a fiscalização preventiva das redes.
O novo Marco Legal do Saneamento Básico apresenta como um dos seus princípios fundamentais a universalização do acesso e efetiva prestação do serviço, constituindo a universalização, conforme o artigo 3º, inciso III, da Lei nº 11.445/2007, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020, a
ampliação progressiva do acesso de todos os domicílios ocupados ao saneamento básico, em todos os serviços previstos no inciso XIV do caput deste artigo, incluídos o tratamento e a disposição final adequados dos esgotos sanitários. (Grifo no original)
Ademais, a partir da Lei nº 14.026/2020 foi definido como meta de universalização o abastecimento de 99% (noventa e nove por cento) da população com água potável e o atendimento de 90% (noventa por cento) da população com coleta e tratamento de esgoto sanitário até 31 de dezembro de 2033.2
Diante disso, a Lei nº 14.026/2020 previu instrumentos facilitadores da universalização, a saber, a gestão associada e a prestação regionalizada.
A gestão associada nada mais é do que a associação dos Entes da Federação, de forma voluntária, seja por meio de consórcio público, seja por meio de convênio de cooperação, a fim de realizar os serviços públicos de saneamento básico.3 Destaca-se que os consórcios intermunicipais serão compostos apenas por Municípios, os quais “(...) poderão prestar o serviço aos seus consorciados diretamente, pela instituição de autarquia intermunicipal.”4 Ademais, é vedado aos consórcios intermunicipais formalizarem contrato de programa com sociedade de economia mista ou empresa pública, ou ainda subdelegar o serviço prestado sem licitação.5
Já a prestação regionalizada diz respeito à prestação de um ou mais de um dos serviços de saneamento básico em uma área territorial composta por mais de um Município, podendo ser estruturada das seguintes formas, consoante previsto nas alíneas do artigo 3º, inciso VI, da Lei nº 11.445/2007, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020:
a) região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião: unidade instituída pelos Estados mediante lei complementar, de acordo com o § 3º do art. 25. da Constituição Federal, composta de agrupamento de Municípios limítrofes e instituída nos termos da Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole); (Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020)
b) unidade regional de saneamento básico: unidade instituída pelos Estados mediante lei ordinária, constituída pelo agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, ou para dar viabilidade econômica e técnica aos Municípios menos favorecidos; (Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020)
c) bloco de referência: agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, estabelecido pela União nos termos do § 3º do art. 52. desta Lei e formalmente criado por meio de gestão associada voluntária dos titulares; (Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020)
Observa-se que as principais diferenças entre as formas de prestação regionalizada do saneamento básico é que na região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião a lei complementar estadual a institui, sendo composta por Municípios limítrofes, enquanto a unidade regional depende de lei ordinária, não sendo necessário que os Municípios sejam limítrofes. Já o bloco de referência se diferencia das demais estruturas por ser instituído pela União e não pelo Estado-membro, porém, do mesmo modo que a unidade regional, os Municípios não precisam ser limítrofes. Aliás, os blocos de referência serão instituídos de forma subsidiária à criação pelos Estados-membros de estruturas de prestação regionalizada dos serviços de saneamento básico, consoante disposto no artigo 52, parágrafo 3º, da Lei nº 11.445/2007, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020.
Também é oportuno registrar a compulsoriedade da integração do Município à região metropolitana, à aglomeração urbana e à microrregião o que não ocorre nas outras estruturas de prestação regionalizada, consoante adverte Aloísio Zimmer6:
Com relação à Região Metropolitana, à Aglomeração Urbana e à Microrregião, a adesão dos municípios é compulsória, ou seja, esses não poderão insurgir-se em face de tais estruturas de regionalização. Isso porque a modelagem dessas formas de prestação do serviço está ligada à existência material de compartilhamento de infraestrutura operacional, identificando-se a transição do interesse local para o interesse comum. Assim, entende-se que o exercício das atividades de saneamento em um município tem impacto direto em outro município, de modo que a regra do artigo 8º, inciso I seja suplantada pela do inciso II da Lei 11.445/2007.
