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A prestação dos serviços de saneamento básico no Brasil à luz da Lei nº 14.026/2020

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03/10/2023 às 18:11
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A Lei nº 14.026/2020 incentiva a regionalização dos serviços que compõem o saneamento básico, a fim de que se ganhe economia de escala, e o investimento privado em municípios pouco atrativos no mercado.

1.Introdução

A dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, o que está enunciado logo no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Já ao tratar dos direitos fundamentais, a atual Constituição Federal contempla os direitos sociais à saúde e à moradia (artigo 6º, caput, da Constituição Federal), sendo sempre oportuno relembrar que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado também se insere entre os direitos fundamentais previstos no texto constitucional (artigo 225, caput, da Constituição Federal). Apesar disso, parcela significativa da população brasileira ainda não tem acesso à água potável e ao esgotamento sanitário. Ademais, as enchentes são cada vez mais frequentes e intensas, bem como a destinação final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos ainda não foi implementada em grande parte do país.

Verifica-se, assim, que, tais normas constitucionais estão longe de serem concretizadas, sendo nesse contexto que se insere o novo Marco Legal do Saneamento Básico, cujo teor é objeto do presente artigo, especificamente no que tange à modelagem da prestação dos serviços.

  1. Considerações Iniciais

A Constituição Federal de 1988, ao realizar a repartição de competências entre os Entes da Federação, estabelece, no seu artigo 21, inciso XX, que compete à União “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos” (grifo nosso). Diante disso, foi editada a Lei nº 11.445, de 2007, que estabelece as diretrizes nacionais do saneamento básico, a qual sofreu significativa alteração por meio da Lei nº 14.026, de 2020, que, por sua vez, é chamada de Novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil.

A definição de saneamento básico nos é apresentada no artigo 3º, inciso I, da Lei nº 11.445/2007, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020, nestes termos:

I - saneamento básico: conjunto de serviços públicos, infraestruturas e instalações operacionais de:          (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)

a) abastecimento de água potável: constituído pelas atividades e pela disponibilização e manutenção de infraestruturas e instalações operacionais necessárias ao abastecimento público de água potável, desde a captação até as ligações prediais e seus instrumentos de medição;          (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)

b) esgotamento sanitário: constituído pelas atividades e pela disponibilização e manutenção de infraestruturas e instalações operacionais necessárias à coleta, ao transporte, ao tratamento e à disposição final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até sua destinação final para produção de água de reúso ou seu lançamento de forma adequada no meio ambiente;          (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)

c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos: constituídos pelas atividades e pela disponibilização e manutenção de infraestruturas e instalações operacionais de coleta, varrição manual e mecanizada, asseio e conservação urbana, transporte, transbordo, tratamento e destinação final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos domiciliares e dos resíduos de limpeza urbana; e          (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)

d) drenagem e manejo das águas pluviais urbanas: constituídos pelas atividades, pela infraestrutura e pelas instalações operacionais de drenagem de águas pluviais, transporte, detenção ou retenção para o amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição final das águas pluviais drenadas, contempladas a limpeza e a fiscalização preventiva das redes;          (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)

Em outras palavras, saneamento básico é o conjunto de serviços públicos de abastecimento de água potável, de esgotamento sanitário, de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, bem como de drenagem e manejo das águas pluviais urbanas, incluídas as respectivas infraestruturas necessárias à realização dessas atividades. Observa-se que, nos termos da lei, cada um dos serviços que compõem o saneamento básico abrange desde a atividade inicial do referido serviço - como a captação de água, a coleta de esgoto e de resíduos urbanos, além da drenagem de águas pluviais - até a atividade final - com as ligações prediais e a medição de água nas residências, a destinação final do esgoto, dos resíduos sólidos domiciliares e dos resíduos de limpeza urbana de forma ambientalmente adequada, bem como a disposição final das águas pluviais drenadas, incluídas a limpeza e a fiscalização preventiva das redes.

O novo Marco Legal do Saneamento Básico apresenta como um dos seus princípios fundamentais a universalização do acesso e efetiva prestação do serviço, constituindo a universalização, conforme o artigo 3º, inciso III, da Lei nº 11.445/2007, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020, a

ampliação progressiva do acesso de todos os domicílios ocupados ao saneamento básico, em todos os serviços previstos no inciso XIV do caput deste artigo, incluídos o tratamento e a disposição final adequados dos esgotos sanitários. (Grifo no original)

Ademais, a partir da Lei nº 14.026/2020 foi definido como meta de universalização o abastecimento de 99% (noventa e nove por cento) da população com água potável e o atendimento de 90% (noventa por cento) da população com coleta e tratamento de esgoto sanitário até 31 de dezembro de 2033.2

Diante disso, a Lei nº 14.026/2020 previu instrumentos facilitadores da universalização, a saber, a gestão associada e a prestação regionalizada.

A gestão associada nada mais é do que a associação dos Entes da Federação, de forma voluntária, seja por meio de consórcio público, seja por meio de convênio de cooperação, a fim de realizar os serviços públicos de saneamento básico.3 Destaca-se que os consórcios intermunicipais serão compostos apenas por Municípios, os quais “(...) poderão prestar o serviço aos seus consorciados diretamente, pela instituição de autarquia intermunicipal.”4 Ademais, é vedado aos consórcios intermunicipais formalizarem contrato de programa com sociedade de economia mista ou empresa pública, ou ainda subdelegar o serviço prestado sem licitação.5

