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A renúncia das vítimas e os fatores de risco à violência doméstica.

Da construção à aplicação do art. 16 da Lei Maria da Penha

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03/12/2007 às 00:00
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5. Aplicando o art. 16

Demarcados os antecedentes, os motivos e a fonte do artigo referido, compete aos operadores do direito extrair a lógica jurídica da nova disposição, através da interpretação sistemática do arcabouço jurídico pertinente. O ponto de partida desse esforço interpretativo é, obrigatoriamente, o art. 4º da Lei Maria da Penha, que estabelece:

Art. 4 Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

A referida norma "representa a alma da Lei, sua essência básica, da qual não poderá o Ministério Público(ou o Poder Judiciário) se afastarem", como já sustentamos em outra oportunidade [19].

Assim, qualquer interpretação da Lei Maria da Penha que se descure de um aprofundado e incansável estudo sobre a situação das vítimas de violência doméstica, não merece credibilidade.

Infelizmente, esse erro tem seduzido alguns operadores do direito que, sem qualquer critério, consideraram a Lei Maria da Penha inconstitucional, alegando que ela ofende o princípio da igualdade entre homens e mulheres. Tal argumento, simplista ao extremo, apresenta forte déficit teórico, pois não considera a doutrina das ações afirmativas que, há mais de quatro décadas, busca transformar a igualdade ficcional preconizada nas Constituições modernas em igualdade real, através de discriminações positivas que diminuam as assimetrias sociais [20]. Ademais, desconsidera, ou desconhece, os estudos sobre discriminação de gênero e tradição patriarcal, que naturalizaram a violência familiar. Na verdade, esse tipo de argumento tem por base exatamente o entendimento tradicional - arraigado na sociedade brasileira -, que não admite poder ser um marido investigado ou punido apenas por espancar a "própria" mulher.

É conveniente frisar, ainda, que não devem ser analisadas as "condições" das mulheres em si. Estas são completamente iguais aos homens, não apenas por determinação legal, mas por direito natural. Não são mais aceitáveis investigações sobre características "biológicas", que muitas vezes são usadas apenas para discriminar seres humanos, estabelecendo-se hierarquias sociais.

Por isso, a Lei diz, expressamente, que são relevantes as "condições", a situação, das mulheres submetidas à violência. A "condição peculiar", termo utilizado, "se refere à vulnerabilidade feminina à violência doméstica, agravada pelos conceitos esteriotipados sobre o papel do homem e da mulher, que julgam normal o uso da violência para o controle social, familiar e sexual" [21]. Assim, não devem ser analisadas as pessoas, mas os fatos!

É importante fazer esse alerta para evitar argumentos que defendam a visão de que as mulheres foram consideradas incapazes ou inferiores pela nova Lei. Esta não é, em absoluto, a questão. Busca-se exatamente o oposto, ou seja, enfrentar a tradição patriarcal, que, ao rotular as mulheres de forma discriminatória, instituiu a violência para manter a autoridade "natural" do "chefe do lar", exercida pelo gênero masculino.

Lembre-se, por oportuno, que "a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos", conforme preconiza o art. 6º da Lei, fato que impõe uma interpretação segundo os instrumentos internacionais que regulam a matéria.

Fixadas estas premissas, passemos à análise da audiência referida no art. 16.

5.1. O papel do juiz, do promotor e do defensor: a suspensão da audiência

Evidentemente, o juiz e o promotor de justiça não devem simplesmente ouvir a vítima, colher sua assinatura e arquivar o procedimento. Não seria necessária a participação destas autoridades para isso. É preciso considerar as "condições peculiares" (art. 4º), a serem analisadas em cada caso concreto.

Primeiramente, deverão ser cotejadas as declarações da vítima, prestadas em juízo, com as investigações feitas pela polícia, analisando-se todas as nuances da violência, os motivos do pedido de renúncia e a situação familiar das partes.

Nesse esforço, é possível produzir provas para averiguar se a manifestação da vítima é livre, como bem observa o Juiz Fernando Antônio Tavernard Lima [22]. Com ele concorda o Juiz Sérgio Ricardo de Souza, que, no entanto, adverte, com propriedade, que as investigações devem ser requisitadas pelo Ministério Público [23]. Esta observação é pertinente para evitar que o julgador busque a persecução penal, atuação incompatível num sistema acusatório (sobre a questão, vide item 6.2).

