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A renúncia das vítimas e os fatores de risco à violência doméstica.

Da construção à aplicação do art. 16 da Lei Maria da Penha

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Agenda 03/12/2007 às 00:00

7. Dos fatores de risco

A 2ª Promotoria do Juizado de Samambaia elegeu pontualmente os fatores de risco, baseada na experiência ministerial e na literatura especializada, que obrigam intervenção multidisciplinar [45]. São eles:

7.1.Indícios de intimidação da ofendida;

7.2.Agressões anteriores, registradas ou noticiadas nos autos;

7.3.Periculosidade do agressor e crueldade contra animais;

7.4.Agressor possuidor de armas ou integrante da segurança pública;

7.5.Tentativa de separação e inconformismo do agressor;

7.6.Envolvimento com álcool ou drogas;

7.7.Crianças, adolescentes, idosos ou deficientes, vítimas ou presentes nos conflitos;

7.8.Gravidez da ofendida;

79. outros fatores macros.

7.1. Indícios de intimidação da ofendida para renunciar

"Se procurar a polícia, vai morrer!", "Posso ser preso, mas quando sair vou te matar!", "Se eu te matar, sua desgraçada, não vai dar em nada. Eu vou preso, mas depois eu vou ser solto. Quem vai ficar presa pelo resto da vida é você, debaixo da terra" [46]

Estas ameaças são comuns após a violência ou o registro da ocorrência policial. Muitas são consumadas, resultando novas agressões e até o assassinato.

Tais intimidações vão além da simples ofensa a um direito individual. É uma verdadeira afronta à Justiça, já que a finalidade do agressor é evitar que o promotor e o juiz tenham conhecimento de seus crimes. O ato intimidatório é dirigido ao Estado, numa tentativa de impedir sua livre atuação no combate às infrações penais. É, sem exagero, uma ameaça ao livre exercício dos Poderes estatais.

Por não tolerar esse tipo de situação, o Código de Processo Penal, por exemplo, determina a prisão preventiva quando o réu estiver intimidando vítimas ou testemunhas – para garantir da instrução criminal (art. 312) - e o Código Penal tipifica o crime de coação no curso do processo (art. 344).

Nesse contexto, e com muito mais razão, se a coação é dirigida à própria vítima, para que ela não denuncie às autoridades ou para que "retire a queixa", o Estado deve intervir contundentemente para restaurar o Estado Democrático de Direito e sua própria autoridade.

O seguinte caso ilustra a importância de "desconfiar" das renúncias das vítimas:

"Cansada de apanhar, Edileuza (nome fictício) denunciou seu marido à polícia. Na mesma noite, o agressor colocou uma peixeira embaixo do travesseiro, mandou a vítima deitar e advertiu que, caso ela não retirasse a queixa, amanheceria morta. Após uma noite em claro, "dormindo com o inimigo", não foi surpresa seu retorno à Delegacia, logo de manhã, para "retirar a queixa". Apesar da renúncia policial, o casal, intimado para audiência no Juizado, à requerimento do Ministério Público, não compareceu. Conduzidos coercitivamente, a vítima foi ouvida em separado, tendo narrado o porquê de seu medo. Interviemos imediatamente, encaminhando as partes a acompanhamento psicossocial e ao AA-Alcóolicos Anônimos. Foi o agressor advertido da gravidade de seus atos, ficando claro que foram cometidos contra o Estado e que terá sérias conseqüências se voltar a cometê-los. Ambos participaram ativamente do acompanhamento, não tendo havido notícias de repetição de violência. Resultado: o agressor não conseguiu seu intento de passar incólume por mais uma agressão doméstica. Percebeu que a coação não será suficiente para afastar a atuação ministerial e judicial doravante."

7.2. Agressões anteriores, registradas ou noticiadas nos autos

A violência doméstica raramente ocorre isoladamente. Ela se inicia com palavras duras, evolui para o tapa e acaba na pancadaria desenfreada. A maioria das vítimas leva pelo menos 8 anos para registrar a primeira ocorrência. Quando o fazem, é preciso que o Estado esteja preparado para ouvir e agir para cessar o martírio.