(...)
Por outro lado, com relação às estruturas regionalizadas trazidas pelo Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico (Unidade Regional e Bloco de Referência), a adesão será voluntária. Isso decorre do texto da Lei n. 11.445/2007 e do Decreto Federal n. 10.588/2020. Reitera-se que o artigo 8º, inciso I da Lei n. 11.445/2007 dispôs que a titularidade dos serviços de saneamento será dos municípios e do Distrito Federal “no caso de interesse local”. Caso o município exerça a titularidade por predomínio do interesse local, exige-se dele a anuência para passar a integrar a Unidade Regional ou o Bloco de Referência.
É importante ressaltar que a gestão associada e a prestação regionalizada propiciam a eficiência e a sustentabilidade econômica dos serviços, o que constitui princípios fundamentais do saneamento básico, constantes expressamente no artigo 2º, inciso VII, da Lei nº 11.445/2007. Com efeito, a prestação dos serviços de forma integrada, em tese, gera ganho de economia de escala, uma vez que com a reunião de Municípios há o compartilhamento de infraestrutura, de sistemas e de mão de obra. Ademais, por vezes, será a gestão associada ou a prestação regionalizada que viabilizará técnica e economicamente a prestação do serviço em Municípios pequenos que não possuem recursos humanos, financeiros e técnicos capazes de, por si só, tornar exequível os serviços de saneamento básico.
Andrea Ferreira Caputo Jobim, Daniel Derenusson Kowarski, Giovani Morelli e Tatianna Fernandes da Paz Ribeiro de Souza7 destacam que:
O arranjo da regionalização visa, precipuamente, a adequar a situação financeira de inúmeros municípios com a obrigatoriedade de prestação dos serviços de saneamento básico, o que restaria impossibilitado de maneira isolada. Nesse sentido, a solução que a lei trouxe foi justamente a de estimular a agregação de Municípios menores para ganharem maior atratividade de investimentos.
Assim, Municípios que sozinhos não teriam condições técnicas e financeiras de prestar os serviços, ou mesmo não seriam atrativos para a iniciativa privada, reunidos, por meio da gestão associada ou pela prestação regionalizada, têm maiores condições de fornecer a sua população os serviços de saneamento básico.
3. A Titularidade dos Serviços de Saneamento Básico
A partir da Constituição Federal de 1988, o Município passou a ter um destaque maior em relação ao saneamento básico. Com efeito, esse assunto está disciplinado em diversos artigos, destacando-se o artigo 21, inciso XX, da Constituição Federal que confere à União traçar as diretrizes do saneamento básico, enquanto o artigo 23, inciso IX, da Constituição de 1988 estabelece a competência comum de todos os Entes da Federação para promover a melhoria das condições de saneamento básico. Entretanto, é indiscutível que a atual Constituição Federal deu protagonismo aos Municípios em relação à prestação dos serviços de saneamento básico ao prever, no artigo 30, inciso V, que lhes compete organizar e prestar, diretamente ou por delegação na forma de concessão ou de permissão, os serviços públicos de interesse local.
Ou seja, sendo os serviços de saneamento básico afetos, predominantemente, ao interesse local, são de titularidade dos Municípios.
Excepcionalmente, a titularidade dos serviços de saneamento básico pode ser do Estado-membro e dos Municípios que integrassem a região metropolitana, aglomeração urbana e microrregião, nos casos de interesse comum, termos do artigo 25, parágrafo 3º, da Constituição Federal.
