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A renúncia das vítimas e os fatores de risco à violência doméstica.

Da construção à aplicação do art. 16 da Lei Maria da Penha

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Agenda 03/12/2007 às 00:00

6. Pode o juiz ou o promotor de justiça recusar a renúncia da vítima?

Não. Não é possível ao juiz ou ao promotor de justiça recusar a renúncia da vítima. Na falta de autorização dela, não pode o promotor denunciar e nem o juiz aceitar o início do processo criminal, por ausência de condição de procedibilidade para o exercício da ação penal (art. 43, inc. III, CPP).

De fato, no sistema processual criminal brasileiro, a representação é faculdade exclusiva da vítima. Somente ela pode autorizar o Estado a agir. Sem seu consentimento, não haverá processo. O Estado não pode agir por ela. Se assim fosse, qual o sentido de exigir autorização das vítimas para o processamento de algumas infrações penais?

A discriminação legal das ações penais é coerente com esse sistema, uma vez que a regra é a atuação obrigatória do Ministério Público, independentemente de autorização de eventuais vítimas. Num Estado Democrático de Direito, a garantia dos direitos humanos e a repressão à criminalidade é encargo estatal, quando presente o "(...) interesse público em ver devidamente apurada uma infração penal, que certamente não afeta somente a pessoa vitimada, mas toda a comunidade, interessada em que não se deixe impune o autor", na certeira lição do Promotor de Justiça Rogério Schietti Machado Cruz.

A exigência da representação é reservada a excepcionalíssimas infrações - geralmente de pouca gravidade ou em que o dano ao bem jurídico depende de constatação subjetiva -, cuja repercussão processual (e pública) deva atender à conveniência exclusiva da vítima. É o caso dos crimes cometidos com a palavra, como os de ameaça ou aqueles contra a honra, em que algumas vítimas podem sentir-se ameaçadas ou humilhadas.

6.1. A tentativa de permitir a recusa e o repúdio expresso do legislador

É certo que na tramitação do projeto de lei adicionou-se um parágrafo único ao então art. 17 (atual art. 16), possibilitando ao juiz rejeitar a renúncia das vítimas.

Tal disposição, entretanto, restou repudiada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, após intervenção do Deputado Federal Antônio Carlos Biscaia [30], assim fundamentada:

"O parágrafo único do artigo 17 subverte a autonomia de vontade que caracteriza as ações penais condicionadas à representação; a possibilidade de o juiz rejeitar a renúncia torna inócuo o instituto, equiparando-o, em termos práticos, à ação pública incondicionada. Propomos a supressão do referido parágrafo único."

Perfeitamente procedente, como visto, o argumento que suprimiu o referido dispositivo, demonstrando o repúdio expresso do legislador brasileiro à desconsideração da vontade das vítimas nos crimes que dependem de representação.

6.2. O princípio acusatório e o Ministério Público como destinatário natural e exclusivo do eventual poder de recusar a renúncia: o sistema argentino

Mesmo que a proposta discutida no parlamento brasileiro tivesse vingado, mantendo-se a possibilidade de rejeição da renúncia, jamais se poderia atribuir tal função ao juiz.

Com efeito, no sistema acusatório constitucional vigente no país, o Poder Judiciário deve processar e julgar os fatos criminosos somente quando provocado, sendo-lhe vedado agir de ofício. A titularidade da ação penal pública é exclusividade do Ministério Público (art. 129, I, CF). A representação, ou sua renúncia, é dirigida ao promotor de justiça, satisfazendo ou não a condição de procedibilidade para propor a abertura do processo. A necessidade dessa divisão de funções num Estado Democrático de Direito é sintetizada na velha máxima medieval: "Quem tem o juiz como acusador precisa de Deus como defensor".

Nesse contexto, somente ao Ministério Público poderia ser conferido o eventual poder de recusar a renúncia, uma vez que tal ato implicaria, necessariamente, a instauração de um processo criminal.

Ora, se o juiz pudesse recusar a renúncia, estaria praticamente propondo uma ação penal contra o acusado. Para tanto, teria que se imiscuir na prova investigatória, apontando porque o agressor merece ser processado (periculosidade, intimidação à vítima, gravidade dos fatos, etc). Tal esforço judicial - típico do sistema inquisitivo medieval -, confunde-se com o próprio mérito da imputação. Na prática, a atuação judicial significaria a inevitável condenação, uma vez que o espírito do julgador estaria contaminado com a vontade persecutória, incompatível com a isenção e imparcialidade judicial garantida ao cidadão. [31]

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Assim, somente ao titular exclusivo da ação penal pública caberia dispensar a representação, ou seja, recusar a renúncia da vítima. Esse entendimento não fere a imparcialidade ministerial, ínsita ao Ministério Público num Estado Democrático de Direito [32], porque a investigação e persecução criminal é da sua essência. Sua missão diferencia-se daquela do Judiciário porque, "por maior que seja o grau de independência institucional do acusador, é inerente à função acusatória a implementação da política criminal estruturada pelos poderes majoritários" [33].