É bom lembrar que a violência geralmente é seguida pelo "arrependimento" do agressor, o que pode justificar a tolerância da vítima por anos seguidos. Com sua larga experiência na área, a pesquisadora Bárbara Musumeci [47] explica:

"A violência doméstica segue, muitas vezes, um ciclo composto por três fases:

1º Fase - A construção da tensão no relacionamento: Nessa fase podem ocorrer incidentes menores, agressões verbais, crises de ciúmes, ameaças, destruição de objetos, etc. Nesse período de duração indefinida, a mulher geralmente tenta acalmar seu agressor, mostrando-se dócil, prestativa, capaz de antecipar cada um de seus caprichos ou buscando sair do seu caminho. Ela acredita que pode fazer algo para impedir que a raiva dele se torne cada vez maior. Sente-se responsável pelos atos do marido ou companheiro e pensa que se fizer as coisas corretamente os incidentes podem terminar. Se ele explode, ela assume a culpa. Ela nega sua própria raiva e tenta se convencer de que "...talvez ele esteja mesmo cansado ou bebendo demais".

2º Fase – A explosão da violência – descontrole e destruição: a segunda fase é marcada por agressões agudas, quando a tensão atinge seu ponto máximo e acontecem ataques mais graves. A relação se torna inadministrável e tudo se transforma em descontrole e destruição. Algumas vezes a mulher percebe a aproximação da segunda fase e acaba provocando os incidentes violentos, por não suportar mais o medo, a raiva e a ansiedade. A experiência já lhe ensinou, por outro lado, que essa é a fase mais curta e que será seguida pela fase 3, da lua-de-mel.

3º Fase – A lua-de-mel – arrependimento do(a) agressor(a): terminado o período da violência física, o agressor demonstra remorso e medo de perder a companheira. Ele pode prometer qualquer coisa, implorar por perdão, comprar presentes para a parceira e demonstrar efusivamente sua culpa e sua paixão. Jura que jamais voltará a agir de forma violenta. Ele será novamente o homem por quem um dia ela se apaixonou."

Dessa forma, registros policiais anteriores ou a simples informação da vítima de que a violência já ocorreu anteriormente é motivo suficiente para intervenção especial, uma vez que a "lua de mel" geralmente termina quando o agressor se sente impune.

7.3. Periculosidade do agressor e crueldade contra animais

Antecedentes de crimes graves, principalmente praticados com grave ameaça ou agressão física, indicam a propensão dos agressores à violência. A agressividade demonstrada em público geralmente é dirigida também à família.

Importante considerar, também, eventual notícia de que o agressor seja violento com animais. Estatísticas demonstram que pessoas acusadas de crueldade contra animais costumam cometer violência doméstica na mesma proporção [48]. Estudos indicam que indivíduos que abusam de animais são mais controladores e usam formas mais perigosas de violência contra as parceiras [49].

Comprovam esta assertiva, os seguintes casos detectados pela Segunda Promotoria de Samambaia (citamos apenas os mais recentes), em que:

- para se vingar da esposa, marido estrangulou o animal de estimação da família, um gato, na presença dos filhos. Apurou-se, posteriormente, que tanto a esposa quanto o gato eram objeto de agressões físicas constantes, entre os anos de 2001 e 2007 (proc. nº 7070-6/07)

- jovem deu uma facada na cabeça do cachorro, que o incomodava com seus latidos. No dia 26/11/2006 queimou sua mulher no rosto com um cigarro (proc. nº 18787-2/06);

- ex-marido desferiu tiros contra um cavalo do vizinho, matando-o (05/03/2003). Anos depois, causou profunda ferida numa égua e numa vaca (15/07/2006), machucando as partes traseiras dos animais. Por fim, no dia 19/01/2007, desferiu facadas na ex-esposa e num amigo, matando-os (proc. nº 2007.04.1.000541-5).

7.4. Agressor possuidor de armas ou integrante da segurança pública

A presença de armas é um fator que pode potencializar a agressividade e a audácia dos agressores. Mesmo os mais experientes e profissionais não são imunes ao sentimento de poder que a arma proporciona.