Já a prestação regionalizada diz respeito à prestação de um ou mais de um dos serviços de saneamento básico em uma área territorial composta por mais de um Município, podendo ser estruturada das seguintes formas, consoante previsto nas alíneas do artigo 3º, inciso VI, da Lei nº 11.445/2007, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020:

a) região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião: unidade instituída pelos Estados mediante lei complementar, de acordo com o § 3º do art. 25 da Constituição Federal, composta de agrupamento de Municípios limítrofes e instituída nos termos da Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole);          (Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020)

b) unidade regional de saneamento básico: unidade instituída pelos Estados mediante lei ordinária, constituída pelo agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, ou para dar viabilidade econômica e técnica aos Municípios menos favorecidos;          (Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020)

c) bloco de referência: agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, estabelecido pela União nos termos do § 3º do art. 52 desta Lei e formalmente criado por meio de gestão associada voluntária dos titulares;          (Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020)

Observa-se que as principais diferenças entre as formas de prestação regionalizada do saneamento básico é que na região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião a lei complementar estadual a institui, sendo composta por Municípios limítrofes, enquanto a unidade regional depende de lei ordinária, não sendo necessário que os Municípios sejam limítrofes. Já o bloco de referência se diferencia das demais estruturas por ser instituído pela União e não pelo Estado-membro, porém, do mesmo modo que a unidade regional, os Municípios não precisam ser limítrofes. Aliás, os blocos de referência serão instituídos de forma subsidiária à criação pelos Estados-membros de estruturas de prestação regionalizada dos serviços de saneamento básico, consoante disposto no artigo 52, parágrafo 3º, da Lei nº 11.445/2007, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020.

Também é oportuno registrar a compulsoriedade da integração do Município à região metropolitana, à aglomeração urbana e à microrregião o que não ocorre nas outras estruturas de prestação regionalizada, consoante adverte Aloísio Zimmer6:

Com relação à Região Metropolitana, à Aglomeração Urbana e à Microrregião, a adesão dos municípios é compulsória, ou seja, esses não poderão insurgir-se em face de tais estruturas de regionalização. Isso porque a modelagem dessas formas de prestação do serviço está ligada à existência material de compartilhamento de infraestrutura operacional, identificando-se a transição do interesse local para o interesse comum. Assim, entende-se que o exercício das atividades de saneamento em um município tem impacto direto em outro município, de modo que a regra do artigo 8º, inciso I seja suplantada pela do inciso II da Lei 11.445/2007.

(...)

Por outro lado, com relação às estruturas regionalizadas trazidas pelo Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico (Unidade Regional e Bloco de Referência), a adesão será voluntária. Isso decorre do texto da Lei n. 11.445/2007 e do Decreto Federal n. 10.588/2020. Reitera-se que o artigo 8º, inciso I da Lei n. 11.445/2007 dispôs que a titularidade dos serviços de saneamento será dos municípios e do Distrito Federal “no caso de interesse local”. Caso o município exerça a titularidade por predomínio do interesse local, exige-se dele a anuência para passar a integrar a Unidade Regional ou o Bloco de Referência.

É importante ressaltar que a gestão associada e a prestação regionalizada propiciam a eficiência e a sustentabilidade econômica dos serviços, o que constitui princípios fundamentais do saneamento básico, constantes expressamente no artigo 2º, inciso VII, da Lei nº 11.445/2007. Com efeito, a prestação dos serviços de forma integrada, em tese, gera ganho de economia de escala, uma vez que com a reunião de Municípios há o compartilhamento de infraestrutura, de sistemas e de mão de obra. Ademais, por vezes, será a gestão associada ou a prestação regionalizada que viabilizará técnica e economicamente a prestação do serviço em Municípios pequenos que não possuem recursos humanos, financeiros e técnicos capazes de, por si só, tornar exequível os serviços de saneamento básico.

Andrea Ferreira Caputo Jobim, Daniel Derenusson Kowarski, Giovani Morelli e Tatianna Fernandes da Paz Ribeiro de Souza7 destacam que:

O arranjo da regionalização visa, precipuamente, a adequar a situação financeira de inúmeros municípios com a obrigatoriedade de prestação dos serviços de saneamento básico, o que restaria impossibilitado de maneira isolada. Nesse sentido, a solução que a lei trouxe foi justamente a de estimular a agregação de Municípios menores para ganharem maior atratividade de investimentos.

Assim, Municípios que sozinhos não teriam condições técnicas e financeiras de prestar os serviços, ou mesmo não seriam atrativos para a iniciativa privada, reunidos, por meio da gestão associada ou pela prestação regionalizada, têm maiores condições de fornecer a sua população os serviços de saneamento básico.

  1. A Titularidade dos Serviços de Saneamento Básico

A partir da Constituição Federal de 1988, o Município passou a ter um destaque maior em relação ao saneamento básico. Com efeito, esse assunto está disciplinado em diversos artigos, destacando-se o artigo 21, inciso XX, da Constituição Federal que confere à União traçar as diretrizes do saneamento básico, enquanto o artigo 23, inciso IX, da Constituição de 1988 estabelece a competência comum de todos os Entes da Federação para promover a melhoria das condições de saneamento básico. Entretanto, é indiscutível que a atual Constituição Federal deu protagonismo aos Municípios em relação à prestação dos serviços de saneamento básico ao prever, no artigo 30, inciso V, que lhes compete organizar e prestar, diretamente ou por delegação na forma de concessão ou de permissão, os serviços públicos de interesse local.

Ou seja, sendo os serviços de saneamento básico afetos, predominantemente, ao interesse local, são de titularidade dos Municípios.

Excepcionalmente, a titularidade dos serviços de saneamento básico pode ser do Estado-membro e dos Municípios que integrassem a região metropolitana, aglomeração urbana e microrregião, nos casos de interesse comum, termos do artigo 25, parágrafo 3º, da Constituição Federal.