Poder-se-ia, quando muito, atribuir ao juiz o poder de fiscalizar os motivos da rejeição da renúncia, encaminhando os autos ao procurador-geral de justiça quando discordasse do promotor. A palavra final seria do chefe do Ministério Público, por aplicação analógica do art. 28 do CPP, mantendo-se a isenção do Estado-juiz.

Anote-se que o sistema da recusa, apesar de ter sido repudiado pelo legislador brasileiro, é adotado pela Argentina no caso de crime de "lesão corporal leve", que naquele país depende de representação (denominada "instancia privada"). Seu Código Penal determina que o Ministério Público (jamais o juiz) pode recusar a renúncia por questões de "segurança" ou "interesse público" [34]. Tal solução é prevista apenas para os crimes de lesão leve, cometidos ou não em violência doméstica [35].

6.3. Crítica à possibilidade de recusar a renúncia: insegurança jurídica e tolerância à violência doméstica

Procedeu bem o legislador brasileiro ao não adotar o sistema argentino, o qual permite ao Estado recusar a renúncia, pois apresenta este sérios e insuperáveis inconvenientes.

De fato, deixar a possibilidade de dispensar uma representação a critério subjetivo de agentes estatais fomentaria injustiças e desigualdades. Fatos idênticos teriam tratamentos diferenciados, dependendo do entendimento pessoal do promotor de justiça, causando inevitável insegurança jurídica.

Em matéria de direito penal, e processual penal, cujo objeto é a mais severa punição prevista no ordenamento (sanção penal), mormente a restrição da liberdade, as regras devem ser objetivas e impessoais. Os direitos e deveres, e suas exceções, devem ser taxativamente regulamentados, valendo para todos.

Não se argumente que essa posição contraria a livre aplicação da "política criminal" pelos responsáveis pela persecução penal. É sabido que a política criminal – conjunto de decisões técnico-valorativas sobre os instrumentos, regras, estratégias e objetivos do uso da coerção penal em face de condutas indesejadas [36] –, apesar de aplicada notadamente pelo legislador, deve também ser exercida por promotores e juizes. Estes, porém, na aplicação da lei penal em cada caso concreto, devem obedecer a parâmetros claros descritos no arcabouço jurídico-constitucional (igualdade, devido processo legal, impessoalidade, etc.), que versam que em um Estado Democrático de Direito, jamais se admitirá que promotores de justiça escolham, individualmente, os fatos que merecem processo e punição forçada, sem autorização das vítimas.

É sabido que o direito penal, como todo sistema de controle social, é seletivo e "escolhe" acusados e vítimas segundo critérios sociais, religiosos, raciais, de gênero, etc. Pelo Código Penal brasileiro, por exemplo, o patrimônio tem mais valor que o ser humano [37]. Nem a Lei Maria da Penha, imbuída do claro propósito de valorizar o ser humano, conseguiu alterar esse padrão, tome-se, por exemplo, que o crime de lesão praticado contra mulher teve a pena diminuída para 3 meses de prisão (antes era de 6 meses), enquanto o furto tem pena real de 1 ano (é mais vantajoso para o criminoso espancar a mulher do que furtar seu batom! [38]).

Nesse contexto, se o próprio legislador - responsável por produzir normas genéricas -, quando sujeito à pressão de grupos dominantes ou ao clamor público, adota leis "endereçadas", com muito mais razão deve ser evitada a discricionaridade na persecução penal em cada caso concreto.

Ora, toda questão jurídica levada a julgamento no país sempre resulta, para o mesmo fato, inúmeros posicionamentos divergentes. Muitos dos julgados são repetições de discursos jurídicos "eternos", fórmulas e expressões feitas, que solucionam os processos sem a necessidade de análise. Atualíssima a advertência do Advogado paulista Maurício Zanoide de Moraes: "Excluindo-se as vaidades acadêmicas e os fetichismos punitivos travestidos de técnica hermenêutica, o que se vê é uma desordem no discurso técnico dos operadores do direito criminal. Tal desordem se inicia por uma má formação técnica e se potencializa pela seletividade punitiva, uma vez que as características pessoais dos participantes do processo e das vítimas determinam uma maior ou menor eficiência na punição". [39]