Por isso, cautela deve sempre preceder a atuação quando há o envolvimento de profissionais da área de segurança pública ou privada (integrantes da Justiça, Ministério Público, polícias ou vigilantes). São profissões que demandam o exercício do poder, muitas vezes pela força, situação que pode influenciar negativamente a vida privada dos envolvidos.

A atividade policial, por exemplo, é muito penosa e desgastante. Policiais podem desenvolver neuroses e agressividades, que atingirão diretamente sua família. A atuação das corporações policiais para minimizar essa situação, através de treinamentos e orientações psicológicas, ainda é precária e deficiente.

Nesse contexto, havendo notícia da prática de crime no âmbito doméstico, a situação deve ser mais bem averiguada, pois o agressor pode estar se prevalecendo da situação para amedrontar a vítima e seus familiares, com conseqüências imprevisíveis.

7.5. Tentativa de separação e inconformismo do agressor

A representação ou renúncia ao processo criminal representa uma situação dramática e angustiosa para as vítimas de violência doméstica, que pode significar o aumento da violência, ou até sua própria morte.

A Organização Mundial de Saúde-OMS estima que 70% das mulheres assassinadas no mundo são vítimas de seus próprios companheiros [50]. Nos dois meses do verão de 2004, foram assassinadas 29 mulheres na França, por terem decidido se separar [51]. As estatísticas brasileiras são igualmente espantosas:

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- 66,3% dos acusados de homicídio contra mulheres no Brasil são seus parceiros [52];

- No Distrito Federal, somente em duas semanas do mês de julho de 2006, foram assassinadas 7 mulheres, perfazendo uma aterradora média de um homicídio a cada dois dias [53].

Tais estatísticas comprovam que a simples representação contra o agressor pode significar a morte da mulher, a qual prefere a impunidade em troca da própria vida. Praticamente todos os casos de assassinatos no âmbito privado foram precedidos de ocorrências policiais arquivadas anteriormente nos juizados especiais, sob alegação de "falta de interesse" das vítimas.

Essas situações, não raro, geram tragédias familiares, com o assassinato da mulher, dos filhos e outros parentes, culminando com o suicídio do agressor.

Nesse contexto, a atuação estatal deve ser obrigatória, aplicando-se medidas pontuais, exigindo outro comportamento do agressor e buscando o término da violência, além de promover o acompanhamento e orientação especializada, sem a qual não promoverá o livre desenvolvimento da personalidade (e da dignidade).

7.6. Envolvimento com álcool ou drogas

O álcool é um droga psicoativa cujo uso inadequado pode ocasionar uma série de efeitos devastadores, em nível orgânico, psicológico-psiquiátrico ou social [54]. Doenças crônicas, alteração de comportamento e problemas sociais (desemprego, indigência, etc.) são apenas alguns exemplos.

Infelizmente, apesar de algumas medidas restritivas, como a proibição de propagandas em determinados horários, o álcool é uma droga lícita, muitas vezes exaltado como símbolo nacional, sempre associado, pelos meios de comunicação, a momentos de felicidade, prestígio, sucesso e aprovação social. Isso faz com que o álcool apresente, quantitativamente, mais problemas orgânicos e sociais do que as drogas ilícitas.

Em se tratando de violência doméstica, o risco se duplica porque o abuso de álcool pode gerar uma constante relação conflituosa, potencializando a violência, com conseqüências imprevisíveis. Dos problemas sociais ligados ao abuso de álcool, as questões familiares são as que mais preocupam, uma vez que atinge toda a família, indistintamente, causando separação, traumas, perturbação do desenvolvimento de crianças e conflitos violentos

Não causa surpresa, portanto, que cerca de 70% dos atos de violência noticiados na polícia, tratem de violência doméstica ou não, ocorram sob a influência de álcool e que a maioria das violências físicas cometidas pelos filhos contra os pais idosos está associada a alcoolismo (deles próprios ou dos pais idosos), segundo a pesquisadora Maria Cecília de Souza Minayo [55].

Isso não significa que o usuário de álcool ou o alcóolico sejam por natureza violentos, nem que irão obrigatoriamente agredir alguém. Mas a pessoa violenta, quando embriagada, tende a demonstrar sua agressividade. Significa que não é o álcool que gera a violência, mas a predisposição de seu usuário, o qual geralmente é violento, mesmo sem sua ingestão.