Já na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1842, o Supremo Federal reconheceu a titularidade dos Municípios em relação aos serviços de saneamento básico no caso de interesse local, porém, quando tais serviços extrapolarem o interesse local, passando a ser de interesse comum, entendeu o Supremo Tribunal Federal ser constitucional a instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões para a prestação do serviço, com a integração compulsória dos Municípios, o que não lhes retiraria sua autonomia. Assim constou na ementa do referido julgado:

Ação direta de inconstitucionalidade. Instituição de região metropolitana e competência para saneamento básico. Ação direta de inconstitucionalidade contra Lei Complementar n. 87/1997, Lei n. 2.869/1997 e Decreto n. 24.631/1998, todos do Estado do Rio de Janeiro, que instituem a Região Metropolitana do Rio de Janeiro e a Microrregião dos Lagos e transferem a titularidade do poder concedente para prestação de serviços públicos de interesse metropolitano ao Estado do Rio de Janeiro. 2. Preliminares de inépcia da inicial e prejuízo. Rejeitada a preliminar de inépcia da inicial e acolhido parcialmente o prejuízo em relação aos arts. 1º, caput e § 1º; 2º, caput; 4º, caput e incisos I a VII; 11, caput e incisos I a VI; e 12 da LC 87/1997/RJ, porquanto alterados substancialmente. 3. Autonomia municipal e integração metropolitana. A Constituição Federal conferiu ênfase à autonomia municipal ao mencionar os municípios como integrantes do sistema federativo (art. 1º da CF/1988) e ao fixá-la junto com os estados e o Distrito Federal (art. 18 da CF/1988). A essência da autonomia municipal contém primordialmente (i) autoadministração, que implica capacidade decisória quanto aos interesses locais, sem delegação ou aprovação hierárquica; e (ii) autogoverno, que determina a eleição do chefe do Poder Executivo e dos representantes no Legislativo. O interesse comum e a compulsoriedade da integração metropolitana não são incompatíveis com a autonomia municipal. O mencionado interesse comum não é comum apenas aos municípios envolvidos, mas ao Estado e aos municípios do agrupamento urbano. O caráter compulsório da participação deles em regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas já foi acolhido pelo Pleno do STF (ADI 1841/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 20.9.2002; ADI 796/ES, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 17.12.1999). O interesse comum inclui funções públicas e serviços que atendam a mais de um município, assim como os que, restritos ao território de um deles, sejam de algum modo dependentes, concorrentes, confluentes ou integrados de funções públicas, bem como serviços supramunicipais. 4. Aglomerações urbanas e saneamento básico. O art. 23, IX, da Constituição Federal conferiu competência comum à União, aos estados e aos municípios para promover a melhoria das condições de saneamento básico. Nada obstante a competência municipal do poder concedente do serviço público de saneamento básico, o alto custo e o monopólio natural do serviço, além da existência de várias etapas – como captação, tratamento, adução, reserva, distribuição de água e o recolhimento, condução e disposição final de esgoto – que comumente ultrapassam os limites territoriais de um município, indicam a existência de interesse comum do serviço de saneamento básico. A função pública do saneamento básico frequentemente extrapola o interesse local e passa a ter natureza de interesse comum no caso de instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, nos termos do art. 25, § 3º, da Constituição Federal. Para o adequado atendimento do interesse comum, a integração municipal do serviço de saneamento básico pode ocorrer tanto voluntariamente, por meio de gestão associada, empregando convênios de cooperação ou consórcios públicos, consoante o arts. 3º, II, e 24 da Lei Federal 11.445/2007 e o art. 241 da Constituição Federal, como compulsoriamente, nos termos em que prevista na lei complementar estadual que institui as aglomerações urbanas. A instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões pode vincular a participação de municípios limítrofes, com o objetivo de executar e planejar a função pública do saneamento básico, seja para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, seja para dar viabilidade econômica e técnica aos municípios menos favorecidos. Repita-se que este caráter compulsório da integração metropolitana não esvazia a autonomia municipal. 5. Inconstitucionalidade da transferência ao estado-membro do poder concedente de funções e serviços públicos de interesse comum. O estabelecimento de região metropolitana não significa simples transferência de competências para o estado. O interesse comum é muito mais que a soma de cada interesse local envolvido, pois a má condução da função de saneamento básico por apenas um município pode colocar em risco todo o esforço do conjunto, além das consequências para a saúde pública de toda a região. O parâmetro para aferição da constitucionalidade reside no respeito à divisão de responsabilidades entre municípios e estado. É necessário evitar que o poder decisório e o poder concedente se concentrem nas mãos de um único ente para preservação do autogoverno e da autoadministração dos municípios. Reconhecimento do poder concedente e da titularidade do serviço ao colegiado formado pelos municípios e pelo estado federado. A participação dos entes nesse colegiado não necessita de ser paritária, desde que apta a prevenir a concentração do poder decisório no âmbito de um único ente. A participação de cada Município e do Estado deve ser estipulada em cada região metropolitana de acordo com suas particularidades, sem que se permita que um ente tenha predomínio absoluto. Ação julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade da expressão “a ser submetido à Assembleia Legislativa” constante do art. 5º, I; e do § 2º do art. 4º; do parágrafo único do art. 5º; dos incisos I, II, IV e V do art. 6º; do art. 7º; do art. 10; e do § 2º do art. 11 da Lei Complementar n. 87/1997 do Estado do Rio de Janeiro, bem como dos arts. 11 a 21 da Lei n. 2.869/1997 do Estado do Rio de Janeiro. 6. Modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Em razão da necessidade de continuidade da prestação da função de saneamento básico, há excepcional interesse social para vigência excepcional das leis impugnadas, nos termos do art. 27 da Lei n. 9868/1998, pelo prazo de 24 meses, a contar da data de conclusão do julgamento, lapso temporal razoável dentro do qual o legislador estadual deverá reapreciar o tema, constituindo modelo de prestação de saneamento básico nas áreas de integração metropolitana, dirigido por órgão colegiado com participação dos municípios pertinentes e do próprio Estado do Rio de Janeiro, sem que haja concentração do poder decisório nas mãos de qualquer ente.

