A criminalização dos familiares dos presos
Nos últimos dias temos acompanhado um largo debate em razão da visita da suposta esposa de um líder de facção criminosa ao Ministério da Justiça com passagens pagas pelo Ministério dos Direitos humanos.
Pelo que se tem notícia, a suposta “Dama do Tráfico” do Amazonas teria participado do Encontro Nacional de Comitês de Prevenção e Combate à Tortura como representante da Associação Instituto Liberdade Amazonas (ILA) em conjunto com a Associação Nacional da Advocacia Criminal (ANACRIM) que estaria representada pela advogada Dra. Janira Rocha, vice-presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da ANACRIM-RJ.
A manchetes iniciais davam conta de que a própria representante da ILA possuía condenação por associação ao tráfico, lavagem de dinheiro entre outros, somando de 10 anos de prisão. Outras notícias dizem ainda que a ILA é financiada por uma facção criminosa segundo declarações da Polícia Civil do estado do Amazonas1.
A ANACRIM se posicionou no sentido de que a advogada não estava na reunião representando a associação, mas que ainda assim, a advogada ressaltou que não fez qualquer pedido em nome da ANACRIM, atuando como representante apenas de outras organizações.
De toda forma o objetivo da visita foi a discussão do sistema carcerário brasileiro no Encontro Nacional de Comitês de Prevenção e Combate a Tortura, e nada mais.
Nos dias seguintes ao início das publicações, passaram a ser apresentadas várias análises de especialistas, artigos de opiniões, ataques e mais ataques em redes sociais. Notícias falsas passaram a circular, dando conta de que o Ministro da Justiça teria se encontrado pessoalmente com a mulher, inclusive com registro em foto, quando na verdade a foto era de uma humorista 2.
Dessa forma, conservadores partiram para o ataque, e mesmo progressistas passaram a veicular um discurso de repudio ao ocorrido.
Não aguardaram apurações nem aprofundamento do ocorrido, sem saber do que se tratou a tal reunião e sem sequer parar para pensar qual a importância de suas respectivas declarações, opiniões foram omitidas, conclusões tomadas e passamos a uma violenta guerra de narrativas na mídia.
Em alguns artigos neste mesmo site3 já discorri sobre o Pânico Moral e Guerra as Drogas. Aqui, uma vez mais, estamos diante de outro Pânico Moral, dessa vez em relação ao sistema carcerário.
Desse modo, semelhante ao modelo de Stanley Cohen4, temos um fato que é colocado como uma ameaça a sociedade, especialistas e empreendedores morais passam a circular suas opiniões em programas de TV, internet, Jornais, enfim, nos canais da Midia de Massa.
Sempre com viés conservador, repetindo e repetindo suas posições, alardeando o perigo que esse acontecimento representa para a sociedade. Exigindo soluções e posições imediatas do Governo atual e do Ministro.
Enquanto isso vão cooptando silenciosamente a Opinião Pública e formando um consenso construído artificialmente5 através do Agendamento dos Assuntos6, colocando o fato repetidamente no centro do debate, e daquilo que Noelle-Neuman estabeleceu como a Espiral do Silêncio7
Em que pese a mulher ser esposa de preso faccionado e possuir uma condenação em segunda instância que sobreveio posteriormente a sua presença nas reuniões, é preciso ressaltar o óbvio, seu processo não transitou em julgado8, e a constituição lhe garante o estado natural de inocência até que isso ocorra, art. 5°, inciso LVII da CF de 88.
Para além disso, quando de seu comparecimento à reunião sequer havia condenação, sendo que o juízo de primeiro grau à absolveu, dessa forma nem ignorando o estabelecido no texto constitucional poderíamos chamá-la de criminosa no momento de sua primeira visita, a não ser que no imaginário popular esteja ocorrendo a criminalização do familiar do criminoso.
Esse é justamente o ponto. Independente da visita de Luciane Barbosa ao Ministério da Justiça, o ponto central que desejo trazer ao debate é esse: A criminalização do Familiar do Preso.