É possível, antes mesmo da realização da audiência judicial, encaminhar os envolvidos a uma entrevista prévia com a equipe multidisciplinar, que poderá fazer uma análise completa das questões levantadas. É vedado, porém, que a equipe substitua o juiz ou o promotor. A equipe é auxiliar, mas a vítima deve ter acesso direto, e sem intermediários, àquelas autoridades. É preciso evitar a praxe abusiva dos juizados especiais, que terceirizou o poder jurisdicional e ministerial.

Caso os fatos não apresentem qualquer gravidade ou perigo especial, deverá a Justiça arquivar o procedimento, acolhendo a renúncia da vítima.

Porém, se detectado algum fator de risco, competirá ao Ministério Público sugerir à vítima e/ou ao agressor algum tipo de acompanhamento multidisciplinar prévio, mediante a suspensão da audiência por prazo razoável. O período poderá ser estipulado em conjunto com a equipe multidisciplinar, para atender as particularidades e possibilidades de cada local (no projeto de Samambaia, utilizamos o período de seis meses, por sugestão dos profissionais especializados).

A Defensoria Pública, ou o advogado da vítima, poderá requerer a suspensão da audiência para o atendimento multidisciplinar prévio da ofendida.

Tal providência, que é a própria razão de ser do art. 16, está perfeitamente regulamentada na Lei Maria da Penha. Vejamos:

5.2. A atuação prévia da equipe multidisciplinar e sua finalidade

De fato, a Lei prevê a atuação emergencial do Estado, para garantir a integridade das vítimas e prevenir a violência, através da instituição das medidas protetivas de urgência.

Dentre as medidas previstas, consta o encaminhamento da "ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento" (art. 23, inc. I). Esse encaminhamento poderá ser feito a qualquer momento, antes, durante ou após o processo.

O Ministério Público, na exata dicção do art. 19, tem atribuição para requerer medidas protetivas. Este dispositivo visa garantir proteção integral às vítimas que, por coação ou qualquer outro motivo grave (fatores de risco), estiverem na iminência de sofrer alguma violência (deverá o promotor de justiça analisar as "condições peculiares" das pessoas em situação de violência, para averiguar a real necessidade de intervenção pontual em prol da família e de cada um de seus integrantes).

E o Título V da Lei, com clareza desconcertante, explica a função da equipe multidisciplinar: "fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes" (art. 30).

Por fim, com redundância eloqüente, sugere a Lei: "quando a complexidade do caso exigir avaliação mais aprofundada, o juiz poderá determinar a manifestação de profissional especializado, mediante a indicação da equipe de atendimento multidisciplinar" (art. 31).

Portanto, a investigação psicossocial, além de sua fundamental importância para a atuação judicial, servirá de orientação e esclarecimento às partes, mostrando-lhes que a violência não é modo de solução de conflitos e que jamais poderá ser tolerada.

A atuação da equipe não visa um tratamento "terapêutico" das vítimas, muito utilizado no passado para "ensinar" as mulheres a obedecer a seus maridos [24]. A intervenção busca uma reflexão crítica dos papéis sociais impostos a homens e mulheres, sob uma perspectiva de gênero, abordando a naturalização social da violência.

Advirta-se, ainda, que a finalidade da intervenção não é incentivar a vítima a representar. Busca-se, mediante orientação especializada, que ela encontre a melhor maneira de reparar o dano resultante da violência e impedir sua repetição. A própria intervenção multidisciplinar pode ser suficiente para diminuir a relação de dominação e a violência familiar.

Essa é, sem dúvida, uma forma extrapenal de se fazer o controle social das condutas indesejáveis, nos casos que o legislador faculta às vítimas a representação. Atende tanto às expectativas dos criminalistas partidários da intervenção penal mínima, que buscam soluções alternativas para o controle social, quanto do movimento feminista, que sugere o empoderamento das mulheres, através de orientação especializada.

5.3. A manifestação final do Ministério Público

Por fim, encerrado o acompanhamento psicossocial, será designada outra audiência, desta feita para que a vítima possa se manifestar definitivamente sobre a renúncia. Se insistir no encerramento do caso, deverá a Justiça arquivar o processo.

Nada impede que esta última audiência seja efetuada pelo promotor de justiça, sem a presença do juiz (nos moldes do projeto de Samambaia), já que é o Ministério Público, na qualidade de titular exclusivo da ação penal pública, o destinatário natural da renúncia. Em qualquer hipótese, porém, a vítima deverá estar acompanhada de advogado, ou defensor público.

5.4. A presença do acusado e seu defensor na audiência

A Lei não prevê a presença do acusado na audiência do art. 16.