(ADI 1842, Relator(a): LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 06/03/2013, DJe-181 DIVULG 13-09-2013 PUBLIC 16-09-2013 EMENT VOL-02701-01 PP-00001) (Grifo nosso)

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O artigo 8º da Lei nº 11.445/2007, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020, prevê, basicamente, que a titularidade dos serviços de saneamento básico é dos Municípios e o Distrito Federal, em se tratando de interesse local, e será do Estado-membro e dos Municípios que compartilham as instalações do serviço de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, em se tratando de interesse comum.

Vários dispositivos da Lei nº 14.026/2020 tiveram sua constitucionalidade questionada perante o Supremo Tribunal Federal, o qual, no entanto, reconheceu a validade dos artigos questionados no julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.492, 6.536, 6.583 e 6.882:

Ementa: AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.492, 6.536, 6.583 E 6.882. DIREITO CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E REGULATÓRIO. LEI 14.026/2020. ATUALIZAÇÃO DO MARCO LEGAL DO SANEAMENTO BÁSICO. RENOVAÇÃO EM QUATRO LEIS FEDERAIS – NA LEI 9.984/2000, QUE INSTITUIU A AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (ANA); NA LEI 10.768/2003, QUE DISPÕE SOBRE O QUADRO FUNCIONAL DA ANA; NA LEI 11.107/2005, A LEI DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS; E, PRINCIPALMENTE, NA LEI 11.445/2007, QUE ESTABELECE AS DIRETRIZES NACIONAIS PARA O SANEAMENTO BÁSICO. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE POSITIVO. MÉRITO. QUATRO PREMISSAS TEÓRICAS. (A) DISCIPLINA CONSTITUCIONAL DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SANEAMENTO. (B) FUNCIONALIDADE E ATRIBUTOS ECONÔMICOS DO SANEAMENTO. (C) REALIDADE BRASILEIRA À LUZ DA REDAÇÃO ORIGINAL DA LEI 11.445/2007. DESATENDIMENTO ÀS ESSENCIALIDADES SANITÁRIAS. (D) OBJETIVOS SETORIAIS DA LEI 14.026/2020. TEMÁTICAS APRECIADAS. PRIMEIRO PILAR DA LEI 14.026/2020. (1) OS INSTRUMENTOS DE PRESTAÇÃO REGIONALIZADA VERSUS A AUTONOMIA POLÍTICA E FINANCEIRA DOS MUNICÍPIOS. CONSTITUCIONALIDADE DOS INSTITUTOS LEGAIS DE COOPERAÇÃO. SEGUNDO PILAR DA LEI 14.026/2020. (2) A MODELAGEM CONTRATUAL QUE DETERMINOU A CONCESSÃO OBRIGATÓRIA E, AO MESMO TEMPO, A VEDAÇÃO AO CONTRATO DE PROGRAMA. CONTRAPONTOS: “ESVAZIAMENTO” DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA DOS MUNICÍPIOS E DESRESPEITO A ATOS JURÍDICOS PERFEITOS. IMPROCEDÊNCIA. DEFASAGEM E ACOMODAÇÃO GERADAS PELO CONTRATO DE PROGRAMA. TERCEIRO PILAR DA LEI 14.026/2020. (3) O ROBUSTECIMENTO DA INSTÂNCIA FEDERAL PARA A COORDENAÇÃO DO SISTEMA DE SANEAMENTO. ALEGAÇÕES: VÍCIO FORMAL ORIGINÁRIO NA ATRIBUIÇÃO DAS COMPETÊNCIAS FISCALIZATÓRIAS E SANCIONADORAS À AGÊNCIA; E ABUSO DE PODER NO PROCEDIMENTO CONDICIONANTE À ELEGIBILIDADE PARA AS TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS. IMPROCEDÊNCIA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A TUTELA DA SEGURANÇA JURÍDICA, EM FACE DOS ARTS. 13 E 14 DA LEI 14.026/2020. AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE CONHECIDAS E, NO MÉRITO, JULGADAS IMPROCEDENTES. (ADI 6492, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 02/12/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 24-05-2022 PUBLIC 25-05-2022)

No voto do Ministro Luiz Fux, Relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6492, foi abordado que compete ao Congresso Nacional estabelecer as diretrizes do saneamento básico e as normas gerais de contratação pública e, no exercício dessa competência, é que foi editada a Lei nº 14.026/2020. Ademais, foram ressaltados os artigos 23, inciso IX, 30, inciso V, 198, 200, inciso IV, e 241 da Constituição Federal. Em relação à titularidade do serviço e da prestação regionalizada trazida pela Lei nº 14.026/2020, é importante trazer o seguinte trecho do voto do Relator8:

Em contraponto, os arranjos peculiares à Lei 14.026/2020 se limitam à viabilidade da execução de um ou mais serviços públicos de saneamento básico. A organização das atividades continua sob a titularidade dos Municípios; ao passo que o planejamento é o resultado da deliberação democrática em dois níveis, o Plano Federal e o Plano Estadual ou Regional.

Também não prospera a argumentação que rivaliza, de um lado, as “unidades regionais de saneamento básico” e os “blocos de referência”; e por outro lado, a autonomia dos Municípios, plasmada nos arts. 1º, 18, 29, caput; 30, incisos I e V; 34, inciso VII, alínea “c”, da Constituição.

Para que não pairem dúvidas: quanto à titularidade dos serviços públicos de saneamento, a Lei 14.026/2020 manteve a autonomia municipal. Apesar de questões referentes ao saneamento básico serem intrinsecamente de interesse local e de competência dos entes municipais, isso não impede a atuação conjunta e integrada entre todos os entes, o que se pretende com as alterações legais questionadas. (Grifo nosso)

Assim, apesar da existência de vozes contrárias na doutrina, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do Novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil.