Em coluna ao Conjur, Aury Lopes Jr. e Rodrigo Faucz (obs.: dispensam apresentações, se não sabe quem são joga no google, pois deveria) levantaram esse debate:
“Qual o problema de um familiar ou esposa de preso pleitear por melhores condições carcerárias? Qual o problema de ser no Ministério da Justiça? Ou na ONU? O na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos? Ou no Judiciário? A resposta para todas as perguntas é, nenhum! Aliás, é o próprio exercício da cidadania, um ato digno de quem não se acomoda com o estado de coisas inconstitucional. Ou essas pessoas, pelo simples fato de serem familiares de um apenado, não possuem mais fala, lugar de fala e legitimidade para reclamar?” (LOPES Jr.; Silva. 2023)
Recentemente o STF julgou a ADPF 347 que estabeleceu uma série de medidas para que se supere o Estado de Coisas Inconstitucional nos Presídios Brasileiros. Para que se tenha sucesso nessa empreitada é preciso escutar quem primeiro sofre com essa questão: o próprio preso e o familiar do preso.
É nesse contexto que o trabalho desenvolvido por ONG’s e associações de representantes de familiares se tornam preponderantes. Assim, a aproximação do Estado com esses setores da sociedade é natural, esperada e indicada.
Todo cidadão brasileiro tem direito a ter seus interesses representados perante o poder público. Mesmo o criminoso condenado, mesmo o suposto faccionado, mesmo o comprovadamente faccionado.
No Brasil, não temos pena perpétua, e excetuado tempos de guerra, também não permitimos pena de morte. Compreende-se daí que o criminoso condenado, quando recolhido à prisão, tem alguns de seus direitos suspensos por terminado tempo para cumprimento de pena.
Isso significa que sim, ele tem direito de ter seus direitos representados perante o Estado, tem direito de fazer reivindicações e de pedir no mínimo o cumprimento da própria lei.
Por outro lado, a CF de 88, art. 5°, XLV, garante que a pena será aplicada exclusivamente ao condenado, não se estendendo à esposa, mãe, irmão, filho etc. De forma que ao considerarmos, e tratarmos, familiares de presos também como criminosos, estamos nós mesmos infringindo nossa própria garantia constitucional.
Impedir o acesso de familiares de presos aos órgãos do Poder Publico para buscar soluções efetivas para o apenado e para os próprios familiares é também dar espaço para que as próprias organizações criminosas se fortaleçam e ganhem espaço na sociedade.
Sabemos inclusive que algumas das maiores facções criminosas do país sugiram pela ausência do estado em garantir um mínimo de dignidade ao preso durante o cumprimento da pena, surgiram como resposta a pós diversas violações de direitos dos presos, segundo reportagem da Rádio Câmara:
O PCC, Primeiro Comando da Capital, foi o responsável pelas rebeliões e ataques que causaram mais de uma centena de mortos em São Paulo. Antes disso, em 2001, a facção organizou rebeliões em mais de 20 presídios paulistas e, no ano seguinte, em sete penitenciárias.
A facção foi criada em 1993, a partir de um time de futebol na Casa de Custódia de Taubaté, que era considerada a prisão mais segura do estado. Os objetivos principais do grupo eram reagir ao massacre do Carandiru, de 92, que matou 111 presos, e exigir melhores condições de vida dentro da prisão. Hoje, o grupo tem até estatuto próprio.
Uma outra grande facção criminosa, o Comando Vermelho, foi formado por reincidentes da antiga facção Falange Vermelha, que durante a década de 70 lutava pelo fim da tortura e dos maus tratos aos prisioneiros. Hoje, o grupo é conhecido especialmente pelo comando do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. (CAMARA DOS DEPUTADOS, 2006)
Dessa forma precisamos trazer ao centro do debate a aproximação do Estado com o familiar do preso, e com o preso, e distanciarmos do preconceito e da criminalização de pessoas pelo parentesco, sob pena de abrir cada vez mais espaço para a criminalidade organizada.
Essas pessoas vão buscar quem as ouça, e quem atue em prol dos seus direitos e melhoria de condições de vida. E aqui não estamos dizendo que criminosos não merecem punição, mas que devem cumprir suas penas de forma digna e que sejam discutidas oportunidades reais de reinserção à sociedade.
Ao fim, o discurso apresentado na Mídia de Massa reproduz o Pânico e gera o distanciamento do Estado dessa parcela da sociedade. Reproduz ainda um punitivismo exacerbado que em nada contribui para a melhoria da segurança pública.
Segurança publica não se faz somente com repressão, ela é construída a partir do diálogo com os diversos setores da sociedade em busca da solução dos problemas que atraem e, mantem uma pessoa na prática criminosa.