Nas audiências, porém, os agressores alegam: "Eu bati porque tinha bebido, mas não me lembro de nada!". As vítimas também tentam justificar as agressões, com dizeres do tipo: "Ele é uma ótima pessoa, mas quando bebe, perde o controle!".

Apesar destas justificativas, na maioria dos casos, o abuso de álcool é constante, e a violência também, demonstrando que não é o álcool o vilão, mas a vontade do próprio agressor em continuar violentando a vítima, utilizando o álcool como desculpa. Tanto que todos os agressores afirmam que nunca agrediram os patrões, amigos ou terceiros sob a influência de álcool (nas audiências advertimos que, com muito mais razão, não devem agredir pessoas com quem têm relações afetivas, pois sabem muito bem o que estão fazendo e que a bebida não é justificativa aceitável para a violência!).

Outro fator importante é que muitos tentam fugir de problemas emocionais, familiares ou profissionais com o uso de álcool. Tudo é motivo para "encher a cara", evitando-se encarar a realidade. Tal atitude pode gerar, a médio prazo, dependência e violência.

Assim, sempre que a violência é precedida do uso de álcool ou outra substância, sejam os agressores alcoólicos, dependentes de drogas, ou não, devem ser encaminhados aos Alcoólicos Anônimos ou Narcóticos Anônimos, sem prejuízo de outra intervenção multidisciplinar simultânea (Grupo de Homens Envolvidos com Violência Doméstica, por exemplo).

A medida visa alertar os agressores da gravidade de seus atos e da possibilidade de ficarem gravemente doentes, quando ainda não forem dependentes. Quanto aos alcoólicos ou dependentes, objetiva estabelecer um primeiro contato com aquelas instituições, reconhecidas como um dos melhores caminhos para o controle do vício.

Observe-se que o comparecimento é obrigatório. Apesar disso, a abordagem deve ser feita de maneira amigável, visando o convencimento do acerto da medida. O alerta de que o alcoólico, segundo especialistas, passa por perdas progressivas - geralmente na seguinte ordem: emprego, amigos, família, saúde, liberdade, vida – tem forte aceitação, eis que muitos já sofreram, ou estão prestes a sofrer, umas das perdas referidas.

É necessário, portanto, conhecer a problemática do álcool. Um exemplo que ilustra a assertiva é o de determinado agressor que compareceu ao Fórum completamente embriagado. Remarcada a audiência para outra data, compareceu sóbrio, mas tremia sem parar. Sequer conseguia assinar o Termo de Audiência. A Advogada sugeriu que ele estava com medo de ser preso. Errado! Ele, na verdade sofria de delirium tremens, síndrome da abstinência do álcool.

Os resultados dos encaminhamentos foram positivos. Muitos dos que ofereceram resistência inicial, alegando não serem alcoólicos ou dependentes, continuaram a freqüentar o AA, mesmo depois do prazo estabelecido judicialmente. Outros diminuíram o uso de álcool ou drogas, reduzindo consideravelmente a violência. Vale citar esse exemplo:

Em audiência realizada na Promotoria, a vítima Nair Pinheiro (nome fictício), ouvida em separado, declarou: "em 17 anos de casamento, os últimos 6 meses foram os melhores de minha vida!" O próprio marido, ouvido em seguida, apresentou melhor aparência, reconhecendo que a vida familiar estava mais afetuosa.

Exageros à parte, uma coisa é certa: pela primeira vez, em 17 anos de violência conjugal, um órgão estatal exigiu mudança de postura e controle da bebida. Sentiu-se o agressor exposto e, por que não?, com vergonha de ter agredido uma mulher, percebendo que os fatos, doravante, não ficariam mais encobertos no âmbito familiar, ou engavetados nos juizados! Poderíamos simplesmente ter arquivado mais um processo, sem qualquer atuação, já que a vítima já tinha renunciado. O Projeto de Samambaia, porém, não permitiu a omissão.