  1. Incentivo à Competitividade

Ao analisar a história do saneamento básico no Brasil, o professor Aloísio Zimmer9 explica que, no período do regime militar, houve a instituição do PLANASA - Plano Nacional de Saneamento -, pelo qual os Estados-membros

(...) ficaram encarregados de criar companhias públicas, entidades integradas às suas administrações indiretas, com o formato de pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos — dessa categorização decorria um regime jurídico híbrido, hoje regulado pela Lei n. 13.303/2016. As entidades deveriam trabalhar pela expansão das redes de acesso à água potável e ao esgotamento sanitário – o foco desse projeto era na realização de obras -, além da disponibilização do serviço aos usuários mediante a cobrança de tarifas que não necessariamente correspondiam ao custo real do serviço. Havia essa convicção de que em muitas cidades o empreendimento não seria sustentado apenas com tarifas pagas pelos usuários locais, tornando imprescindível a alocação de recursos públicos ou o desenvolvimento de um ponto de equilíbrio mediante compensações cruzadas entre os municípios operados — o chamado “subsídio cruzado”. Como dito outras vezes, não era um modelo que contava com a construção de uma política tarifária sustentada no estresse de uma disputa entre interessados na prestação do serviço, o que se revelou um fato gerador de ineficiência, pelo menos para um conjunto importante de sistemas.

Naquele momento histórico, obviamente, colocou-se um conflito em relação à titularidade do serviço, pois o PLANASA compreendia uma aproximação da União com os estados, a despeito de depender da concordância dos municípios em delegar às companhias estaduais a operação do sistema. Diga-se de passagem, uma concordância incentivada (o uso dos spending powers), pois condicionava o acesso aos recursos federais à aderência à sistemática proposta. (Grifo nosso)

Incentivava-se, portanto, que os serviços de saneamento básico fossem delegados pelos Municípios às Companhias Estaduais, pois somente assim Entes Municipais eram beneficiados com os recursos federais. Nesse sentido, Juliana Jerônimo Smiderle10 assevera:

O PLANASA era gerido pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), que aplicava recursos próprios e do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) em operações de financiamento para implantação ou melhoria de sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. Os recursos eram encaminhados para as Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs), criadas à época. Ou seja, apenas os municípios que haviam concedido os serviços para CESBs eram beneficiados com o plano. Em outras palavras, o PLANASA incentivava a regionalização da prestação dos serviços de água e esgoto, uma vez que as CESBs, apesar de firmarem contrato com os municípios (quando formalizavam), operavam sistemas interligados – que não viam limites políticos – e adotavam estrutura tarifária única – o que viabilizava, em teoria, a prestação dos serviços por meio do subsídio cruzado. (Grifo nosso)

Embora o saneamento básico se inserisse entre os serviços de competência municipal, os Municípios, a fim de acessarem os recursos advindos do governo federal, aderiam a contratos de concessão, os quais não eram precedidos de licitação. Registra-se, porém, que alguns Municípios realizavam diretamente seus projetos de saneamento básico.

Com a Constituição Federal de 1988, o Município passou a ter um destaque maior em relação ao saneamento básico. Com efeito, como já referido, compete aos Municípios organizar e prestar, diretamente ou por delegação na forma de concessão ou de permissão, os serviços públicos de interesse local (artigo 30, inciso V, da Constituição Federal), entre os quais se insere o de saneamento básico.

O artigo 241 da Constituição Federal, por sua vez, dispõe que:

A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos. (Grifo nosso)

O artigo 241 da Constituição Federal permitiu, por conseguinte, que os Municípios firmassem com o Estado-membro um convênio de cooperação ou mesmo um consórcio público e, com isso, assinassem um contrato de programa com as Companhias Estaduais de Saneamento Básico. Sobre o tema, oportuna a explicação de Aloísio Zimmer11:

Em resumo, utilizou-se da Lei n. 11.107/2005 para a formalização, muitas vezes, das prestações de fato do serviço, até então de caráter precário. O procedimento, a partir da aprovação desse diploma legal, era o seguinte: estado-membro e município firmavam um convênio de cooperação ou um consórcio público, que dependia da autorização legislativa específica – uma lei municipal -, na forma do artigo 241 da Constituição Federal. Em caso de convênio de cooperação, o instrumento deveria ser aprovado pelo Poder Legislativo; enquanto no consórcio público, o seu protocolo de intenções seria levado à análise do Legislativo. Em ambas as hipóteses, o contrato de programa estaria, de alguma forma, previsto como mecanismo de formalização da transferência do serviço: em cláusula do convênio de cooperação ou no protocolo de intenções do consórcio público. Em que pese as companhias estaduais sejam pessoas jurídicas de direito privado, atuavam em nome do estado-membro como integrantes da administração indireta desse, situação permitida pelo artigo 13, § 5º da Lei n. 11.107/2005. (Grifo nosso)

Assim, alguns Municípios continuaram prestando diretamente o saneamento básico para a população, porém as Companhias Estaduais permaneceram realizando as atividades de abastecimento de água e de esgotamento sanitário na maior parte dos Municípios brasileiros sem que, para isso, tivessem participado de um processo de licitação.

Ocorre que esses modelos adotados nem sempre alcançaram os resultados esperados, de modo que o saneamento básico, em especial o esgotamento sanitário e o abastecimento de água potável, ainda não chega às residências de grande parte da população brasileira. Era necessário, pois, pensar em novos formatos, principalmente que fossem capazes de trazer investimentos para o setor.

Desde a Emenda Constitucional 19/1998, passou-se a falar, no Brasil, em Administração Pública gerencial, a qual se volta para os resultados, para a eficiência das políticas públicas, conforme explicado pelo professor Rafael Carvalho Rezende Oliveira12:

O aparelho estatal foi reduzido e a “Administração Pública burocrática” foi substituída pela “Administração Pública gerencial” a partir da Reforma Administrativa instituída pela EC 19/1998. Enquanto a Administração Pública burocrática se preocupa com os processos, a Administração Pública gerencial é orientada para a obtenção de resultados (eficiência), sendo marcada pela descentralização de atividades e avaliação de desempenho a partir de indicadores definidos em contratos (contrato de gestão ou de desempenho).