Quando se trata de violência doméstica, a discricionariedade merece uma crítica mais aguda. No atual estágio de evolução da sociedade americana (das três Américas), não é recomendável facultar aos agentes estatais a escolha das violências consideradas "aceitáveis" (vide item 6.3.2). A tradição que impera entre nós ensina que a mulher violentada é culpada, até que prove o contrário. Os atos dos agressores são justificados com os argumentos mais criativos possíveis. A impunidade é a regra. A pesquisadora espanhola Patrícia Copolla, com triste razão, constata: "Uso discrecional e inadecuado del sistema de selección de casos: aquellos casos no considerados "graves" o que no exhiben daños muy notorios prima facie, son o bien desechados de entrada o bien "duermen" en los estantes de las fiscalías y terminan prescribiendo. [40]

No Brasil, a maioria absoluta dos(as) promotores(as) e juizes(as), por exemplo, ainda aceita tudo, ou quase tudo, em matéria de violação dos direitos humanos das mulheres. Atrocidades continuam sendo arquivadas, seguindo-se a tradição omissa dos JECrim. Muitos não conseguem enxergar violência em fatos "sem gravidade especial", "insignificantes" ou "socialmente toleráveis", fato evidente em decisões recentes determinando o arquivamento de casos como aquele em que marido ateou fogo na mulher (após embeber-lhe em álcool), outro em que arrancou seus dentes à socos e, ainda, outro em que a espancou até que ela desmaiasse. Frise-se que tais casos, capitulados no art. 129, § 9º, CP, sequer dependem de representação sob a regência da Lei Maria da Penha. Tristemente, porém, decidiu-se desprezar a nova política criminal instaurada pelo legislador, para garantir a impunidade dos agressores. É o império do sistema patriarcal puro, sem retoques ou maquiagens, exigindo regras claras e precisas para enfrentá-lo.

A solução da Lei Maria da Penha, portanto, é a mais justa e coerente, desde que aplicada com desassombro e coragem.

6.3.1. Tribunal recusa a renúncia da vítima e determina o desarquivamento de processo

Apreciando recurso do Ministério Público, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal entendeu que as renúncias podem ser recusadas pelo juiz. Eis a íntegra da inédita decisão:

Recurso em sentido estrito. Lesão corporal leve. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Exegese dos artigos 16 e 41 da lei nº 11.340/2006. Necessidade de representação. Retratação da representação. Não aceitação. Provimento do recurso.

(...)

Já o artigo 16 da lei nº 11.340/2006 impõe que a "renúncia" à representação, na realidade, retratação da representação, "só será admitida perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público". O claro objetivo é que o ministério público e o juiz fiscalizem a retratação da representação, para evitar que ela ocorra por ingerência e força do agressor. Esse o ponto nodal da questão. Atentou a nova lei, precisamente, para que pode a mulher, vítima da lesão corporal, "desistir" do prosseguimento da ação contra seu marido ou companheiro, em face de coação ou violência deste. Daí a necessidade da audiência. Manifestada a retratação antes do recebimento da denúncia, deve designar o juiz audiência para, ouvido o Ministério Público, admiti-la, se o caso. Não se trata aqui de mera homologação da retratação. O objetivo da lei, dever do ministério público e do juiz, é perquirir, efetivamente, por todos os meios, a motivação do pedido da vítima. Ouvido o Ministério Público e convencido o juiz de que a retratação é espontânea, tendo por fim a efetiva reconciliação do casal, a real preservação dos laços familiares, e havendo condições a tanto favoráveis, deve admitir o pedido, pondo fim ao processo. Caso contrário, não. Na dúvida, é de recusar-se a retratação, pelo relevo que merece a proteção à vítima da violência doméstica e familiar. Reiteração da violência doméstica e familiar, maus antecedentes criminais do agressor, seriedade e gravidade das circunstâncias de que resultantes as lesões, apesar de leves, tudo isso milita contra a aceitação da retratação. Imprescindível, portanto, o exame de cada caso concreto.

No caso, é inaceitável a retratação. O relatório técnico elaborado pela promotoria de justiça da infância e da juventude informa que a situação de violência perpetrada pelo denunciado contra sua companheira e seus filhos menores ocorre desde o ano de 2004, culminando com o abrigo destes em instituição própria para crianças em estado de risco. De especial relevo a manifestação técnica de que "a genitora não consegue proteger seus filhos, estando ela mesma fragilizada e à mercê da violência do seu companheiro". Somam-se condenações criminais do denunciado, inclusive reincidências em crimes de roubos.

