Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

O discurso jurídico como um caso especial do discurso prático geral.

Uma análise da teoria discursiva do Direito de Robert Alexy

Exibindo página 2 de 3
Agenda 01/12/2007 às 00:00

3 A tese do caso especial

A tese do caso especial advoga que o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral. Como já foi ressaltado, isso ocorre porque o discurso jurídico compartilha com o discurso prático geral de certas semelhanças, ao mesmo tempo em que se diferencia do mesmo em alguns aspectos cruciais. As semelhanças residem no fato de tanto um quanto outro lidarem com questões práticas e suas proposições erigirem uma pretensão de correção. A diferença crucial é a de que a pretensão de correção erigida por uma proposição jurídica é limitada, no sentido de que ela deve ser considerada correta dentro do ordenamento jurídico vigente e suas condições limitadoras (basicamente a lei, os precedentes e a dogmática).

Alexy em nenhum momento é claro quanto ao que ele entende por discurso jurídico. Em um nível mais amplo ele seria um discurso prático geral operando sob condições limitadoras. Em um nível mais estrito, ele seria um procedimento intermédio entre a criação estatal do Direito e o processo judicial. [54] Isso não é de todo relevante, já que:

la tesis del caso especial puede ser relativa tanto a los procedimientos judiciales como a la argumentación jurídica en cuanto tal, esto es, la argumentación jurídica tal como tiene lugar, por ejemplo, en los libros, artículos o discusiones académicas. La primera se encuentra institucionalizada, mientras que la segunda no. [55]

Dessa forma, embora haja diversos tipos de discurso jurídico, desde aquele que se desenrola na dogmática como os que se desenvolvem no tribunal ou numa sala de aula, todos eles, ao mesmo tempo em que se diferenciam em vários pontos, como as restrições institucionais a que alguns estão submetidos, compartilham de dois pontos essenciais: em todas as formas de argumentação o argumento é, ao menos em parte, jurídico, e em todos eles nem todas as questões estão abertas ao debate.

Assim, como há diversos tipos de discurso jurídico, também haverá diferenças entre eles concernentes à extensão e aos tipos de limitações. Uma discussão acadêmica é mais livre, enquanto num processo os limites são maiores. A cada nível as restrições e, conseqüentemente, a diferenciação e o afastamento do discurso jurídico com relação ao discurso prático geral aumentam, embora nunca se rompa o vínculo estabelecido entre os dois pela pretensão de correção que ambos possuem.

O conceito central da tese do caso especial, portanto, é que as afirmações jurídicas, em todo e qualquer nível, sempre erigem uma pretensão de correção. A pretensão de correção implícita nas proposições jurídicas é tornada explícita pela institucionalização do dever dos juízes de justificarem suas decisões. [56] Mas, diferentemente da pretensão de correção do discurso prático geral, a pretensão de correção jurídica reivindica que, mesmo sujeita às limitações estabelecidas por essas condições limitadoras, a afirmação é racionalmente justificável. Um juiz deverá, portanto, de uma forma ou outra, demonstrar que sua sentença não se baseia em convicções pessoais, mas que pode ser racionalmente justificada no contexto da ordem vigente. E, embora a pretensão de correção se manifeste de maneira mais explícita nas discussões travadas num tribunal, já que ali se desenvolvem longas e intensas discussões sobre a correção de uma decisão (que são, além disso, entendidas pelos participantes como uma busca pela decisão correta), [57] os argumentos justificativos são apresentados em todas as formas de discurso jurídico.

A tese do caso especial, dessa forma, estaria errada caso se comprovasse que o discurso jurídico não lida com questões práticas ou que os limites que regem as discussões jurídicas tornam injustificável designá-las como discursos. Eles seriam algo qualitativamente diferente de um discurso prático geral.

Quanto ao primeiro argumento, de que o discurso jurídico não trata de questões práticas, é bastante óbvio que, embora em algumas matérias seu conteúdo é teórico e descritivo, na maioria das vezes ele é orientado para a resolução de questões práticas. O problema, obviamente, não é tão simples. No entanto, não será debatido aqui. [58] Para os objetivos do artigo basta a consideração, bastante genérica, de que sempre que uma norma jurídica é desafiada, é conceitualmente necessário entrar num discurso prático. [59]

Já o argumento de que o discurso jurídico é algo qualitativamente diferente de um discurso prático geral se assenta, basicamente, sob três pressupostos: 1) o de que as discussões jurídicas ocorrem sob limitações muito fortes; 2) o de que as partes num processo buscam mais a vantagem própria do que a correção da decisão; e 3) o fato de muitas decisões terem de ser tomadas com base numa lei injusta ou irracional.

Quanto à primeira questão, deve-se admitir que há limitações, [60] como as impostas pelas regras processuais, prazos, o fato de não serem as partes a participarem, mas sim seus representantes legais, entre outras, que em princípio nos inclinariam a considerar o discurso jurídico como algo completamente distinto do discurso prático geral. Quanto a isso pode se levantar que, embora as condições a que estão submetidas as partes fazem do discurso que elas estão empreendendo algo inequivocamente diferente do que ocorre no âmbito de um discurso prático geral, é nisso que consiste a tese do caso especial. Ela nem afirma que o discurso jurídico está dissolvido em um discurso prático geral, e nem que ele é totalmente independente do mesmo, mas sim que, juntamente com semelhanças, há peculiaridades, como as condições limitadoras citadas, que lhe dão um caráter distinto. [61]

Quanto à segunda questão, se parece quase indiscutível que no âmbito da doutrina ou até mesmo da sala de aula a pretensão de correção está sempre presente, no caso de um litígio envolvendo partes e seus respectivos advogados a questão é mais complicada. É bastante óbvio que geralmente (se não sempre) as partes num processo buscam o próprio interesse. O processo, ao menos da perspectiva dos litigantes, não é um processo de busca cooperativa pela solução mais justa, mas sim um conflito em que cada parte quer sair vitoriosa. Isso, entretanto, não afeta a tese do caso especial por uma série de razões.

Em primeiro lugar, como salienta o próprio Alexy:

This claim to correctness is not rendered invalid by the fact that the person justifying some position is only following his or her subjective interests. What holds true here is similar to the case of promising. The fact that in making a promise I may secretly intend not to keep it, in no way affects the obligation which has objectively come into existence as a result of the promise. [62]

Embora subjetivamente a parte busque seu próprio interesse e o advogado freqüentemente faça uso de figuras retóricas para influenciar o juiz a seu favor, isso não elimina o caráter objetivo da pretensão de correção. A subjetividade das partes não é argumento para eliminar a pretensão de correção; embora elas não desejem convencer uma à outra, pretendem falar de um modo que toda pessoa racional teria de concordar com seu ponto de vista. "Elas ao menos pretendem estar apresentando argumentos tais que obteriam concordância em condições ideais." [63] Uma argumentação num tribunal é fundamentalmente diferente daquela que acontece numa negociação que visa um acordo. Mesmo que, no fundo, estejam perseguindo seus interesses, a forma da argumentação utilizada explicita que as razões que são apresentadas a favor de certa decisão poderiam, ao menos em princípio, ser incluídas, por exemplo, num tratado jurídico-científico. O fato de muitos argumentos utilizados pelas partes serem utilizados inclusive em decisões posteriores deixa mais explícito o caráter discursivo mesmo de uma discussão que ocorre no âmbito de um processo.

Em último caso, igualmente, contribuem a um discurso que da perspectiva do juiz serve à obtenção de um juízo imparcial. Isso não reduz os participantes a meras fontes de informação. Pois se o tribunal quer decidir corretamente, deve ouvir todos argumentos, e se a correção da sua decisão está sujeita a controle, o tribunal deverá justificar seu juízo ante os participantes e ante o público geral e jurídico. Por isso, está submetido aos discursos frente aos tribunais superiores, à profissão jurídica e ao público. [64]

Se as partes, no entanto, devem ao menos fingir que seus argumentos estão construídos de maneira tal que, sob condições ideais, poderiam encontrar o acordo de todos, [65] não seria isso mais uma condição para realizar uma ação estratégica bem sucedida, ao invés de ser uma condição para a existência de um discurso? Nesse sentido, a pretensão de correção seria mais uma pretensão de seriedade, isto é, um "jogo" onde "as partes – ou seus representantes – propõem seus argumentos levando a sério as regras do ‘jogo’ e seu papel nele." [66]

A pretensão de correção, no entanto, não é uma mera condição de sucesso, porém uma condição do jogo. [67] Num processo em que as partes argumentassem procurando convencer o juiz a proferir uma decisão que lhes fosse favorável, mas não utilizassem para isso argumentos que visassem que essa decisão fosse correta ou justa, e o juiz desse uma sentença do tipo: "Dou uma vantagem ao Sr. N, porque ele me deixou mais bem disposto a seu favor", o jogo que foi feito não poderia ser caracterizado como uma negociação jurídica, mesmo que aconteça no contexto de um sistema jurídico. [68]

Por fim, resta analisar o terceiro argumento contra a tese do caso especial, qual seja, o que afirma que uma discussão jurídica não pode ser entendida como um discurso, principalmente pela vinculação da argumentação jurídica com a lei. Essa conclusão seria facilmente demonstrável quando uma sentença tem que se basear numa lei injusta ou irracional. Nesse caso, não haveria pretensão de correção, desaparecendo, portanto, o principal elemento da conexão entre o discurso jurídico e o discurso prático geral. Caso esse argumento esteja correto, aquele seria algo distinto deste, já que a racionalidade de uma argumentação baseada numa lei irracional não seria algo menos, mas algo diferente do que a racionalidade substantiva que tem lugar de acordo com as regras do discurso racional prático.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Esse argumento falha, [69] contudo, por compreender somente de maneira parcial a pretensão de correção. Pois deve-se distinguir entre dois aspectos da pretensão de correção levantada pelas decisões jurídicas. O primeiro aspecto se refere ao fato de a decisão ser corretamente justificada, quando se parte do Direito vigente. O segundo aspecto se relaciona com o fato de o Direito válido ser racional ou justo. A pretensão de correção levantada pelas decisões judiciais contém ambos aspectos. [70]

Muitas vezes, devido a princípios formais como segurança jurídica e separação dos poderes, é necessário basear a decisão numa lei desse tipo. No entanto, isso de forma alguma altera seus defeitos. Apesar da falta de uma pretensão de correção com respeito a certa decisão não tirar dessa decisão seu caráter como decisão válida, ela sempre será defeituosa em mais do que um sentido moral relevante. [71] Se essa decisão deve ser tomada com base nessa lei, isso não ocorre por força da pretensão de correção, mas apesar da pretensão de correção.

Essa limitação também não leva a conclusão de que a tese do caso especial pressupõe a justiça do Direito positivo, como Atienza aponta. [72] Pois embora quando uma decisão deve se basear numa lei injusta seja impossível satisfazer os dois aspectos da pretensão de correção, a única conclusão que podemos tirar é que não é possível argumentar racionalmente com base numa lei irracional. Mas isso não retira o caráter ideal da pretensão de correção, pois, embora o espaço para o discurso jurídico seja reduzido quase a zero no âmbito de utilização dessa lei, o inter-relacionamento entre a racionalidade discursiva e o Direito não se rompe. "A racionalidade discursiva não pode mais estabelecer o conteúdo da decisão, porém forma a razão para sua falibilidade e a medida para sua crítica." [73]

Com isso foi feito um avanço importante, e deve-se agora vislumbrar a integração da argumentação jurídica no inter-relacionamento da racionalidade de um sistema jurídico mais abrangente. Esse tema será abordado a seguir.


4 Conseqüências da tese do caso especial

Neste capítulo serão diferenciadas tanto as conseqüências da tese do caso especial como de seu principal elemento, a pretensão de correção. A pretensão de correção que está conectada ao Direito não só faz dele um caso especial do discurso prático geral como também, segundo Alexy, estabelece uma conexão conceitualmente necessária entre Direito e moral, no que sua teoria se torna essencialmente não-positivista, pois o positivismo jurídico tem na separação conceitual entre Direito e moral (além de na tese das fontes sociais) um de seus principais alicerces. Por ela, o Direito é visto como um conjunto de normas não necessariamente justas, mas, como obra de homens que podem errar, falíveis. [74]

A partir disso será feita uma análise da maneira como a pretensão de correção conduz a uma conexão entre Direito e moral, [75] e de que forma a tese do caso especial leva à conclusão de que tal moral deve ser concebida como universalista.

Num segundo e terceiro momento, será tratado tanto a necessidade do discurso jurídico do ponto de vista do discurso prático geral, como a necessidade do discurso prático geral do ponto de vista do discurso jurídico. Essa dupla necessidade, será visto, é conseqüência de uma dupla vulnerabilidade (ou limitação) constitutiva tanto de um como de outro, e são facilmente deduzidas da própria estrutura da tese do caso especial que, se por um lado deixa manifesto que argumentos práticos gerais são necessários na argumentação jurídica, por outro evidencia a própria necessidade de argumentos jurídicos (e, portanto, da instituição "Direito") a fim de resolver questões práticas surgidas na sociedade (no contexto do discurso prático geral, portanto). Assim, será demonstrado que o Direito deve ser visto como a institucionalização da razão prática, e, a fim de que ele não perca suas raízes nesta, os argumentos práticos gerais devem ser integrados aos argumentos jurídicos a todo o momento.

4.1 Conexão conceitualmente necessária entre Direito e moral

A pretensão de correção implica uma pretensão de justificação, ou fundamentabilidade. Apesar de diversas justificações serem possíveis, a essência de todas elas é a mesma, já que, quem justifica algo:

at least pretends that he accepts the other person as an equal partner, at least in discourse and that he neither exercises coercion himself nor is supported by coercion exercised by others. He furthermore claims to be able to defend his thesis not only against his partner in discourse but against everyone. These claims to equality and universality form the basis of a procedural ethic built on the idea of generalizability. This is the discourse-ethic. [76]

A conexão que a teoria do discurso cria entre correção, justificação e generalizabilidade é transferida para o Direito pela tese do caso especial. Dessa forma, é estabelecida uma conexão necessária entre o Direito e uma moralidade universalista. O argumento, dessa forma, pode ser sintetizado da seguinte maneira: quem afirma que algo é correto implicitamente aceita que pode justificar isso; quem pretende justificar algo deve aceitar diversas premissas inerentes ao processo de justificação, como a aceitação do outro como um parceiro de discurso; essas premissas ligam o ato de justificar a uma moralidade universalista construída sob a idéia de generalizabilidade e universalizabilidade; como, da mesma forma que no discurso prático, no discurso jurídico está necessariamente presente uma pretensão de correção, o Direito está necessariamente ligado, ao menos idealmente, a essa moralidade universalista.

A conexão que Alexy estabeleceu entre Direito e moral foi criticada severamente.

Uma das críticas veio de Habermas, [77] que afirmou que a tese do caso especial assumia que havia de fato sempre uma consonância entre moral e Direito. Mas a tese de Alexy assume, entretanto, somente que tal consonância está sempre implícita nas pretensões do Direito. A conexão entre Direito e moral é só uma pretensão, não é exigido que essa conexão sempre se cumpra.

A principal crítica dirigida à conexão entre Direito e moral é que Alexy, ao idealizar demasiadamente as categorias jurídicas do Estado contemporâneo, estendeu a moralidade implícita nesse para todos os demais sistemas jurídicos. Essa crítica foi expressa da seguinte maneira por Bulygin:

The thesis of the necessary connection between law and morality implies that there is a conceptual link between any legal system, on the one hand, and one and the same morality, not just any moral system, on the other. In the case of Alexy it is the universalistic morality, based on a procedural discourse ethics. [78]

Parece bastante óbvio, no entanto, que a maioria dos sistemas jurídicos historicamente existentes não compartilham dessa moralidade. Se essa crítica estivesse correta, então ou a tese da conexão entre Direito e moral estaria equivocada, ou bem o que Alexy entende por Direito é um fenômeno que só ocorreu na modernidade. A crítica de Bulygin, entretanto, equivoca-se num ponto chave. A fim de provar isso, o argumento da conexão deve ser refinado: em primeiro lugar, é um erro conceder que o Direito está conectado com uma moralidade concreta, determinada; em segundo lugar, é igualmente um erro afirmar-se que o Direito está conectado com uma moral, qualquer que ela seja. A fim de restringir o campo de qual moralidade deve estar conectada ao Direito, deve-se interpretar a pretensão de correção moral que uma proposição jurídica levanta num sentido forte. Interpretada nesse sentido, ela pode ser preenchida somente se o julgamento é justificável sob a base de uma moralidade correta, de uma moralidade que é justificável. A idéia de correção demanda a interpretação forte. Um julgamento moral que é justificável sob a base de uma moralidade que não é ela mesma justificável não é correto. Dessa maneira, a conexão necessária entre o Direito e a moral correta é criada no sentido de que a pretensão de correção inclui uma pretensão de correção moral que se estende também aos princípios subjacentes. [79] Como esclarece Alexy, portanto, "a necessary connection between law and morality does not presuppose a morality actually shared by all. It is compatible with moral dispute." [80]

A fim de se obter uma conexão entre Direito e moralidade, portanto, não é necessário que haja uma mesma moralidade, objetiva, compartilhada por todos. A idéia de moralidade correta, a prática de uma argumentação racional sobre o que é moralmente correto, e a possibilidade de construir uma racionalidade prática basta. [81] Se o Direito é constituído por uma pretensão de correção, e essa implica uma pretensão de justificação, quem justifica algo necessariamente terá que aceitar a generalizabilidade e universalizabilidade como padrão de argumentação. Nesse sentido, uma moralidade correta pode abarcar várias moralidades e ser, portanto, compatível com ordenamentos jurídicos que possuam moralidades diversas. Essa conexão qualificatória não conduz, portanto, a uma conexão necessária do Direito com uma determinada moral concreta designada como correta, mas sim a uma conexão necessária do Direito com a idéia de uma moral correta no sentido de uma moral fundamentada. Esta idéia não é, de modo algum, vazia. Sua vinculação com o Direito significa que a ele pertence não só as regras especiais da fundamentação jurídica, como também as regras gerais da argumentação prática geral. Além disso, a idéia de uma moral correta, da mesma forma que a única resposta correta, tem o caráter de uma idéia regulativa no sentido de um objetivo a aspirar. Nessa medida, a pretensão de correção conduz a uma dimensão ideal necessariamente vinculada com o Direito. [82]

A tese de Alexy, portanto, leva à conclusão de que o Direito não poder ser corretamente entendido sem referências à correção de suas decisões. Um sistema jurídico possui uma dimensão ideal que o liga à idéia de justiça, [83] pois, como inclusive Radbruch já havia assinalado nos seus últimos escritos, é simplesmente impossível "definir el derecho, inclusive el derecho positivo, de otra manera que como un orden y estatuto, que de acuerdo con su sentido están determinados a servir a la justicia." [84]

4.2 Direito como um sistema de regras, princípios e procedimentos

A teoria de Alexy pretende lançar bases sólidas para uma teoria não positivista do Direito. Isso é feito basicamente pela já vista conexão conceitualmente necessária entre Direito e moral. Porém, essa conexão demonstra somente que o positivismo falha em sua tentativa de compreender a natureza do Direito, mas ainda não oferece um novo projeto para substituí-lo. Em grande parte, uma nova teoria do Direito já se fazia necessária após a "Teoria da Argumentação Jurídica", cujos fundamentos não poderiam ser encontrados numa teoria positivista do Direito, [85] como a teoria da argumentação de MacCormick, por ele considerada um complemento à teoria de Hart. [86] Essa teoria, ao mesmo tempo que parte da distinção entre regras e princípios de Dworkin, [87] a aprofunda, adicionando um novo nível a esses dois. Assim, o Direito, para Alexy, deve ser visto como um sistema de regras, princípios e procedimentos.

Aqui, é importante somente uma breve síntese sobre o conceito de regra e princípio. [88] Tanto regras como princípios são espécies de um gênero maior, normas, e "ambos pueden ser formulados con la ayuda de las expresiones deónticas básicas del mandato, la permisión y la prohibición." [89] A diferença fundamental é que, para Alexy, os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandatos de otimização. Já as regras são normas que só podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então deve ser feito exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Nesse sentido, as regras contêm determinações no âmbito do fática e juridicamente possível.

Agora, o Direito não pode ser concebido de forma estática, somente como um conjunto de normas. [90] A esse lado passivo, deve ser adicionado um lado ativo: o dos procedimentos. [91] Este lado surge da necessidade de fornecer uma resposta à uma indagação prática bastante simples: com relação a um problema prático, como chegar a uma única resposta correta que seja, além do mais, vinculante? No âmbito do discurso prático geral isso não é possível basicamente por dois motivos: as regras do discurso não garantem que se possa alcançar uma única solução correta para cada questão prática (problema do conteúdo), nem tampouco que, caso se alcançasse esse acordo, todo o mundo estaria disposto a segui-lo (problema da imposição). As razões para o primeiro ponto são basicamente três: as regras do discurso só podem ser cumpridas de modo aproximado; nem todos os passos da argumentação estão determinados; todo discurso deve começar a partir das convicções normativas dos participantes, que estão determinadas historicamente e são, além do mais, variáveis. A razão para o segundo ponto reside numa distinção, que Alexy toma de Kant, entre o principium diudicationis e o principium executionis, isto é, entre a formação do juízo e a formação da vontade: saber o que é certo não significa necessariamente agir nesse sentido.

O problema da imposição faz surgir a necessidade do Direito, ou seja, de um sistema coercitivo que estabeleça regras dotadas de sanção para quem não estiver disposto a segui-las de bom grado. [92] Já a resolução do problema do conteúdo passa, em primeiro lugar, pelo estabelecimento de alguns resultados discursivamente necessários e outros discursivamente impossíveis. Os mais importantes dentre os primeiros são os direitos humanos, os quais Alexy procura fundamentar sobre a base da teoria do discurso. [93] No entanto, o espaço do discursivamente possível continua demasiado grande, e nem tudo que pode ser justificado discursivamente pode valer juridicamente. Isso levanta a necessidade de procedimentos jurídicos que garantam, ao final, somente um resultado definitivo e obrigatório. [94] Alexy distingue três tipos de procedimentos que seria preciso acrescentar ao procedimento do discurso prático geral: a criação estatal do Direito, o discurso jurídico e o processo judicial.

A passagem do primeiro para o segundo ocorre devido a ampla gama de soluções para uma questão prática que podem ser consideradas discursivamente possíveis. Assim, através da criação estatal de normas, certos padrões são firmados em detrimento de outros. Porém, também as normas não especificam suficientemente qual seria a solução obrigatória, seja pelo aspecto vago da linguagem jurídica, a imprecisão das regras do método jurídico ou a impossibilidade de prever todos as constelações possíveis de casos. O terceiro procedimento é o discurso jurídico, [95] marcado pelas condições limitadoras já referidas. Aqui o grau do discursivamente possível é consideravelmente menor, mas a grande controvérsia doutrinária, empiricamente verificável, demonstra que ainda é necessário um quarto procedimento, em que o elemento decisório novamente está ao lado da argumentação: o procedimento judicial. Findo todo esse processo, só restará uma resposta para ser considerada obrigatória.

Nesse sistema de quatro procedimentos, dois são institucionalizados, e dois não. O discurso prático geral e a argumentação dogmática em geral pertencem ao grupo dos não institucionalizados, e a criação legislativa e o processo, aos institucionalizados. A principal diferença entre um e outro é que nos procedimentos institucionalizados, que surgem para resolver o problema dos debates potencialmente intermináveis que ocorrem nos momentos anteriores, é necessário se chegar a uma resposta: neles não só se argumenta, também se decide. [96] A fim de que isso ocorra, regras e limitações são impostas aos participantes, como as regras legislativas e as regras processuais. [97]

É importante ressaltar que a passagem de um nível para o outro não deve ser considerada como um abandono dos princípios do discurso e seus ideais: eles devem ser considerados, muito mais, como necessários para a realização destes e justificados com referência a eles. O nível seguinte surge não só para sanar falhas do anterior, mas é exigido por ele por poder chegar a resultados que o outro não conseguiria. [98] Por exemplo, no âmbito do discurso prático geral tanto o alcance do que é discursivamente possível, que é muito amplo, como também a necessidade de resolver muitas questões práticas num curto espaço de tempo constituem bons motivos para a inserção de limitações. Assim, a necessidade de decisão, a correção relativa, o respeito à lei e aos precedentes e a consideração pelos dogmas jurídicos (no sentido de verdades provisórias) fazem com que uma decisão possa ser alcançada mesmo havendo divergências, o que não aconteceria num discurso prático geral, onde a discussão poderia se tornar infindável. Todavia, como já foi salientado, essas limitações devem ser entendidas no sentido de assegurar a possibilidade do discurso prático geral. [99]

É por esse lado ativo do Direito que fica clara a ligação entre discurso prático geral e discurso jurídico. Concebê-lo também dessa forma dinâmica é essencial para traçarmos tanto sua origem como também a sua necessidade. A tese do caso especial, entendida por esse ponto de vista, é a afirmação desse seu aspecto dinâmico. É nessa linha que tem sentido afirmar que o Direito não só é a institucionalização da razão prática, como também um meio necessário para a realização dessa na sociedade. Como o discurso jurídico é concebido como conectado ao discurso prático geral, conseqüência e afirmação de seus princípios, também o Direito não pode ser concebido de forma autônoma. Isso não é nada mais do que outra forma de expressar a unidade da razão prática. [100]

Portanto, visto por esse prisma, tanto como regra e princípio (no âmbito passivo) e como institucionalização e argumentação livre (no âmbito ativo), o Direito pode ser visto como possuindo uma dupla vertente real e uma dupla vertente ideal.

La double dimension idéale se montre au niveau des procédures dans la "réalisabilté" seulement approximative des règles du discours et au niveau des principes dans leur caractère de depassement. La double dimension réelle correspond, au niveau procédural à la nécessité des institutions, et au niveau des normes au fait que les règles sont indispensables. [101]

Na sua dupla vertente real está implícita a necessidade de ordem, seu caráter dogmático e a necessidade de certeza do Direito; na sua dupla vertente ideal, seu aspecto dinâmico, o caráter argumentável e provisório de toda proposição jurídica. [102] É nesta "dialética da ordem e da liberdade" [103] que a tese do caso especial busca se inserir, procurando estabelecer uma ligação entre esses dois aspectos sem cair num extremo ou em outro. Não procura nem sobrevalorizar o aspecto real, caindo num legalismo rígido em que o juiz é a boca da lei, nem o aspecto ideal, caindo num principialismo arbitrário em que o juiz toma o lugar do legislador. [104] A análise de qual deve prevalecer sobre qual será feita no próximo ponto.

4.3 Tese da integração

O discurso jurídico, portanto, é necessário do ponto de vista do discurso prático geral, e é exigido por motivos práticos gerais a fim de realizar o princípio da racionalidade discursiva. Entretanto, seria um erro pensar que o discurso jurídico acaba com todas as incertezas existentes no discurso prático geral e se torna independente dele. Muito pelo contrário, o discurso jurídico, apesar de reduzir o campo do discursivamente possível sensivelmente, dificilmente produz, se operando somente por seus termos, uma única resposta. É dessa limitação que emerge a necessidade de integração de argumentos práticos gerais na argumentação jurídica.

A questão que se analisará agora é sob que forma esses argumentos práticos gerais [105] entram na argumentação jurídica e em que sentido eles se harmonizam com os argumentos especificamente jurídicos. Segundo Alexy existem, basicamente, três teorias diferentes para responder essa questão. Pela tese da subordinação, sempre que houver casos em que a solução não possa ser derivada conclusivamente da lei, o discurso jurídico não passa de um discurso prático geral por trás de uma fachada jurídica. Já a tese da suplementação afirma que a argumentação jurídica só pode ir até uma parte do caminho, chegando a um ponto em que os argumentos especificamente jurídicos não estão mais disponíveis. É aqui que deve intervir a argumentação prática geral. A teoria adotada por Alexy, entretanto, afirma que argumentos especificamente jurídicos e argumentos práticos gerais devem ser combinados em todos os níveis e aplicados conjuntamente. [106] Essa é a tese da integração. [107] Segundo essa tese, no entanto, apesar de argumentos práticos gerais serem utilizados conjuntamente com argumentos jurídicos, eles só entram na argumentação sob condições e formas especiais, que aumentam consideravelmente sua capacidade de determinação, devido, principalmente, à natureza institucionalizada do discurso jurídico.

A necessidade de argumentos práticos gerais decorre igualmente da incapacidade do discurso jurídico de resolver todos os problemas que lhe são propostos a partir de seu próprio universo. Os chamados "casos difíceis" constituem um bom exemplo de como muitas vezes é necessário chegar a uma conclusão que não pode ser derivada logicamente do conjunto de normas ou princípios. Nesses casos, o discurso jurídico cede espaço ao discurso prático geral e seus princípios. [108] Isso não transforma a tese da integração na tese da suplementação: o discurso prático, do ponto de vista da primeira, é necessário não somente quando o discurso jurídico não consegue fornecer uma resposta, mas em todos os momentos da argumentação.

Da mesma forma, a pretensão de justificação no Direito, além de o conectar com a moral, cria uma dimensão crítica que lhe dá um caráter ideal. Quem justifica algo, mesmo no contexto de um discurso jurídico, da mesma forma que pretende que sua afirmação seja correta dentro desse contexto, igualmente espera, como já foi visto, que o próprio Direito seja racional. Embora isso nem sempre possa acontecer, o fato de interpretações da lei há muito tempo mantidas serem modificadas, decisões serem revistas, leis criticadas, e mesmo algumas decisões serem proferidas contra legem, denunciam o fato evidente da falibilidade, [109] e, portanto, da mutabilidade das interpretações. Essa dimensão de justificação leva a novos níveis, mais elevados, de justificação, embora a provisoriedade das decisões sempre seja um componente constitutivo das mesmas. Isso não significa, obviamente, que as decisões devem ser incessantemente revistas a fim de serem alçadas a graus de justificação mais elevados. O importante, aqui, é que através dessa pretensão é criada a possibilidade de surgirem contra-argumentos que podem ser melhores e eventualmente mudarem a prática de justificação: "con ello se vuelve posible una crítica de la praxis de las decisiones desde el punto de vista del derecho." [110]

Isso só evidencia o que já foi ressaltado e constitui um dos pilares da tese do caso especial: o Direito é dinâmico. Esse dinamismo reflete-se na tese da integração de maneira clara. Porém, esse mesmo dinamismo, advindo do caráter argumentável e livre do Direito, entra em conflito com a necessidade de segurança e certeza jurídica. [111] É necessário que haja, portanto, no Direito, alguns elementos estabilizadores, que nem sejam rígidos o suficiente a ponto de impedirem mudanças, nem flexíveis demais a ponto de comprometerem a estabilidade do ordenamento: esse é, em grande parte, um dos papéis da dogmática.

Dogmatismo, no Direito, é mais do que "the inclination to identify the goal of our thinking with the point at which we have become tired of thinking". [112] Embora uma investigação mais detalhada já tenha sido feita em outro lugar, [113] é importante ressaltar que conceitos da dogmática jurídica não são onde a discussão necessariamente termina, mas onde ela começa; eles fixam pontos de partida a partir do qual avançamos, sem a necessidade de reabrir a discussão desde o início a todo momento. [114] E, apesar de que em algum momento, a fim de se alcançar uma decisão, a discussão terá que parar, isso não torna os dogmas em proposições irrefutáveis. [115] A dogmática possui esse duplo viés: por um lado, uma vez aceita uma proposição, ela não precisa ser retida por um período ilimitado; por outro, ela cria uma presunção a seu favor que pelo menos exclui o seu simples abandono sem nenhuma razão: "a razão para a nova solução tem de ser suficientemente forte para justificar não só a nova solução, mas também o rompimento da tradição." [116]

Voltando ao ponto inicial, se argumentos práticos gerais são necessários em todos os momentos da argumentação jurídica, isso não levaria a tese do caso especial a enfrentar uma contradição? Pois a necessidade do discurso jurídico é derivada exatamente da limitação do discurso prático geral, que não oferece pautas definitivas de conduta. Argumentos práticos gerais, ao serem inseridos na argumentação jurídica, realmente levam com eles toda a carga de incerteza presente no discurso prático geral, mas esse paradoxo é, no entanto, aparente. Isso tanto pelo fato de que o discurso jurídico não se reduz ao discurso prático geral como também à verdade clara e evidente de que o Direito nunca pode oferecer uma resposta definitiva e cabal na resolução de conflitos práticos. Isso não o torna menos racional, pois:

si la racionalidad fuera equiparada con la certeza, ello daría origen a una objeción fundada. Sin embargo, tal no es el caso. La razón práctica no es de aquellas cosas que pueden ser realizadas sólo perfectamente o no en absoluto. Es realizable aproximativamente y su realización suficiente no garantiza ninguna corrección definitiva sino tan sólo relativa. [117]

As questões jurídicas nunca estão completamente encerradas, o que, por certo, traz ao Direito um certo grau de insegurança. Porém, "bajo las condiciones humanas no es posible superar esta medida de razón práctica en el derecho." [118] Não é permitido, portanto, esperar do Direito mais certeza que ele pode oferecer: assim como no homem, a vulnerabilidade [119] e as incertezas dela decorrentes são essenciais na caracterização também do Direito; [120] ignorar este fato é possuir uma visão deturpada das suas características mais fundamentais.

Sobre o autor
Eduardo Augusto Pohlmann

Advogado em Porto Alegre (RS). Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POHLMANN, Eduardo Augusto. O discurso jurídico como um caso especial do discurso prático geral.: Uma análise da teoria discursiva do Direito de Robert Alexy. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1613, 1 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10723. Acesso em: 25 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!