Nesse caminho, o Estado planejaria a política pública, com a possibilidade de sua delegação a particulares, após procedimento de licitação, por meio de contratos de concessão e permissão do serviço, nos termos do artigo 175, caput, da Constituição Federal, segundo o qual: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

O Estado, portanto, possibilita que serviços públicos sejam executados por particulares, sendo criadas autarquias em regime especial – as chamadas Agências Reguladoras – a fim de regular e fiscalizar a prestação desses serviços.

Relativamente às formas de prestação dos serviços públicos no Brasil, importa trazer, em síntese, a lição de Alexandre Santos de Aragão13:

Além da prestação centralizada, que ocorre quando o próprio ente da Federação titular da atividade é o responsável por prestá-la, os serviços públicos podem ser também prestados de forma descentralizada.

A prestação descentralizada pode se dar por lei (para entidade da administração indireta do ente federativo titular do serviço) ou por contrato (para particular ou até mesmo para entidade da administração pública indireta), mas por contrato, precedido da respectiva licitação ou dos procedimentos de dispensa ou inexigibilidade de licitação apropriados.

Note-se, não há identidade absoluta entre delegação legal e entidades da administração indireta. Sempre que há delegação legal, há entidades da administração indireta responsáveis pelo serviço; mas nem sempre as entidades da administração indireta recebem o serviço apenas por lei, muitas vezes celebrando contratos de delegação com esse objetivo (...)

No setor de distribuição de água e esgotamento sanitário, desde a criação do Plano Nacional de Saneamento (Planasa), em 1971, o serviço, de titularidade municipal, foi prestado sobretudo por empresas públicas estaduais, sendo essa descentralização atualmente formalizada principalmente pelos chamados contratos de programa (...).

Ocorre que, com a Lei nº 14.026/2020, não é mais possível a celebração dos contratos de programa com as Companhias Estaduais de Saneamento Básico sem licitação. Dessa forma, para que as entidades da Administração Indireta não integrantes da estrutura do titular do serviço de saneamento básico prestem a atividade é preciso que se submetam à licitação. Ressalta-se, porém, que contratos de programa regulares continuarão em vigor até seu termo contratual. É nesse sentido o artigo 10 da Lei nº 11.445/2007, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020:

Art. 10. A prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária.          (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)

§ 3º Os contratos de programa regulares vigentes permanecem em vigor até o advento do seu termo contratual.          (Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020)

Conforme de Aloísio Zimmer14:

Dessa forma, nos próximos anos, observar-se-á a substituição gradual dos contratos de programa pelos contratos de concessão: é a alteração da gestão associada interfederativa pela delegação dos serviços por meio da Lei Geral de Concessões (Lei n. 8.987/1995) e da Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei n. 11.079/2004). Assim, haverá a troca da prestação direta dos serviços pela prestação indireta.

Salienta-se que essa não é uma modificação singela. Na prática, identifica-se o reforço da Lei n. 14.026/2020 pela busca da maior participação do setor privado nos serviços de saneamento básico. Isso porque a gestão associada, formalizada pela Lei n. 11.107/2005, significou a entrega da operação dos serviços ao setor público, por meio de suas companhias estaduais. O contrato de programa, instrumento preponderante de transferência dos serviços públicos de saneamento nesse contexto, era o plano de trabalho do acordo/convênio de cooperação ou consórcio público firmado entre estado-membro e titular do serviço (em regra, o município), exigido pela legislação porque no instrumento convenial havia a previsão de transferência de serviços públicos. (Grifo nosso)

Registra-se que a competitividade tornou-se um vetor da política de saneamento básico, tendo o inciso XV, do artigo 2º, da Lei nº 11.445/2007, incluído pela Lei nº 14.026/2020, estabelecido, inclusive, que a seleção competitiva do prestador dos serviços é um dos princípios fundamentais do saneamento básico.

Para Alexandre Santos de Aragão15:

O novo marco legal do saneamento básico, como já exposto, teve como um dos seus objetivos principais inaugurar uma nova cultura na prestação descentralizada do serviço de distribuição de água e esgotamento sanitário, elegendo ex nunc as concessões como o instrumento para a formalização de novas delegações, em detrimento dos outrora prevalecentes contratos de programa.

Ao tratar das alterações promovidas nos artigos 8º, parágrafo 1º, incisos I e II; e 10, caput, e parágrafo 3º, da Lei 11.445/2007 e no artigo 13, parágrafo 8º, da Lei 11.107/2005, o Ministro Luiz Fux, Relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 649216, concluiu que:

O cotejo entre tais enunciados e a disciplina da Lei 14.026/2020 da prestação regionalizada suscita três conclusões. Em primeiro plano, a extinção do contrato de programa não afeta a validade e a legitimidade de toda a categoria “consórcio público intermunicipal”. Pela atual redação do da Lei 11.107/2005, a reunião de Municípios em consórcio ainda pode resultar em autarquia intermunicipal, competente para a prestação direta do serviço e para o investimento em infraestrutura.

Em segundo plano, a extinção do contrato de programa não obsta à participação das Companhias Estaduais de Saneamento Básico – CESBs em licitações, inclusive para pleitear a outorga da área anteriormente explorada (a título precário).

Em terceiro plano, e como já fartamente demonstrado, a sistemática da Lei 14.026/2020 não pretende impor a um único Município todos os custos de transação envolvidos com o contrato de concessão. Ao contrário, a novel legislação fornece dois arranjos federativos de contratação voltados unicamente ao setor de saneamento.