O Juiz Guilherme de Souza Nucci [25] observa, porém, que os acusados devem ser intimados em prol da ampla defesa, porque "o ato de retratação da representação pode implicar na extinção da punibilidade, logo, de interesse do agente do delito".

De forma contrária, opina a Desembargadora gaúcha, Maria Berenice Dias [26]: "não se justifica a intimação do agressor ou de seu defensor, não se visualizando qualquer ofensa ao princípio da ampla defesa. Aliás, de todo descabida a presença quer do agressor, quer de seu advogado que, se estiverem nas dependências do fórum, não poderá participar da solenidade".

Ambos tem sua parcela de razão. Vítima e agressor devem ser intimados, porém não devem participar em conjunto na audiência.

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Primeiramente, a vítima deve ser ouvida em separado, na presença apenas de seu advogado, do juiz e do promotor de justiça. O acusado ou seu advogado não participará do referido ato, uma vez que eventual representação ou renúncia será dirigida apenas ao titular da ação penal, possibilitando ou não o início do processo. Essa fase é de interesse exclusivo do Estado e das vítimas.

Isso se dá porque, em nosso sistema processual penal, têm as vítimas o direito de representar pessoal e diretamente às autoridades, sem interferência de terceiros, muito menos dos próprios acusados. Essa é a inteligência do art. 39 e parágrafos, do CPP.

Assim, a ausência do agressor não ofende seu direito de defesa, porque não lhe compete "fiscalizar" a manifestação da vítima, nem mesmo através de defensor.

Num segundo momento, logo após a audiência com a vítima, o acusado terá ciência da decisão, que lhe será comunicada pelo juiz e pelo promotor de justiça, os quais devem "velar para que sua presença não sirva de instrumento de constrangimento para a ofendida", como advertem os Promotores paulistas Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto [27]. Caso a vítima tenha representado, desistindo da renúncia, será o agressor advertido das conseqüências legais de qualquer ato de represália contra ela. A admoestação deverá ser feita também se os autos forem arquivados em decorrência da renúncia da vítima.

Quando, porém, a vítima insistir na renúncia e estiver presente algum fator de risco, será o acusado comunicado da suspensão da audiência, na forma do item anterior, e proposta, se necessária, sua participação em algum programa multidisciplinar. Neste caso, se o acusado não estiver presente, deverá ser intimado para outra audiência, sem prejuízo do encaminhamento imediato da vítima ao atendimento especializado.

O contato do acusado com o juiz e o promotor, em todos os casos, é importante para evitar o regresso ao sistema dos JECrim, em que os acusados se recusavam a atender intimações e ainda determinavam às vítimas que "retirassem a queixa". Somente elas eram expostas publicamente, na polícia e, mais tarde, na Justiça, enquanto os agressores, que sequer prestavam esclarecimentos, eram premiados com o arquivamento judicial. Essa sempre foi a lógica do sistema patriarcal: preservar o "chefe de família" a todo custo e incentivar a vítima a renunciar, para não expô-lo. A Lei Maria da Penha não mais admite essa anomalia.

5.5. Quando realizar a audiência do artigo 16

Apenas quando as vítimas manifestarem, voluntariamente, interesse em renunciar, é que o juiz irá designar a audiência. Tal manifestação deve ser feita antes do recebimento da denúncia.

É defeso à Justiça contatar a vítima através de oficial de justiça, por correspondência ou telefone ou por qualquer outro meio, sem a manifestação dela, espontânea e prévia, no sentido de renunciar. Quem deve procurar as autoridades para o encerramento do caso é a vítima, e não o Estado. Este deve apenas cumprir seu dever legal.

Portanto, se a vítima, por livre e espontânea vontade, quiser procurar a polícia, o Ministério Público ou a Justiça para encerrar o caso, deverá fazê-lo antes do recebimento da denúncia. Depois do início do processo, a responsabilidade estatal será exclusiva para apurar a notícia criminosa e aplicar a lei penal como de direito.

Alguns promotores e juizes estão promovendo audiências em todos os casos, mesmo sem o pedido das vítimas, para questioná-las sobre seu desejo de renunciar ao processo (?!). Com esse procedimento equivocado, confundem as disposições da Lei nº 9.099/95 com as da Lei nº 11.340/06, que são diametralmente opostas e incompatíveis entre si.

Isso se dá porque a Lei n° 9099/95 (JECrim), conforme visto, previa a realização de uma audiência preliminar na qual, após a tentativa de conciliação e composição de danos, as vítimas exerceriam seu direito de "ratificar a representação". Na ausência das vítimas, restavam os procedimentos arquivados por "renúncia tácita", instituto popularizado nos juizados especiais criminais, que, como sabemos, passaram a arquivar liminarmente mais de 90% de todas as causas relacionadas à violência doméstica e familiar.

Tal disposição, porém, não mais se aplica às causas de violência doméstica contra a mulher, em razão da expressa derrogação da Lei 9099/95, operada pelo art. 41 da Lei 11340/06.

Além de tudo, o art. 16 ora comentado, tem disposição frontalmente contrária à da Lei derrogada, com a finalidade clara de abolir a renúncia extrajudicial e a renúncia tácita.

A diferença de tratamento é patente. Enquanto para a Lei n° 9099/95, que visava evitar o máximo possível o processo criminal, a vítima devia comparecer em juízo para ratificar a representação, no novo sistema de proteção integral às vítimas, instituído pela Lei nº 11.340/06, é a renúncia à representação que deve ser ratificada em Juízo.

Sobre o assunto, opina Maria Berenice Dias [28]:

"de todo descabido que o magistrado, antes de receber a denúncia, intime a vítima para que ela se manifeste sobre o eventual desejo de desistir da representação apresentada na polícia. Tal providência, além de não estar prevista na lei, retardaria em muito o início da ação penal e desconstruiria a nova sistemática que veio exatamente para não permitir que a vítima sinta-se pressionada a abrir mão do direito de processar o seu agressor, como ocorria nos juizados especiais".

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal tem repudiado as audiências sem requerimento das vítimas. Nas palavras cristalinas do Desembargador Mário Machado:

"Ementa Reclamação. Lei nº 11.343/2006. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Decisão do juiz pela qual, oferecida a denúncia pelo ministério público, determina o seu arquivamento em pasta própria, em cartório, aguardando-se o inquérito policial. Inexistência de recurso próprio. Cabimento da reclamação. Procedência do pedido.

Admissível a reclamação intentada com base no artigo 184, I, do Regimento Interno, inexistindo contra a decisão recurso específico.

Com o artigo 16 da lei nº 11.343/2006 colima-se fiscalize o juiz a renúncia, na verdade a retratação da representação da ofendida para evitar que ela ocorra por ingerência e força do agressor. Nada mais. Em nenhum momento, cogitou-se de impor realização de audiência para a ofendida ratificar a representação ou confirmar o seu interesse no prosseguimento. Somente havendo pedido expresso da ofendida ou evidência da sua intenção de retratar-se, e desde que antes do recebimento da denúncia, é que designará o juiz audiência para, ouvido o ministério público, admitir, se o caso, a retratação da representação.

No caso, oferecida pelo ministério público a denúncia, a qual não depende de conclusão do procedimento policial, e não havendo qualquer evidência de ocasional desejo de a vítima retratar-se da representação que ofertou, impunha-se ao magistrado dispor acerca da denúncia, como de direito, e não determinar o seu arquivamento em pasta própria, em cartório, aguardando-se o inquérito policial.

Oferecida a denúncia, deve ser logo apreciada na forma da lei. O arquivamento, enquanto se aguarda o inquérito, não encontra amparo legal e pode ser prejudicial às partes, principalmente à vítima. Sem dúvida louvável o propósito de se dar tempo para eventual reconciliação das partes. Mas não é regra que ela ocorra e qualquer demora na implementação das providências e do procedimento insertos na nova lei pode resultar em graves e até mesmo irreparáveis prejuízos. A lei nº 11.340/2006 buscou precisamente mecanismos mais ágeis de proteção à mulher e a decisão reclamada isso contraria.

Pedido julgado procedente, proclamada desnecessária prévia audiência da vítima para ratificar a representação ou confirmar o seu interesse no prosseguimento, determinada a imediata apreciação da denúncia oferecida, como de direito, prosseguindo-se na forma da lei. Decisão Prover. Unânime". [29]

5.5.1 Os crimes passíveis de renúncia

O artigo 16 é expresso: a renúncia somente pode ocorrer nos crimes de ação penal pública condicionada à representação. Estes são facilmente identificáveis na legislação penal, mediante a expressão: "(...) somente se procede mediante representação" (art. 100, § 1°, do Código Penal). Os demais são de ação penal pública incondicionada (ressalvando-se os casos de ação penal privada).

Não existem outras hipóteses. Se não houver qualquer menção legal determinando o contrário, o crime será de ação penal pública incondicionada, e não depende de representação.

O crime dependente de representação mais comumente denunciado é o de ameaça (art. 147). No entanto, poderão ocorrer alguns outros mais raros (menos registrados), como perigo de contágio venéreo (art. 130, CP), violação da correspondência (art. 151, CP), divulgação de segredo (art. 153, CP), furto de coisa comum (art. 156, CP) ou qualquer crime contra o patrimônio previsto no Titulo II do Código Penal, cometido sem violência ou grave ameaça (art. 182, incs. I, II e III, c/c art. 183, inc. I, CP) e, ainda, contra os costumes se praticado contra vítima pobre (art. 225, § 2º, CP).

Os crimes de ação penal privada podem perfeitamente justificar a audiência do art. 16, já que seu processamento depende também da vontade das vítimas. Entram nesta categoria os crimes contra a honra (arts. 138, 139 e 140, CP), contra os costumes (arts. 213, 214, 215, 216, 216-A e 218, com exceção daqueles cometidos com abuso do pátrio poder ou pelo padrasto, art. 225, § 1º, inc. II, CP), de dano simples (art. 163, caput, CP), de fraude à execução (art. 179, CP), de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (art. 236, CP) e de exercício arbitrário das próprias razões, se cometido sem violência (art. 345, parágrafo único, CP).

Verifica-se, assim, que os crimes passíveis de renúncia mais comuns são caracterizados pela violência psicológica, representada, por exemplo, pelo crime de ameaça, de injúria (humilhações e desqualificações, por exemplo) ou pela contravenção penal de perturbação da tranqüilidade (perseguição, ciúmes ou controle excessivo).

A análise de tais fatos exige grande responsabilidade dos operadores do direito, mormente porque a sociedade tende a desconsiderá-los, classificando-os como "chiliques femininos". É importante ressaltar que eles podem causar maior sofrimento e dano, como depressão, baixa auto-estima e tentativa de suicídio do que agressões físicas. Nessas ocasiões, por vergonha ou por exigência do agressor, as vítimas tendem a se isolar socialmente, evitando até os parentes. As marcas não são visíveis, mas merecem a atenção respeitosa e interessada do Estado.

Chama a atenção, por fim, o fato de que nenhum crime praticado com violência física ou grave ameaça, com exceção da ameaça em sua forma simples (art. 147, CP), depende de representação.

Assim, são de ação penal incondicionada os crimes de lesão qualificados pela violência doméstica (art. 129, § 9°, CP), de dano qualificado pela violência, grave ameaça ou com emprego de substância inflamável ou explosiva (art. 163, parágrafo único, incs. I e II, CP), contra o patrimônio, praticado com violência ou grave ameaça (art. art. 183, inc. I, CP) ou, ainda, de exercício arbitrário das próprias razões, com emprego de violência (art. 345, parágrafo único, CP). Em nenhum destes casos as vítimas podem renunciar ao processo.

Essa coerência legislativa e jurídica é mais um argumento que suplanta os que ainda insistem em exigir representação das mulheres vítimas de espancamentos. Por isso, o art. 16 jamais pode ser interpretado como se tivesse mantido a representação para a lesão corporal.

5.5.2. O papel da Polícia

Uma vez registrada a ocorrência policial pela ofendida, deverá a polícia exercer sua obrigação investigatória, sem fazer qualquer questionamento sobre seu interesse nas investigações ou no processo.

A representação não se submete a formas ou modelos. A manifestação inequívoca da vítima no sentido de processar o acusado é suficiente. O simples registro da ocorrência policial, requerido pela vítima, é uma representação, como está pacífico na jurisprudência.

Assim, se a vítima procurar a delegacia para denunciar o crime, é defeso à polícia perguntar se ela quer representar. A própria presença dela na delegacia já caracteriza uma representação. Ora, quem procura a polícia busca o quê? É preciso acabar de uma vez por todas com os "incentivos" para que as vítimas desistam do caso.

Caso a vítima, voluntariamente, procurar a polícia para renunciar, deverá o delegado encaminhá-la ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário, que providenciará a audiência prevista no art. 16. As investigações policiais somente serão paralisadas por autorização do juiz ou do promotor de justiça.

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Sobre o autor
Fausto Rodrigues de Lima

promotor de Justiça do Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fausto Rodrigues. A renúncia das vítimas e os fatores de risco à violência doméstica.: Da construção à aplicação do art. 16 da Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1615, 3 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10718. Acesso em: 5 nov. 2024.

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