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Técnicas de superação de precedentes judiciais.

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Agenda 23/11/2023 às 18:11

Analisamos julgados do STJ e do STF com a aplicação das técnicas de superação de precedentes.

1. Introdução

Os precedentes judiciais visam a uniformização da jurisprudência, bem como a estabilização social com a garantia da efetividade do processo, além de alcançar a celeridade e a economia processual.

Para se evitar decisões contraditórias em casos análogos e para alcançar a previsibilidade da justiça, os precedentes judiciais se apresentam como solução. Nesse artigo, apresentaremos o conceito de precedente judicial, com o apoio da doutrina e a previsão no ordenamento jurídico.

A superação do precedente ocorre quando estes são incongruentes ou inconsistentes, cabendo uma reavaliação do precedente pela Corte, envolvendo a observância do regramento previsto no CPC e a aplicação das técnicas do overruling e distinguishing, cujos conceitos serão apresentados neste artigo.

Para melhor visualização da aplicação da técnica do distinghishing e overruling será analisado um julgado do Superior Tribunal de Justiça e um julgado do Supremo Tribunal Federal, especialmente trechos dos votos que foram proferidos com a aplicação das técnicas de superação de precedentes.

Foi utilizada a metodologia de pesquisa bibliográfica em doutrina, legislação e jurisprudência.

2. Conceito de precedente judicial

O precedente judicial constitui um molde extraído de decisão pretérita para aplicação em um caso presente.2

Para Georges Abboud, o precedente é uma concreta decisão jurisprudencial que se encontra vinculada ao caso historicamente concreto que decidiu, consiste em uma decisão jurisdicional que se impõe como padrão normativo, a ser aplicada, analogicamente, a casos semelhantes.3

Aluísio Gonçalves de Castro Mendes assim define precedente judicial:

O precedente consiste na decisão jurisdicional tomada em relação a um caso concreto, cujo núcleo é capaz de servir como diretriz para a resolução de demandas semelhantes. Todo precedente é, portanto, uma decisão judicial, mas nem toda decisão pode ser qualificada como sendo um precedente. Como característica fundamental do precedente tem-se o surgimento de uma norma geral construída pelo órgão jurisdicional, a partir de um caso concreto, que passa a servir de diretriz para situações assemelhadas.4

O Código de Processo Civil trás rol de precedentes judiciais no artigo 927 do CPC. Vejamos:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II - os enunciados de súmula vinculante;

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.5

Para facilitar a compreensão, faremos uma breve análise do diploma legal supracitado.

As decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade são proferidas nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs), nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade por Omissão (ADOs) e nas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs).

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) é proposta perante o STF para arguir a inconstitucionalidade de lei, ato normativo federal ou estadual em face da Constituição Federal. Pode ser proposta pelo presidente da República, pelos presidentes do Senado, da Câmara ou de assembleia legislativa, pela Ordem dos Advogados do Brasil, pelo procurador-geral da República, por partido político e por entidade sindical de âmbito nacional.

A ADI, tem previsão nos artigos 102, inc. I, a e p, 103, caput, §§1º e 3º, e 129, inc. IV, da CF, como também nos artigos 2º a 12 e 22 a 28 da Lei nº. 9.868/996.

A Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) é proposta perante o Supremo Tribunal Federal, visando à declaração de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. As decisões definitivas de mérito sobre essa ação têm eficácia contra todos (erga omnes) e efeito vinculante no âmbito dos demais órgãos do Judiciário e do Executivo. Pode ser proposta pelo presidente da República, pelas Mesas do Senado e da Câmara e pelo procurador-geral da República.

André Ramos Tavares assim define:

A ADC é a ADI com sinal invertido, ou seja, o pedido é o inverso daquele cabível na tradicional ação de controle abstrato. Deve-se pedir em ADC a declaração de constitucionalidade da lei ou ato normativo federal (não é cabível para lei estadual ou municipal). O resultado, porém, pode ser a declaração e inconstitucionalidade, no caso de julgamento final pela improcedência do pedido formulado.7

A ADC tem previsão no artigo 102, inciso I, a da CF, bem como nos artigos 13 a 28 da Lei nº. 9.868/998.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) é proposta perante o Supremo Tribunal Federal, visando tornar efetiva uma norma constitucional de eficácia limitada em razão de omissão realizada por qualquer Poder ou órgão administrativo.