Nesse contexto, há de se recusar a pretendida retratação, possível em tese, mas seguramente não espontânea no caso concreto e não servindo ao restabelecimento de uma saudável convivência familiar.

Recurso provido para, cassada a decisão que aceitou a retratação, e prevalecendo o recebimento da denúncia, determinar o prosseguimento do feito, como de direito.

Decisão. Prover: unânime. [41]

No caso referido, a 2º Promotoria de Samambaia, apoiando-se em que o crime de lesão é de ação incondicionada, insurgiu-se contra a rejeição da denúncia ministerial, operada pela primeira instância. O Tribunal rechaçou o argumento ministerial, alegando que o crime imputado depende de representação, porém deu provimento ao recurso para determinar o recebimento da denúncia, sustentando que o juiz pode recusar a renúncia das vítimas.

A solução encontrada pela Corte de Justiça foi sem dúvida ousada e pioneira. Para sustentar a posição de que o crime de lesão depende de representação, buscou o julgador uma saída discricionária, ao decidir que o juiz pode escolher se processará ou não determinadas lesões.

Porém, como exposto, o fundamento utilizado não é aceitável em nosso ordenamento jurídico. Não é possível no Brasil recusar a renúncia nos crimes de ação penal condicionada à representação. Para o fato analisado, a Lei Maria da Penha estabelece a melhor solução, ou seja, o crime é de ação penal pública incondicionada. É dispensável perquirir se a ofendida quer renunciar ou se sua vontade deva ser recusada. Foi nesse sentido que fundamentou o Ministério Público em suas razões de recurso, verbis:

"Os partidários da "política do arquivamento" defendem a "autonomia de vontade" das vítimas espancadas cotidianamente.

Essa pretensa autonomia, porém, mostra-se uma falácia na prática, eis que referidas vítimas geralmente não podem medir forças com o agressor. É o que demonstram todos os estudos sociológicos e antropológicos sobre a questão. Explica SAFFIOTI:

"Fica patente que a mulher já entra no contrato de casamento em situação de inferioridade. Isto lembra Mathieu quando mostra a incapacidade das mulheres de consentir na violência contra elas praticadas pelos homens. A rigor, as mulheres não podem contratar, uma vez que não detêm o mesmo poder que os homens. É exatamente por isso, como afirma Mathieu, que, diante das ameaças de violência, as mulheres cedem, mas não consentem, pois o ato de consentir exige autonomia, sobretudo se se usar este termo no sentido que lhe empresta Jonhnson. Desta sorte, o homem já entra no contrato de casamento empoderado; e o contrato o torna ainda mais poderoso....Não há propriamente obediência, mas impossibilidade, via de regra, de medir forças com o dominador." (Heleieth I. B. SAFFIOTI, Gênero e Patriarcado: a necessidade da violência. In "Marcadas a Ferro, violência contra a mulher, uma visão multidisciplinar". Secretaria Especial de Política para as Mulheres. 2005)

Os autos comprovam essa assertiva. Maria Lúcia Alves [42], juntamente com seus filhos, passou a ser violentada pelo Apelado logo após ele ter cumprido penas por crimes de roubo.

Por isso, o d. Juízo a quo condenou o Apelado anteriormente pela prática do crime de maus tratos, conforme cópia da sentença acostada às fls. 67/74, em cuja fundamentação consta:

MARIA LÚCIA ALVES , companheira do réu, disse que no dia do fato ele chegou em casa bastante nervoso, sendo que já havia ingerido bebida alcoólica. Informou que sua filha CRISTIANE estava lavando o banheiro, quando o acusado começou a agredi-la. Esclareceu que também apanhou do réu e que era comum ele bater nas crianças" (grifado na origem)

Frise-se que o Denunciado, na mesma sentença acima referida, também foi condenado por crime de desacato, eis que proferiu diversos xingamentos contra mulheres que trabalham na escola de seus filhos, as quais haviam detectado as marcas de sua violência nas crianças.

Apesar da condenação, as agressões continuaram, levando o Juízo da Infância a retirar do casal a guarda dos filhos. O Relatório psicossocial daquele juízo, datado de 13/09/06, confirma (v. fls. 75 a 82):

Percebeu-se, durante o estudo, que a genitora não consegue proteger seus filhos, estando ela mesma fragilizada e a mercê da violência do seu companheiro. Pelo observado, a Sra. MARIA LÚCIA protege o Sr. EDSON em detrimento dos filhos. (grifado na origem)

Cumpre lembrar que a denúncia ora rejeitada narra que o acusado desferiu violentos socos em MARIA LÚCIA, arrancando-lhe alguns dentes. O Laudo de Lesão na mão do acusado comprova a violência da agressão (fls. 91/2):

relata lesão na mão após ter agredido sua esposa com um soco, na data de ontem, e atendido no HRT. Edema traumático na mão direita.