Por isso é necessário a participação do familiar do preso no debate, o familiar que sofre tanto pelo desvio de conduta do parente, e depois sofre com o tratamento dispensado pelo Estado aos presos e familiares.
Reafirmamos, não se pode proibir o acesso do familiar do condenado, ou mesmo do condenado as discussões que lhe dizem respeitos. O familiar do preso não é o preso. Não podemos tratar familiar de condenado como condenado. Não podemos nos esquecer que foram essas omissões estatais que cultivaram a organização das facções.
REFERÊNCIAS
BARROS FILHO, C. Ética na comunicação. São Paulo: Summus, 2003.
CAMARA DOS DEPUTADOS. Especial Presídios - A história das facções criminosas brasileiras (05' 50"). Rádio Câmara, Brasília, DF. 05 jun. 2006. Disponível em:<https://www.camara.leg.br/radio/programas/271725-especial-presidios-a-historia-das-faccoes-criminosas-brasileiras-05-50/> acesso em: 16 nov. 2023
CHOMSKY, Noam. Mídia: propaganda política e manipulação. Tradução de: Fernando Santos. 1º. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
COHEN, Stanley. Demonios populares y <<pánicos morales>> Delincuencia juvenil, subculcuras, vandalismo, drogas y violencia. Tradução de: Victória de los Ángeles Boschiroli. 1º. ed. Barcelona, Espanha: Editorial Gedisa, 2017.
DOMINGOS, Roney. É #FAKE que mulher em vídeo ao lado de Dino seja esposa de chefe de facção: A pessoa que aparece nas imagens é a humorista Ví Alvares. Ela publicou um desmentido em suas redes sociais. G1. Brasil, 15 nov. 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2023/11/15/e-fake-que-mulher-em-video-ao-lado-de-dino-seja-esposa-de-chefe-de-faccao.ghtml> acesso em: 16 nov. 2023
G1, AM. Mulher de chefe de facção, estudante de direito, defensora dos presos: quem é Luciane Barbosa, que visitou o Ministério da Justiça: Luciane Barbosa é casada com o chefe do Comando Vermelho, Clemilson dos Santos Farias, o 'Tio Patinhas', e foi condenada a 10 anos de prisão. Estudante de direito, a mulher se reuniu com assessores do ministro da Justiça, Flávio Dino. G1, Amazonas, 13 nov. 2023. Disponível em :<https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2023/11/13/quem-e-luciane-barbosa-mulher-de-traficante-e-que-esteve-no-ministerio-da-justica.ghtml> acesso em: 16 nov. 2023
HERMAN, Edward S., CHOMSKY, Noam. A manipulação do público - política e poder econômico no uso da mídia. Tradução de: Bazán Tecnologia e Linguística. São Paulo: Editora Futura, 2003.
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LOPES JR., Aury; SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Pauta legítima: direito do familiar do preso pleitear melhores condições carcerárias. CONJUR, São Paulo. 14 nov. 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-nov-14/criminal-player-qual-o-problema-de-um-familiar-ou-esposa-de-preso-pleitear-por-melhores-condicoes-carcerarias/> acesso em: 16 nov. 2023
MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria da comunicação: ideias, conceitos e métodos. 5ºed. - Petrópolis: Vozes, 2014. E-book. ISBN 9788532625175. Disponível em: <https://plataforma.bvirtual.com.br/Leitor/Publicacao/149415/epub/0?code=hM5x52mgYIvmsCORj9KN0ghlbVwGx6cI3xQloXHgE1n+gcz0DX64OjODZHph38iuamHdtHCCQtrrCUHpIpJp3Q==>. Acesso em: 016 nov.. 2023.
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PODER 360. Ministério confirma que pagou viagem de “dama do tráfico” Luciane Barbosa, mulher de líder do Comando Vermelho no Amazonas, participou de evento de prevenção e combate à tortura. Poder 360. Brasil, 15 nov. 2023 Disponível em: <https://www.poder360.com.br/governo/ministerio-confirma-custeio-de-viagem-de-dama-do-trafico/> acesso em: 16 nov. 2023
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Notas
VENCESLAU, 2023
DOMINGOS, 2023
SILVA, 2022
. (COHEN, 2017, p.51) [tradução nossa]
HERMAN, CHOMSKY. 2003
-
BARROS FILHO, 2003, p. 169
MARTINO, 2014. p. 212
O GLOBO, 2023