Para Uadi Lammêgo Bulos, a Ação Direta de Inconstitucionalidade é:

A ADO é o mecanismo de defesa abstrata da constituição que se destina a combater a inércia legislativa. A finalidade da ADO, tal como disciplinada na Carta Magna é cientificar o Poder Legislativo para que ele edite normatividade suficiente à regulamentação dos preceitos constitucionais, tornando-os exequíveis.9

A ADO tem previsão no artigo 103, §2º da CF, bem como nos artigos 12-A a 12-H da Lei nº. 9.868/9910.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é uma ação proposta junto ao STF com o objetivo de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público. A ADPF não pode ser usada para questionar a constitucionalidade de lei, exceto as municipais ou anteriores à Constituição de 1988.

Pode ser proposta pelo presidente da República, pelos presidentes do Senado, da Câmara ou de assembleia legislativa, pela Ordem dos Advogados do Brasil, pelo procurador-geral da República, por partido político e por entidade sindical de âmbito nacional.

A ADPF, tem previsão no artigo 102, §1º, da CF, bem como na Lei nº. 9.882/9911.

A súmula consiste no enunciado que sintetiza o entendimento sobre questões que apresentam controvérsias na jurisprudência.

Assim define José Rogério Cruz e Tucci sobre os enunciados de súmula:

Os enunciados da súmula vinculante da jurisprudência predominante com eficácia vinculante são conceituados como proposições aprovadas ou revisadas, de ofício ou por iniciativa de legitimado ativo para ação direta de inconstitucionalidade, por dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal, quanto a interpretação, validade e eficácia de normas determinadas, em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e Administração Pública direta ou indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, sob pena do uso de reclamação.12

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O IAC, previsto no artigo 947 do CPC, é cabível quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos. Consiste no deslocamento da competência de órgão fracionário para apreciar o recurso/processo de competência originária/remessa necessária, para um órgão colegiado superior. O acórdão proferido pelo órgão colegiado se consubstanciará em um precedente que vinculará todos os juízes e órgãos fracionários do tribunal, salvo eventual revisão da tese.

O IRDR, previsto no artigo 976 e seguintes do CPC, tem como principal objetivo identificar processos que contenham a mesma questão de direito, com risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, para decisão conjunta.

O julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos, previsto no artigo 1.036 do CPC, estabelece que sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento, observado o disposto no regulamento interno do STF e STJ, sendo que a análise do mérito recursal poderá ocorrer por amostragem, mediante a seleção de recursos representativos da controvérsia.

Os enunciados das súmulas do STF e STJ, têm natureza referencial e de orientação, visando padronização e uniformização jurisprudencial, podendo ser afastada de forma fundamentada pelo julgador.

De igual modo, a orientação do plenário ou do órgão especial, serve de referencial para o julgador, que pode aplicar por disciplina judiciária, podendo ser afastada de forma fundamentada pelo julgador.

3. Superação do precedente judicial

Os critérios para superação do precedente judicial estão previstos no artigo 927, §§ 2º a 5º do CPC, especialmente no §4º do referido artigo. Vejamos:

§ 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.

§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

§ 5º Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.13

Conforme se depreende o §4º do artigo 927 do CPC, a modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica.

Patrícia Perrone Campos Melo elenca as situações em que ocorre a superação dos precedentes:

A superação de precedentes geralmente ocorre quando estes são socialmente incongruentes (e, portanto, não refletem a compreensão social sobre o que é justo) ou, ainda, quando são sistemicamente inconsistentes (porque conflita com outras normas, com outras decisões do órgão vinculante ou, ainda, com outras decisões reiteradamente proferidas pelas instâncias inferiores). A sistemática rejeição de um precedente normativo e as distinções inconsistentes entre casos pelas instâncias vinculadas (atitude estratégia para tentar evitar a sua aplicação) podem levar o tribunal vinculante a rever ou moderar sua decisão, a fim de viabilizar a adesão dos órgãos vinculados.14