7.7. Crianças, adolescentes, idosos ou pessoas deficientes, vítimas ou presentes nos conflitos

As crianças, os adolescentes, os idosos e as pessoas deficientes são as vítimas prioritárias da violência doméstica. Concorrem com as mulheres entre os preferencialmente atingidos, segundo as estatísticas. As vulnerabilidades próprias destas pessoas, que geralmente não têm como se defender, e a construção social da discriminação contra elas, as colocam à mercê da força bruta e da covardia. A hierarquia familiar, baseada na idade e no sexo, sempre justificou e naturalizou essa violência.

Isso explica a subnotificação das agressões contra essas vítimas que, por razões óbvias, não podem denunciar. A sociedade geralmente silencia sobre a questão.

Nesse contexto, qualquer notícia de violência no núcleo familiar, mesmo que não envolva diretamente as pessoas aqui referidas, deve servir de alerta aos agentes estatais e motivar investigações, inclusive psicossociais.

7.7.1. Crianças e adolescentes

A Constituição da República determina que a criança e o adolescente são prioridades absolutas do Estado brasileiro, sendo-lhes assegurado o direito à convivência familiar e a proteção contra toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227).

Apesar disso, cerca de 18 mil crianças, entre sete e catorze anos, sofrem maus-tratos físicos todos os meses no Brasil [56]. Entre 45% a 59% das mulheres que sofrem violência são mães de crianças que sofrem maus tratos [57].

Estas estatísticas não causam surpresa. Se uma mulher adulta - que, a princípio, poderia denunciar a agressão ou pedir socorro -, é violentada no lar, é óbvio que as crianças ou adolescentes sob sua responsabilidade estão sob perigo também. Estas geralmente vivem sob total dependência da vítima ou do próprio agressor, situação que, por si só, justifica uma intervenção, mesmo contra a vontade da mulher agredida.

Além do mais, não é incomum que mulheres vítimas de violência cometam agressões contra seus filhos [58]. De agredidas, passam a agressoras, repetindo o mesmo comportamento "natural" de seus maridos: imposição da vontade pela força física [59]. A frustração, a baixa auto-estima e a raiva podem explicar esse comportamento, principalmente porque a educação dos filhos ainda é função deixada ao cargo da mulher: "como educadora, cabe à mãe transmitir aos filhos os valores da sociedade, preparando-os para nela desempenhar futuramente seu papel. Ela se torna assim a reprodutora por excelência da ideologia dominante e dos estereótipos sexuais, dos quais é a própria vítima" [60].

Por outro lado, mesmo que as crianças não estejam sendo agredidas diretamente, a violência praticada pelo pai ou padrasto contra sua mãe causam conseqüências semelhantes à agressão sofrida diretamente por elas. Pesquisa da OMS-Organização Mundial de Saúde, aplicada em São Paulo e Pernambuco, mostrou que os filhos de 5 a 12 anos das mulheres agredidas apresentavam diversas seqüelas, como: pesadelos, chupar dedo, urinar na cama, timidez e agressividade, além de repetência escolar (SOARES, 2005).

Por isso, não há dúvidas de que a violência doméstica é um dos fatores responsáveis pela delinqüência juvenil. Os menores agredidos devolvem à sociedade a violência aprendida em casa. Adverte o Promotor de Justiça Anderson Pereira Andrade: "...sabe-se que muitos dos desvios psíquicos graves e condutas criminosas observadas em nosso meio são conseqüências de uma experiência de brutalidade vivida na infância ou na adolescência..." [61]. Contra a omissão estatal, é pertinente indagação do Promotor de Justiça Ricardo Wittler Contardo: "Será que o CAJE (centro de prisão para menores) estará preparado para recebê-los num futuro próximo, quando fugirem do "harmônico ambiente familiar" para resgatar sua auto-estima traficando, matando, espancando suas namoradas?"

Saliente-se, por fim, que a o juízo criminal deverá comunicar os fatos ao juízo da infância e da juventude, que poderá aplicar as medidas protetivas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. É óbvio que atuação deve ser simultânea; uma não exclui a outra. É que a competência para apurar e processar os crimes praticados contra menores é dos juízos criminais. Ao juízo da infância e juventude é reservada a atuação administrativa para proteção dos menores em situação de risco. As atuações judiciais se complementam. Em matéria de violação de direitos humanos, o excesso de zelo é sempre positivo.