Já na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1842, o Supremo Federal reconheceu a titularidade dos Municípios em relação aos serviços de saneamento básico no caso de interesse local, porém, quando tais serviços extrapolarem o interesse local, passando a ser de interesse comum, entendeu o Supremo Tribunal Federal ser constitucional a instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões para a prestação do serviço, com a integração compulsória dos Municípios, o que não lhes retiraria sua autonomia. Assim constou na ementa do referido julgado:
Ação direta de inconstitucionalidade. Instituição de região metropolitana e competência para saneamento básico. Ação direta de inconstitucionalidade contra Lei Complementar n. 87/1997, Lei n. 2.869/1997 e Decreto n. 24.631/1998, todos do Estado do Rio de Janeiro, que instituem a Região Metropolitana do Rio de Janeiro e a Microrregião dos Lagos e transferem a titularidade do poder concedente para prestação de serviços públicos de interesse metropolitano ao Estado do Rio de Janeiro. 2. Preliminares de inépcia da inicial e prejuízo. Rejeitada a preliminar de inépcia da inicial e acolhido parcialmente o prejuízo em relação aos arts. 1º, caput e § 1º; 2º, caput; 4º, caput e incisos I a VII; 11, caput e incisos I a VI; e 12 da LC 87/1997/RJ, porquanto alterados substancialmente. 3. Autonomia municipal e integração metropolitana. A Constituição Federal conferiu ênfase à autonomia municipal ao mencionar os municípios como integrantes do sistema federativo (art. 1º da CF/1988) e ao fixá-la junto com os estados e o Distrito Federal (art. 18. da CF/1988). A essência da autonomia municipal contém primordialmente (i) autoadministração, que implica capacidade decisória quanto aos interesses locais, sem delegação ou aprovação hierárquica; e (ii) autogoverno, que determina a eleição do chefe do Poder Executivo e dos representantes no Legislativo. O interesse comum e a compulsoriedade da integração metropolitana não são incompatíveis com a autonomia municipal. O mencionado interesse comum não é comum apenas aos municípios envolvidos, mas ao Estado e aos municípios do agrupamento urbano. O caráter compulsório da participação deles em regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas já foi acolhido pelo Pleno do STF (ADI 1841/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 20.9.2002; ADI 796/ES, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 17.12.1999). O interesse comum inclui funções públicas e serviços que atendam a mais de um município, assim como os que, restritos ao território de um deles, sejam de algum modo dependentes, concorrentes, confluentes ou integrados de funções públicas, bem como serviços supramunicipais. 4. Aglomerações urbanas e saneamento básico. O art. 23, IX, da Constituição Federal conferiu competência comum à União, aos estados e aos municípios para promover a melhoria das condições de saneamento básico. Nada obstante a competência municipal do poder concedente do serviço público de saneamento básico, o alto custo e o monopólio natural do serviço, além da existência de várias etapas – como captação, tratamento, adução, reserva, distribuição de água e o recolhimento, condução e disposição final de esgoto – que comumente ultrapassam os limites territoriais de um município, indicam a existência de interesse comum do serviço de saneamento básico. A função pública do saneamento básico frequentemente extrapola o interesse local e passa a ter natureza de interesse comum no caso de instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, nos termos do art. 25, § 3º, da Constituição Federal. Para o adequado atendimento do interesse comum, a integração municipal do serviço de saneamento básico pode ocorrer tanto voluntariamente, por meio de gestão associada, empregando convênios de cooperação ou consórcios públicos, consoante o arts. 3º, II, e 24 da Lei Federal 11.445/2007 e o art. 241. da Constituição Federal, como compulsoriamente, nos termos em que prevista na lei complementar estadual que institui as aglomerações urbanas. A instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões pode vincular a participação de municípios limítrofes, com o objetivo de executar e planejar a função pública do saneamento básico, seja para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, seja para dar viabilidade econômica e técnica aos municípios menos favorecidos. Repita-se que este caráter compulsório da integração metropolitana não esvazia a autonomia municipal. 