Nessa ordem de ideias, Luiz Guilherme Marinoni sustenta que:

[...] há casos em que um precedente, sem revelar contradições na Corte, pode deixar de ter validade diante das novas proposições sociais ou de uma nova concepção geral acerca do direito. Nessas hipóteses, que longe estão de uma mera possibilidade de reanálise da questão federal já definida, há de se admitir o recurso especial, não porque há desacordo sobre a interpretação conferida pela Corte, mas sim porque o precedente não mais tem consistência sistêmica, ancoragem nas proposições sociais ou no que se compreende como direito. Observe-se que, nesses casos, o precedente deixou de ter consistência sistêmica, congruência social ou sustentáculo no direito, e, portanto, não mais pode ser tido como uma interpretação correta ou como a norma que expressa o sentido do direito federal.15

José Rogério Cruz e Tucci destaca que “com efeito, as cortes superiores podem, então, substituir - overruled - um determinado precedente por ser considerado ultrapassado ou, ainda, errado (per incuriam ou per ignorantia legis).16

O referido autor classifica a técnica do overruling da seguinte forma:

uma revogação implícita do precedente (implied overruling), similar à ab-rogação indireta de uma lei. Distinguem-se, ainda, como exceção à regra do precedente vinculante: a) a retrospective overruling: quando a revogação opera efeito ex tunc, não permitindo que a anterior decisão, então substituída, seja invocada como paradigma em casos pretéritos, que aguardam julgamento; b) a prospective overruling: instituída pela Suprema Corte americana, na qual o precedente é revogado com eficácia ex nunc, isto é, somente em relação aos casos sucessivos, significando que a ratio decidendi substituída continua a ser emblemática, como precedente vinculante, aos fatos anteriormente ocorridos; c) a anticipatory overruling: introduzida, com inescondível arrojo, pelos tribunais dos Estados Unidos. Consiste na revogação preventiva do precedente, pelas cortes inferiores, ao fundamento de que não mais constitui good law, como já teria sido reconhecido pelo próprio tribunal ad quem. Basta, portanto, que na jurisprudência da corte superior tenha ocorrido, ainda que implicitamente, uma alteração de rumo atinente ao respectivo precedente.17

Para Ravi Peixoto, a superação do precedente pode ocorrer das seguintes formas:

A superação pode ocorrer tanto de forma expressa, como de forma implícita. No entanto, a implícita traz consigo vários problemas. Dentre eles, é possível citar a falta de clareza da superação, que dificulta a atuação das cortes inferiores em interpretar esse novo precedente, sem ter certeza quanto a sua aplicabilidade ou não.18

Nesse sentido, Gisele Leite sustenta “se o precedente for superado, o overruling, será preciso também justificar a sua não aplicação do precedente invocado pela parte, demonstrando-se as razões da superação.”19

Para superação do precedente, há necessidade de argumentação. Nesse sentido, Marioni pontua:

“A Corte, para revogar um precedente, assume um ônus argumentativo capaz de evidenciar que, na comunidade jurídica, há uma concepção geral acerca da questão de direito contrária à tese de direito firmada no precedente. Retenha-se o ponto: não é suficiente que a maioria dos julgadores tenha entendimento diverso; o ônus de argumentar recai sobre o que se passa na comunidade jurídica, ou melhor, sobre a circunstância de a compreensão geral acerca do direito ter se alterado.”20

E ainda, no tocante a argumentação revogação do precedente, Marinoni sustenta que:

“fora das hipóteses de modificação das proposições sociais - nas quais o ônus argumentativo recai sobre o impacto dos novos fatos sociais -, exige i) argumentação capaz de demonstrar uma nova concepção geral acerca do direito ou ii) argumentação hábil a demonstrar que o precedente contém um verdadeiro "erro". Perceba-se que essas argumentações nada têm a ver com aquela que se destina a evidenciar como uma questão de direito deve ser compreendida ou como um texto legal deve ser interpretado. Um precedente, uma vez firmado, não abre oportunidade para "rediscussão" das teses de direito ou interpretações firmadas. De outra forma, não haveria estabilidade da jurisprudência ou precedente.”21

4. Conceito de Distinguishing

Distinguishing é uma técnica de superação do precedente e consiste na atividade de diferenciar o caso em julgamento do precedente, visando demonstrar que as premissas do precedente são distintas do caso em análise, caracterizando uma técnica de decisão para afastar a aplicação do precedente na solução de um caso.