7.7.2. Pessoas idosas

A Constituição Federal determina que é dever do Estado amparar as pessoas idosas, "defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida" (art. 230). Com a mesma firmeza, preconiza o Estatuto do Idoso :

Art. 4º (...)

§ 1º É dever de todos prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso.

Art. 10. (...)

"§ 2º O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, idéias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais.

§ 3º É dever de todos zelar pela dignidade do idoso, colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor."

Para cumprir esse desiderato, é preciso que o Estado intervenha sempre que houver indícios de que idosos habitem um ambiente violento.

De fato, aproximadamente 90% dos casos de violência e negligência contra idosos (pessoas acima de 60 anos) ocorrem nos lares [62]. Os filhos (39,01%) e as filhas (15,71%) são os que mais agridem (totalizam 54,7%) [63]. Os cônjuges também compõem esta triste estatística como agressores [64]. As mulheres [65] e os pobres são especialmente vulneráveis (MINAYO, 2005, p. 9).

Quando agredidos, os idosos vivem uma situação dramática. O sentimento afetivo que nutrem pelo agressor, a dependência financeira e até pessoal para realizar atos da vida, gera um misto de perplexidade e impotência, que os fazem "perdoar" seus filhos ou cônjuges, para não prejudicá-los. O medo e a fragilidade física também são fatores que impedem qualquer reação ou a busca de ajuda.

Muitas vezes a violência física ou psicológica é acompanhada de abusos financeiros e econômicos, em que as vítimas são privadas de seus rendimentos e patrimônio, fator que aumenta sua fragilidade.

Reconhecendo a vulnerabilidade, a II Assembléia Mundial sobre o Envelhecimento, realizada pela ONU em abril de 2002, constatou: "O processo de envelhecimento traz consigo a redução da capacidade de se recuperar, razão pela qual, as pessoas idosas vítimas de maus-tratos, talvez nunca chegarão a se recuperar completamente, física ou emocionalmente, da experiência sofrida. O efeito da experiência traumática pode ser agravado pelo fato de que a vergonha e o medo produzem uma resistência em pedir ajuda" [66].

Portanto, o simples fato de a vítima ser idosa, exige atuação especial do Estado, conforme nosso projeto de Samambaia aplicado desde 2003. Porém, MINAYO (2005, p. 34) cita alguns sinais de vulnerabilidade e risco, que também devem ser considerados:

1.agressor viver na mesma casa da vítima;

2.o fato de filhos serem dependentes financeiramente de seus pais de idade avançada;

3.os idosos dependerem da família de seus filhos para sua manutenção e sobrevivência;

4.abuso de álcool e drogas pelos filhos, por outros adultos da casa ou pelo próprio idoso;

5.os vínculos afetivos entre os familiares serem frouxos e pouco comunicativos;

6.isolamento social dos familiares ou da pessoa de idade avançada;

7.idoso ter sido ou ser pessoa agressiva nas relações com seus familiares; haver história de violência na família; e

8.os cuidadores terem sido vítimas de violência doméstica, padecerem de depressão ou de qualquer tipo de sofrimento mental ou psiquiátrico.

7.7.3. Pessoas deficientes

A história das pessoas deficientes se confunde com a história da crueldade e covardia humanas. Preconceitos e desconhecimentos já levaram à tortura e extermínio em massa de pessoas consideradas "indesejáveis" ou "diferentes". Esta constatação é paradoxal - como todo ato preconceituoso humano -, porque em verdade todos somos diferentes e não há nenhum ser humano igual ao outro.

Por isso, e por sua própria condição de limitação e fragilidade, a pessoa deficiente é altamente vulnerável à violência doméstica.

A Declaração de Direitos da Pessoa Deficiente [67] definiu: "§1 - O termo "pessoas deficientes" refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais". [68]

E o § 9 da mesma Declaração garante: " As pessoas deficientes têm direito de viver com suas famílias ou com pais adotivos e de participar de todas as atividades sociais, criativas e recreativas. Nenhuma pessoa deficiente será submetida, em sua residência, a tratamento diferencial, além daquele requerido por sua condição ou necessidade de recuperação. Se a permanência de uma pessoa deficiente em um estabelecimento especializado for indispensável, o ambiente e as condições de vida nesse lugar devem ser, tanto quanto possível, próximos da vida normal de pessoas de sua idade".