(grifado na origem)

Observa-se, assim, que o terror é a tônica da relação do Denunciado com sua família, motivo que explica a necessidade da vítima tentar "retirar a queixa".

Estes autos demonstram, portanto, o quão acertada foi a solução da nova Lei 11.340/06, ao retirar o pesado fardo da representação das costas das vítimas de espancamentos domésticos. (grifado na origem)"

É certo que, apesar da fundamentação diversa utilizada pelo Tribunal, foi atingido o objetivo perseguido pelo Ministério Público de tentar restaurar a dignidade de um ser humano violentado, torturado, humilhado, rejeitado e desconsiderado pela Justiça por anos a fio. No entanto, a simples aplicação da Lei Maria da Penha, que dispensa a representação para tais casos, é mais simples e justa.

6.3. 2. "Curando" a desobediência feminina

Poder-se-ia argumentar, em socorro ao fundamento do Tribunal, que existem situações mais graves que outras. Umas mereceriam processo, outras não. É o dilema muito utilizado em matéria de violência contra a mulher, sintetizada na expressão: "há situações e situações!". Para essa corrente, é conveniente interpretar que o crime de lesão deve continuar dependendo de representação, para não processar agressões "insignificantes".

Esse argumento não convence, porque a questão é perfeitamente resolvida pelo legislador, responsável por excelência pela política criminal majoritária.

Realmente, um "simples" tapa ou empurrão, que não resulte lesão física, é tipificado como contravenção de vias de fato, que a própria Lei Maria da Penha manteve no rol das infrações de menor potencial ofensivo. Permite, assim, a aplicação de todas as medidas despenalizadoras da Lei 9099/95 (o art. 41 da Maria da Penha excluiu apenas os crimes).

Já o crime de lesão corporal qualificado pela violência doméstica (art. 129, § 9º, CP), é apenado com 3 meses a 3 anos de prisão. Bastante elástico e diferenciado, portanto, o instrumento coercitivo à disposição do juiz, hábil a permitir a perfeita individualização da pena. Esta função - maior expressão da política criminal e vinculada exclusiva e discricionariamente ao Poder Judiciário -, tem seu preceito regulamentado no art. 59 do Código Penal. Se bem utilizada, nenhuma injustiça ou desigualdade se abaterá sobre os condenados.

Quanto aos crimes que dependem de representação, como ameaça ou injúria, a intervenção multidisciplinar, razão de ser do art. 16, poderá ser a melhor alternativa quando, presentes fatores de risco, desejar a ofendida renunciar.

Percebe-se, assim, que a Lei Maria da Penha foi extremamente equilibrada ao dispensar representação aos crimes de lesão qualificados pela violência doméstica.

O que não é lícito é que os agentes estatais escolham os fatos que considerem "aceitáveis", permitindo bater dessa mas não daquela forma, com esse mas não com aquele objeto. Essa situação é impensável num Estado Democrático de Direito.

É certo que algumas culturas e sociedades, ao garantir ao homem o direito de castigar suas mulheres, estabelecem limites e "regrinhas", ensinando a melhor forma de exercer esse mister, com o fim de "curar a desobediência feminina". Alguns países, por exemplo, sugerem que o marido não tire sangue, não quebre ossos e que preserve as crianças, ou seja, espanque a mulher com a porta do quarto fechada [43].

Nesse contexto, esclarecedor o "ensinamento" do Sheikh Muhammad Kamal Mustafá: "O espancamento [da esposa] nunca deve ser em fúria cega e exagerada de modo a que se evitem danos sérios... É proibido bater-lhe nas partes sensíveis do corpo, tais como a cara, peito, abdômen e cabeça. Em vez disso, deverá bater-se-lhes nos braços e nas pernas, usando uma vara que não deve ser rígida mas fina e leve de modo a não deixar feridas, cicatrizes ou nódoas". E continua: "Da mesma forma, os golpes não devem ser fortes." [44].

Por incrível que pareça, o sistema dos JECrim no Brasil foram mais perversos. Por aqui valia (continua valendo?) tudo, como quebrar ossos, tirar sangue, arrancar os dentes, queimar. O limite era (ainda é?) a criatividade!

Sobre o autor
Fausto Rodrigues de Lima

promotor de Justiça do Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fausto Rodrigues. A renúncia das vítimas e os fatores de risco à violência doméstica.: Da construção à aplicação do art. 16 da Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1615, 3 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10718. Acesso em: 22 nov. 2024.

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