De tal modo que a exclusão do contrato de programa representa uma afetação proporcional à autonomia negocial dos Municípios, em prol da realização de objetivos setoriais igualmente legítimos. Essa proibição ocorre pari passu a opção legislativa pela delegação sob o modelo de concessão. (Grifo nosso)

De fato, a preferência pela concessão na prestação de serviços é clara no Novo Marco Legal do Saneamento Básico. Com efeito, diante de um grande volume de investimentos necessários para que as metas legais sejam atingidas, entendeu-se que o setor depende de capital privado para que sejam atingidos os objetivos da lei. Nesse sentido, Aloísio Zimmer17 destaca:

O aspecto crucial é que a Lei n. 14.026/2020 passa a estipular a modalidade da concessão como a preferencial na prestação dos serviços públicos de saneamento. Essa escolha indica, no mínimo, o intento pela maior participação de atores privados e pelo crescimento do pacto regulatório por contrato, em detrimento da preponderância da regulação discricionária, vigente na modalidade de gestão associada. (Grifo nosso)

Nesse sentido, observa-se que a Lei nº 14.026/2020 incentiva à delegação dos serviços, consoante o disposto no artigo 13, notadamente o previsto no seu inciso VI e nos seus parágrafos 1º e 3º:

Art. 13. Decreto disporá sobre o apoio técnico e financeiro da União à adaptação dos serviços públicos de saneamento básico às disposições desta Lei, observadas as seguintes etapas:

I - adesão pelo titular a mecanismo de prestação regionalizada;

II - estruturação da governança de gestão da prestação regionalizada;

III - elaboração ou atualização dos planos regionais de saneamento básico, os quais devem levar em consideração os ambientes urbano e rural;

IV - modelagem da prestação dos serviços em cada bloco, urbano e rural, com base em estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental (EVTEA);

V - alteração dos contratos de programa vigentes, com vistas à transição para o novo modelo de prestação;

VI - licitação para concessão dos serviços ou para alienação do controle acionário da estatal prestadora, com a substituição de todos os contratos vigentes.

§ 1º Caso a transição referida no inciso V do caput deste artigo exija a substituição de contratos com prazos distintos, estes poderão ser reduzidos ou prorrogados, de maneira a convergir a data de término com o início do contrato de concessão definitivo, observando-se que:

I - na hipótese de redução do prazo, o prestador será indenizado na forma do art. 37 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 ; e

II - na hipótese de prorrogação do prazo, proceder-se-á, caso necessário, à revisão extraordinária, na forma do inciso II do caput do art. 38 da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 .

§ 2º O apoio da União será condicionado a compromisso de conclusão das etapas de que trata o caput deste artigo pelo titular do serviço, que ressarcirá as despesas incorridas em caso de descumprimento desse compromisso.

§ 3º Na prestação dos serviços públicos de saneamento básico, os Municípios que obtiverem a aprovação do Poder Executivo, nos casos de concessão, e da respectiva Câmara Municipal, nos casos de privatização, terão prioridade na obtenção de recursos públicos federais para a elaboração do plano municipal de saneamento básico.

§ 4º Os titulares que elegerem entidade de regulação de outro ente federativo terão prioridade na obtenção de recursos públicos federais para a elaboração do plano municipal de saneamento básico. (Grifo nosso)

Diante do exposto, a prestação do serviço de saneamento básico pode ser feita diretamente pelo Município ou pode ser delegado à empresa privada por intermédio de licitação. Além disso, os serviços podem ser realizados por meio de gestão associada, sendo admitidos consórcios intermunicipais formados por Municípios que prestarão o serviço aos consorciados mediante a instituição de autarquia intermunicipal, vedada a subdelegação pela autarquia sem que haja licitação. Ao examinar a constitucionalidade da gestão associada, Andrea Ferreira Caputo Jobim, Daniel Derenusson Kowarski, Giovani Morelli e Tatianna Fernandes da Paz Ribeiro de Souza18 consideram que:

A gestão associada por meio de consórcio público ou convênio de cooperação, por decorrer de expressa previsão constitucional (art. 241, CRFB), não apresenta maiores controvérsias. Nos termos da legislação recém promulgada, essa modalidade de regionalização dos serviços se dará exclusivamente por Municípios, para prestação direta, através da instituição de autarquia intermunicipal, sendo vedados novos contratos de programa com sociedade de economia mista ou empresa pública e a subdelegação por meio da autarquia municipal sem prévio procedimento licitatório.

Trata-se de manifestação de autonomia municipal com esteio constitucional que deve ser estimulada de modo a propiciar o melhor atendimento da população interessada na prestação dos serviços

Ainda é possível que a o serviço de saneamento básico seja realizado pela estrutura de prestação regionalizada – por intermédio de região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, de unidade regional de saneamento básico ou de bloco de referência – e, após o procedimento licitatório, celebrar o contrato de concessão do serviço público.

Entretanto, é evidente que a diretriz do novo Marco do Saneamento Básico é integrar Entes da Federação – é regionalizar -, constando entre os princípios elencados no artigo, 2º, inciso XIV, Lei nº 11.445/2007, incluído pela Lei nº 14.026/2020, a “prestação regionalizada dos serviços, com vistas à geração de ganhos de escala e à garantia da universalização e da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços”.

Nesse caminho, buscando induzir os Municípios a aderirem à regionalização do serviço, o Novo Marco Legal do Saneamento Básico prevê que a alocação de recursos federais e os financiamentos pela União ou com recursos geridos ou operados por entidades federais serão condicionados à observância de diversos critérios, entre os quais o alcance de índices mínimos de desempenho, de eficiência e de eficácia na prestação dos serviços, a observância das normas de referência editadas pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e a estruturação de prestação regionalizada, conforme disposto no artigo 50, incisos I, III e VII, VIII e IX, da Lei nº 11.445/2007, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020. Ademais, parágrafo 1ª desse mesmo artigo prioriza a aplicação de recursos federais não onerosos a investimentos que viabilizem a prestação de serviços por meio de blocos regionais, nestes termos:

§ 1º Na aplicação de recursos não onerosos da União, serão priorizados os investimentos de capital que viabilizem a prestação de serviços regionalizada, por meio de blocos regionais, quando a sua sustentabilidade econômico-financeira não for possível apenas com recursos oriundos de tarifas ou taxas, mesmo após agrupamento com outros Municípios do Estado, e os investimentos que visem ao atendimento dos Municípios com maiores déficits de saneamento cuja população não tenha capacidade de pagamento compatível com a viabilidade econômico-financeira dos serviços.         (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)

O referido incentivo trata-se de um instrumento chamado de spending power, o qual foi assim analisado por Andrea Ferreira Caputo Jobim, Daniel Derenusson Kowarski, Giovani Morelli e Tatianna Fernandes da Paz Ribeiro de Souza19:

Aqueles que defendem o manejo do recurso do spending power alegam que a adesão é mero incentivo e que o cumprimento da condicionante é opcional e, desta forma, não afeta a autonomia do ente federativo menor, por ser meramente indutivo. Contudo, entende-se que, considerando o contexto fático atual, não é possível falar-se em facultatividade da adesão dos titulares de serviços públicos de saneamento às estruturas das formas de prestação regionalizada não constitucionalmente previstas (art. 8-A da lei 11.445/2007), inexistindo mecanismo indutivo. Isto porque a adesão à regionalização é uma exigência para a alocação de recursos públicos federais e financiamentos com recursos da União, conforme previsto no art. 50 da mesma lei, e sabe-se que, na realidade, grande parte dos municípios não possuem condições econômicas de recusar tal auxílio.

Conforme previamente destacado, a autonomia está intrinsecamente ligada à capacidade de gestão. E, considerando a realidade financeira da maior parte dos municípios do país, não há muitas possibilidades de haver uma manifestação verdadeiramente livre e autônoma se os custos envolvidos na escolha ou eventual recusa se revelam muito elevados, como é o caso. Mesmo que um Município de menor orçamento, com a necessidade de promover melhorias nos serviços de saneamento básico, apresente boas ideias para tal, não terá possibilidades de desenvolvê-las caso não opte pela regionalização, tendo em vista esta ser uma das condições para se acessar o auxílio financeiro da União de que necessita para a execução. (Grifo nosso)

Embora existam críticos quanto ao incentivo ao ingresso em blocos regionais de para a prestação de serviços, o artigo 50 da Lei nº 11.445/2007, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020, foi declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.492, 6.536, 6.583 e 6.882.

  1. Considerações Finais

A Lei nº 14.026/2020 trouxe profundas transformações no modelo de prestação de serviços de saneamento básico adotado no Brasil. Com a proibição de que novos contratos de programa sejam firmados entre o titular do serviço e as Companhias Estaduais de Saneamento Básico, os quais, repisa-se, não eram precedidos de licitação, buscou-se incentivar a competitividade, bem como o investimento privado nesse setor.

Na Lei nº 14.026/2020, incentiva-se, ainda, à regionalização dos serviços que compõem o saneamento básico, a fim de que se ganhe economia de escala, bem como para atrair o investimento privado a Municípios pouco atrativos no mercado.

Busca-se com essas mudanças legislativas universalizar e efetivar os serviços de saneamento básico, concretizando as normas constitucionais de acesso à saúde e de moradia digna para parte significativa da população brasileira que em 2023 ainda vive sem abastecimento de água potável e sem esgotamento sanitário em suas residências.

  1. Referências Jurisprudenciais

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1842/DF. Relator: LUIZ FUX, Relator p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 06/03/2013, DJe-181 DIVULG 13-09-2013 PUBLIC 16-09-2013 EMENT VOL-02701-01 PP-00001. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630026 Acesso em 01 de outubro de 2023.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Tribunal Pleno). Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.492, 6.536, 6.583 e 6.882, Relator(a): LUIZ FUX, julgado em 02/12/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 24-05-2022 PUBLIC 25-05-2022. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=760946124 Acesso em 30 de setembro de 2023.

  1. Referências Legais

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988. Brasília, DF. Diário Oficial da União, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 23 de setembro de 2023.

BRASIL. Lei nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007. Brasília/DF, Diário Oficial da União, 2007. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm Acesso em: 30 de setembro de 2023.

BRASIL. Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Brasília/DF, Diário Oficial da União, 2020. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm Acesso em: 30 de setembro de 2023.

  1. Referências Bibliográficas

ARAGÃO, Alexandre Santos de. A extensão dos contratos de programa de saneamento para reequilíbrio à luz da Lei nº 14.026/2020 e do Decreto nº 10.710/2021. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 281, n. 3, p. 79-115, set./dez. 2022.

FERREIRA CAPUTO, A.; DERENUSSON KOWARSKI, D.; MORELLI, G.; FERNANDES DA PAZ RIBEIRO DE SOUZA, T. A autonomia municipal na prestação regionalizada de saneamento básico. Journal of Law and Regulation[S. l.], v. 9, n. 1, p. 139–166, 2023, p. 145. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rdsr/article/view/43670 Acesso em: 27 de setembro 2023.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo / Rafael Carvalho Rezende Oliveira. – 9. ed., – Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2021.

SMIDERLE, Juliana Jerônimo. PLANASA e o novo marco legal do saneamento: semelhanças, diferenças e aprendizado. In: PLANASA e o novo marco legal do saneamento: semelhanças, diferenças e aprendizado | Blog do IBRE (fgv.br) Acesso em 26 de setembro de 2023.

ZIMMER, Aloísio. Direito administrativo do saneamento: um estudo a partir do Novo Marco Legal (Lei 14.026/2020). 1ª ed., Porto Alegre: 2021.

Sobre a autora
Deise Alda Estivalet Junges

Procuradora do Município de Canoas/RS Ex- servidora pública do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JUNGES, Deise Alda Estivalet. A prestação dos serviços de saneamento básico no Brasil à luz da Lei nº 14.026/2020. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7398, 3 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106513. Acesso em: 10 mai. 2024.

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