Como toda violência doméstica, mormente a que aflige idosos e crianças, a violência contra deficientes, apesar de enorme, é totalmente subnotificada. O Estado, a sociedade e a família agem como se não existisse, de forma que não há estatísticas sobre a questão [69].

A delicadeza da situação, envolvendo pessoas com quem o deficiente tem relação de afeto ou dependência, potencializa a vulnerabilidade própria do deficiente. Maria Angélica Lauro Condé [70] aponta: "...o estudo do fenômeno envolve um componente ameaçador para seus protagonistas pelas conseqüências que acarreta na legislação (criminais para os agressores e a possibilidade de separação da criança dos pais pelas vias de institucionalização, guarda por terceiros, adoção)".

Além do mais, todas as dificuldades encontradas por uma pessoa "normal" para denunciar seus agressores, como já vimos, é duplicada nos deficientes. Condé [71] esclarece: "A violência contra crianças/adolescentes, geralmente, é desqualificada, não é dada credibilidade às vítimas, que são consideradas, pela pouca idade, incapazes de fornecerem informações precisas, principalmente, quando envolve vítimas com necessidades especiais". E finaliza com contundente indignação: "A maior tragédia dessa história, tenho certeza, é que as crianças confiam nos adultos. São jovens demais para adivinhar que nos tornarmos cegos, surdos e mudos. São puras demais para saber que preferimos conjugar o verbo ignorar ao verbo agir. São inocentes demais para compreender que somos uma sociedade autofágica que, ao matá-las, destruí-las e violá-las, nada mais faz do que se imolar. A maior tragédia dessa história é que as crianças só podem contar com os adultos".

Para ilustrar a importância da atuação estatal obrigatória, apresentamos abaixo um dos casos que atuamos, dentre as várias histórias de horror envolvendo pessoas deficientes :

I.F.L., em estado de embriaguez e após uma crise de ciúmes, se armou com uma faca e saiu correndo atrás de sua esposa M.L.S. para matá-la. Esta saiu em desabalada carreira, juntamente com os filhos pequenos do casal, que ficaram gritando desesperadas para o pai não matar a mãe. As vítimas conseguiram chegar ao Corpo de Bombeiros e o agressor foi impedido de entrar. As vítimas, como outras vezes, tiveram que passar a noite fora de casa para não serem assassinadas. A esposa renunciou ao processo, porém a Promotoria exigiu apuração multidisciplinar. Durante a atuação, descobrimos, para nossa surpresa, que a esposa tem um filho deficiente, com atrofia muscular, de 21 anos de idade, enteado do agressor, que ficava desesperado ao ver sua mãe sendo violentada rotineiramente, sem poder fazer nada. Quando esta fugia com os filhos menores, ficava o deficiente em casa, à mercê do descontrole do padrasto. Ao final, a vítima teve coragem de representar, o agressor foi condenado e não mais importunou a família.

Este caso demonstra que, mesmo não havendo notícias de agressões diretas, é preciso atuar para garantir um mínimo de dignidade às pessoas vulneráveis.

7.8. Gravidez da ofendida

Em nossa atuação diária, impressionou-nos a quantidade de mulheres grávidas violentadas por seus parceiros. É como se a fragilidade própria da gravidez e o conseqüente aumento da dependência das mulheres, incentivasse a agressão gratuita e covarde.

Julia Garcia Durand, realizando pesquisa em postos de saúde, detectou que 33% (1/3) das mulheres disseram ter sofrido violência de parceiro intimo durante alguma gestação. [72] A autora frisa que "a gestação constitui momento da trajetória social que envolve passagem de um padrão identitário (identidade de marido e esposa) para outro (identidade de pai e mãe). Muitas vezes representa, concomitantemente, momento de passagem da vida solteira para a vida em comum".