5. Inconstitucionalidade da transferência ao estado-membro do poder concedente de funções e serviços públicos de interesse comum. O estabelecimento de região metropolitana não significa simples transferência de competências para o estado. O interesse comum é muito mais que a soma de cada interesse local envolvido, pois a má condução da função de saneamento básico por apenas um município pode colocar em risco todo o esforço do conjunto, além das consequências para a saúde pública de toda a região. O parâmetro para aferição da constitucionalidade reside no respeito à divisão de responsabilidades entre municípios e estado. É necessário evitar que o poder decisório e o poder concedente se concentrem nas mãos de um único ente para preservação do autogoverno e da autoadministração dos municípios. Reconhecimento do poder concedente e da titularidade do serviço ao colegiado formado pelos municípios e pelo estado federado. A participação dos entes nesse colegiado não necessita de ser paritária, desde que apta a prevenir a concentração do poder decisório no âmbito de um único ente. A participação de cada Município e do Estado deve ser estipulada em cada região metropolitana de acordo com suas particularidades, sem que se permita que um ente tenha predomínio absoluto. Ação julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade da expressão “a ser submetido à Assembleia Legislativa” constante do art. 5º, I; e do § 2º do art. 4º; do parágrafo único do art. 5º; dos incisos I, II, IV e V do art. 6º; do art. 7º; do art. 10; e do § 2º do art. 11. da Lei Complementar n. 87/1997 do Estado do Rio de Janeiro, bem como dos arts. 11. a 21 da Lei n. 2.869/1997 do Estado do Rio de Janeiro. 6. Modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Em razão da necessidade de continuidade da prestação da função de saneamento básico, há excepcional interesse social para vigência excepcional das leis impugnadas, nos termos do art. 27. da Lei n. 9868/1998, pelo prazo de 24 meses, a contar da data de conclusão do julgamento, lapso temporal razoável dentro do qual o legislador estadual deverá reapreciar o tema, constituindo modelo de prestação de saneamento básico nas áreas de integração metropolitana, dirigido por órgão colegiado com participação dos municípios pertinentes e do próprio Estado do Rio de Janeiro, sem que haja concentração do poder decisório nas mãos de qualquer ente.
(ADI 1842, Relator(a): LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 06/03/2013, DJe-181 DIVULG 13-09-2013 PUBLIC 16-09-2013 EMENT VOL-02701-01 PP-00001) (Grifo nosso)
O artigo 8º da Lei nº 11.445/2007, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020, prevê, basicamente, que a titularidade dos serviços de saneamento básico é dos Municípios e o Distrito Federal, em se tratando de interesse local, e será do Estado-membro e dos Municípios que compartilham as instalações do serviço de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, em se tratando de interesse comum.
Vários dispositivos da Lei nº 14.026/2020 tiveram sua constitucionalidade questionada perante o Supremo Tribunal Federal, o qual, no entanto, reconheceu a validade dos artigos questionados no julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.492, 6.536, 6.583 e 6.882:
AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.492, 6.536, 6.583 E 6.882. DIREITO CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E REGULATÓRIO. LEI 14.026/2020. ATUALIZAÇÃO DO MARCO LEGAL DO SANEAMENTO BÁSICO. RENOVAÇÃO EM QUATRO LEIS FEDERAIS – NA LEI 9.984/2000, QUE INSTITUIU A AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (ANA); NA LEI 10.768/2003, QUE DISPÕE SOBRE O QUADRO FUNCIONAL DA ANA; NA LEI 11.107/2005, A LEI DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS; E, PRINCIPALMENTE, NA LEI 11.445/2007, QUE ESTABELECE AS DIRETRIZES NACIONAIS PARA O SANEAMENTO BÁSICO. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE POSITIVO. MÉRITO. QUATRO PREMISSAS TEÓRICAS. (A) DISCIPLINA CONSTITUCIONAL DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SANEAMENTO. (B) FUNCIONALIDADE E ATRIBUTOS ECONÔMICOS DO SANEAMENTO. (C) REALIDADE BRASILEIRA À LUZ DA REDAÇÃO ORIGINAL DA LEI 11.445/2007. DESATENDIMENTO ÀS ESSENCIALIDADES SANITÁRIAS. (D) OBJETIVOS SETORIAIS DA LEI 14.026/2020. TEMÁTICAS APRECIADAS. PRIMEIRO PILAR DA LEI 14.026/2020. (1) OS INSTRUMENTOS DE PRESTAÇÃO REGIONALIZADA VERSUS A AUTONOMIA POLÍTICA E FINANCEIRA DOS MUNICÍPIOS. CONSTITUCIONALIDADE DOS INSTITUTOS LEGAIS DE COOPERAÇÃO. SEGUNDO PILAR DA LEI 14.026/2020. (2) A MODELAGEM CONTRATUAL QUE DETERMINOU A CONCESSÃO OBRIGATÓRIA E, AO MESMO TEMPO, A VEDAÇÃO AO CONTRATO DE PROGRAMA. CONTRAPONTOS: “ESVAZIAMENTO” DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA DOS MUNICÍPIOS E DESRESPEITO A ATOS JURÍDICOS PERFEITOS. IMPROCEDÊNCIA. DEFASAGEM E ACOMODAÇÃO GERADAS PELO CONTRATO DE PROGRAMA. TERCEIRO PILAR DA LEI 14.026/2020. (3) O ROBUSTECIMENTO DA INSTÂNCIA FEDERAL PARA A COORDENAÇÃO DO SISTEMA DE SANEAMENTO. ALEGAÇÕES: VÍCIO FORMAL ORIGINÁRIO NA ATRIBUIÇÃO DAS COMPETÊNCIAS FISCALIZATÓRIAS E SANCIONADORAS À AGÊNCIA; E ABUSO DE PODER NO PROCEDIMENTO CONDICIONANTE À ELEGIBILIDADE PARA AS TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS. IMPROCEDÊNCIA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A TUTELA DA SEGURANÇA JURÍDICA, EM FACE DOS ARTS. 13. E 14 DA LEI 14.026/2020. AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE CONHECIDAS E, NO MÉRITO, JULGADAS IMPROCEDENTES.
(ADI 6492, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 02/12/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 24-05-2022 PUBLIC 25-05-2022)
No voto do Ministro Luiz Fux, Relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6492, foi abordado que compete ao Congresso Nacional estabelecer as diretrizes do saneamento básico e as normas gerais de contratação pública e, no exercício dessa competência, é que foi editada a Lei nº 14.026/2020. Ademais, foram ressaltados os artigos 23, inciso IX, 30, inciso V, 198, 200, inciso IV, e 241 da Constituição Federal. Em relação à titularidade do serviço e da prestação regionalizada trazida pela Lei nº 14.026/2020, é importante trazer o seguinte trecho do voto do Relator8:
Em contraponto, os arranjos peculiares à Lei 14.026/2020 se limitam à viabilidade da execução de um ou mais serviços públicos de saneamento básico. A organização das atividades continua sob a titularidade dos Municípios; ao passo que o planejamento é o resultado da deliberação democrática em dois níveis, o Plano Federal e o Plano Estadual ou Regional.
Também não prospera a argumentação que rivaliza, de um lado, as “unidades regionais de saneamento básico” e os “blocos de referência”; e por outro lado, a autonomia dos Municípios, plasmada nos arts. 1º, 18, 29, caput; 30, incisos I e V; 34, inciso VII, alínea “c”, da Constituição.
Para que não pairem dúvidas: quanto à titularidade dos serviços públicos de saneamento, a Lei 14.026/2020 manteve a autonomia municipal. Apesar de questões referentes ao saneamento básico serem intrinsecamente de interesse local e de competência dos entes municipais, isso não impede a atuação conjunta e integrada entre todos os entes, o que se pretende com as alterações legais questionadas. (Grifo nosso)
Assim, apesar da existência de vozes contrárias na doutrina, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do Novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil.