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Crime de omissão de socorro no trânsito.

Idas e recuos da dogmática penal

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Agenda 07/12/2007 às 00:00

4.Síntese conclusiva

Fiz um exame perfunctório de alguns temas concernentes ao crime de omissão de socorro no trânsito. Melhor entendimento do assunto pressupõe sua ligação e confronto com o delito do art. 305 (fuga do local do acidente) e com o crime básico de omissão de socorro do Código Penal em vigor (art. 135). Portanto, com as noções elementares da estrutura jurídica dos crimes de perigo — comum ou individual. Mais ainda: com o art. 281 do Código Penal Militar (fuga após acidente de trânsito), que prepondera sobre qualquer outro da legislação penal em vigor.

Limito-me ao que ficou exposto. Se me refiro, tantas vezes, às questões polêmicas, é porque há muito me convenci de que o direito penal, enquanto ciência, se não pode prescindir de alguma teoria, muito menos pode afastar-se de suas fontes históricas: lei, ideologia e intérprete (Curso crítico de direito penal, 1998, p.57- 61).

Ora, instituiu o legislador a figura delituosa da imediata omissão de socorro em acidente de trânsito com vítima. Para tanto, se aparentemente abriu exceção à regra geral do "crime impossível", assim procedeu por ser essa a sua vontade, vinculada à certeza de que a morte da vítima, um mal irreparável, não retira o caráter antiético da indiferença do condutor. Seria no mínimo esquisito que o motorista, logo após o acidente, ao constatar o óbito da vítima, respirasse aliviado: "Que bom! Posso agora seguir adiante, sem qualquer responsabilidade criminal!" Há que se enfocar o tema, como se viu, sob a ótica de outro bem jurídico: o respeito aos mortos. Conclusão: crime possível, perfeitamente possível.

Questão diversa se prende à convicção do desacerto político da lei numa época de luta ideológica por mais justiça social e menos direito penal. Num acidente em que o motorista, em regra, não tem culpa em cartório, constitui um risco à liberdade individual condená-lo por uma omissão que se relacione, em verdade, com seu nervosismo, com seu previsível descontrole emocional.

A esse ponto não chegou o legislador. Não se trata de crime que se puna a título de imprudência, negligência ou imperícia (CP, art. 18, parágrafo único, c/c art. 291 do CTB). Como escrevi alhures, a lei pune a quem, no mínimo com dolo eventual, deixa o corpo da vítima, com ou sem vida, entregue à própria sorte. Ora, o condutor, em pânico, pode sentir-se desnorteado, perdendo momentaneamente o domínio de sua conduta. Fica difícil nesse estágio caracterizar o delito ("Crime de omissão de socorro: divergências interpretativas e observações críticas", Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 34, 2001, p. 49).

Como quer que seja, impõe-se agora uma síntese conclusiva, mais ou menos eqüidistante das habituais pregações de caráter dogmático.

Vimos que um único dispositivo de lei (CTB, art. 304) suscitou e suscita, ainda hoje, inúmeras controvérsias: sujeito ativo, ausência ou não de culpa, tipo de veículo, natureza da via, concurso aparente de normas, morte da vítima etc. Controvérsias que se estendem à licitude ou não do aumento de pena pela omissão de socorro à vítima que sofra, no trânsito, morte imediata (homicídio culposo agravado).

Nessas horas a dogmática jurídica, por suas limitações, por sua fragilidade, tal como ocorre em milhares de outras hipóteses, acaba cedendo espaço à formação e sedimentação de um direito penal essencialmente contraditório.

Em qualquer país, ainda que altamente civilizado, à vontade da norma pode opor-se – poder fático-normativo – a vontade do intérprete, que se coloca, destarte, acima da Lei e da própria Constituição, transformando-se em fonte direta ou indireta de um direito penal que repute eventualmente mais justo ou mais adequado às circunstâncias.

Trata-se de constatação empírica. Questão diversa diz respeito ao correspondente juízo de valor acerca desse poder fático-normativo.

Por sinal, no magistério de Orlando Ferreira de Melo, o direito "não nasceu das leis e nestas não se encontra. A lei é apenas um registro escrito versando sobre comportamentos humanos desejáveis, obrigatórios e permitidos, e das eventuais sanções pelo descumprimento dos obrigatórios. Só por metáfora podemos fundir lei e direito" (Hermenêutica jurídica: uma reflexão sobre novos posicionamentos. Itajaí, Editora da Univali, 2001, p. 179).

O fato é que, em existindo lei, há de existir interpretação. Em regra, não se faz direito sem labor exegético. Mas a exegese, em suas contradições, deixa entrever, aos poucos, as raízes de um objeto em eterno processo de reconstrução histórica.

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Sob o prisma de uma hermenêutica realista, de cunho crítico-metodológico, essas raízes retratam as categorias básicas do direito: força, poder, vontade, liberdade. De qualquer direito, aliás. Seu nome é o que menos importa: direito legal, direito racional, direito alternativo, direito justo. Em todos eles o dedo criativo do legislador se funde, por metáfora, ao dedo soberano do intérprete.


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Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Crime de omissão de socorro no trânsito.: Idas e recuos da dogmática penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1619, 7 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10728. Acesso em: 22 dez. 2024.

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