Os tradicionais preconceitos que atingem as mulheres muitas vezes são usados para beneficiar os agressores. Elas próprias tentam justificar a atitude de seus parceiros, afirmando em audiência que ficam muito nervosas e intratáveis durante a gravidez. "Eu fico insuportável", foi uma das respostas obtidas por Julia Durand [73].

Por outro lado, a literatura internacional aponta os agravos à saúde dos infantes em conseqüência da violência, como baixo peso ao nascer, aborto, prematuridade, mortalidade perinatal e morbidades psiquiátricas [74]. Tal quadro, por si só, é um fator de risco a ser considerado.

7.9. Outros fatores de risco

Os fatores de risco acima elencados não afastam outros, provenientes, por exemplo, de discriminações raciais, de classe ou de opção sexual.

Safiotti [75] assinala que as relações sociais são atravessadas por três eixos principais de hierarquização: o de classe social, subordinação de muitos por poucos, o de raça, que permite ao branco determinar o lugar do negro na estrutura social e o de gênero, que legitima a assimetria de subordinação entre os sexos.

Com efeito, estatísticas revelam que mulheres negras são as que mais apanham de seus companheiros, sejam eles brancos ou negros [76].

Por outro lado, apesar da violência atingir todas as classes sociais, as dificuldades financeiras e o desemprego geram contextos propícios à violência. É comum o homem, quando não atende os "ideais masculinos" de provedor e auto-suficiência, tentar desqualificar e agredir suas parceiras para, através da violência, reafirmar sua superioridade e mascarar sua sensação de fragilidade ("síndrome do pequeno poder"). A pressão da sociedade de consumo potencializa a violência, na medida em que as necessidades e aspirações devem ser satisfeitas com rendimentos precários. Safiotti denomina o fenômeno como "síndrome do pequeno poder" social, em que o homem procura resgatar algum poder em suas relações interpessoais. [77]

Por fim, os casais homossexuais (de homens ou mulheres) tendem a repetir os estereótipos masculino e feminino em suas relações, gerando a mesma violência caracterizada como "tipicamente masculina", fator agravado pela repressão moral a esses grupos, que gera sua invisibilidade social [78].

7.10. Violência física como fator de risco e a Lei Maria da Penha

Espancamentos, uso de armas (faca, revólver, etc.), afogamentos, queimaduras, eletrochoque ou enforcamento, por razões óbvias, foram também fatores de risco considerados pela Promotoria no projeto de Samambaia. Por incrível que pareça, tais fatos eram arrolados como de "menor potencial ofensivo" pela Lei 9099/95, que também passou a exigir representação das vítimas para os denominados crimes de lesão corporal "leve". Segundo o Código Penal, essa "leveza" é caracterizada nos casos em que as vítimas sobrevivem e se recuperem até o 30º dia da agressão, sem apresentar seqüelas.

Neste contexto, muitas vítimas procuram justificar a própria agressão sofrida e isentar o agressor de culpa, alegando que as diversas lesões sofridas resultam de sua "pele muito branquinha, basta encostar que fica vermelho!". Acontece que este simples "encostar" significa, na prática, horas seguidas de chutes, socos, tapas e esganaduras, que as vítimas, em seu medo e fragilidade, tentam atenuar para evitar novas agressões.

No entanto, com a Lei Maria da Penha, o crime de lesão não é mais considerado juridicamente insignificante ou de menor potencial lesivo, porque prevê pena de 3 anos de prisão, e não mais depende de representação. O Ministério Público deve agir de ofício. O acompanhamento multidisciplinar, se necessário, deve acontecer simultaneamente ao processo criminal.

7.11. Medindo o nível do risco

Bárbara Musumeci Soares construiu interessante tabela com o nível de risco de casos, dividindo-os em médio, alto e extremo. Suas observações sobre estas e outras questões são de consulta obrigatória a todos que operam com a violência doméstica. O texto integral está disponível para consulta no site da Secretaria Especial de Política Para As Mulheres: www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/.

Sobre o autor
Fausto Rodrigues de Lima

promotor de Justiça do Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fausto Rodrigues. A renúncia das vítimas e os fatores de risco à violência doméstica.: Da construção à aplicação do art. 16 da Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1615, 3 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10718. Acesso em: 23 dez. 2024.

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