Para melhor compreensão do instituto, trazemos a baixa o ensinamento de Luiz Guilherme Marinoni, que conceitua a técnica do distinguishing da seguinte forma:

Como é evidente, diante de casos distintos o juiz não precisa decidir de acordo com o tribunal superior ou em conformidade com decisão que anteriormente proferiu. Cabe-lhe, nesta situação, realizar o que o common law conhece por distinguishing, isto é, a diferenciação do caso que está para julgamento. Do mesmo modo, o juiz pode deixar de decidir de acordo com a decisão que já prolatou, ainda que diante de caso similar, quando tem justificativa para tanto e desde que procedendo à devida fundamentação do motivo pelo qual está alterando sua primitiva decisão.22

Por sua vez, Fredie Didier Jr. conceitua o instituto da seguinte maneira:

Fala-se em distinguishing (ou distinguish) quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, algumas peculiaridades no caso em julgamento afastam a aplicação do precedente.23

Para Rafael Knorr Lippmann, “o precedente judicial constitui um molde extraído de decisão pretérita para aplicação em um caso presente.”24

Já para Georges Abboud, citando Antonio Castanheira Neves, “o precedente é uma concreta decisão jurisprudencial que se encontra vinculada ao caso historicamente concreto que decidiu, consiste em uma decisão jurisdicional que se impõe como padrão normativo, a ser aplicada, analogicamente, a casos semelhantes.”25

Aluísio Gonçalves de Castro Mendes assim define precedente:

O precedente consiste na decisão jurisdicional tomada em relação a um caso concreto, cujo núcleo é capaz de servir como diretriz para a resolução de demandas semelhantes. Todo precedente é, portanto, uma decisão judicial, mas nem toda decisão pode ser qualificada como sendo um precedente. Como característica fundamental do precedente tem-se o surgimento de uma norma geral construída pelo órgão jurisdicional, a partir de um caso concreto, que passa a servir de diretriz para situações assemelhadas.26

Para demonstrar a aplicação da técnica do distinguishing para superação do precedente judicial, trazemos a baila trecho do voto da Ministra Nancy Andrighi (STJ) proferido nos autos do processo nº. 2018/0043565-7. Vejamos o trecho do voto:

Inicialmente, cabe frisar que a aplicação de um precedente judicial - na hipótese dos autos os recursos repetitivos REsp 1.614.721/DF e 1.631.485/DF (Tema 971) - apenas pode ocorrer após a aplicação da técnica da distinção (distinguishing), a qual se refere a um método de comparação entre a hipótese em julgamento e o precedente que se deseja a ela aplicar.

A aplicação de tese firmada em sede de recurso repetitivo a uma outra hipótese não é automática, devendo ser fruto de uma leitura dos contornos fáticos e jurídicos das situações em comparação pela qual se verifica se a hipótese em julgamento é análoga ou não ao paradigma. Dessa forma, para aplicação de um precedente, é imperioso que exista similitude fática e jurídica entre a situação em análise com o precedente que visa aplicar.27

Ou seja, para aplicação do precedente judicial é necessária a aplicação da técnica do distinguishing e o confronto fático e jurídico do caso sub judice com o precedente.

5. Conceito de Overruling

O overruling é uma técnica de superação de precedentes judiciais. É a alteração do entendimento contido no precedente, em virtude de mudanças jurídicas, econômicas ou sociais que indiquem que ele não é mais adequado à realidade atual, que é diversa daquela em que foi produzido.

A superação do precedente com a aplicação da técnica do overruling tem previsão normativa. No ponto, Gisele Leite assevera:

A técnica do overruling é admitida no direito brasileiro conforme se vê do procedimento de revisão ou cancelamento de súmula vinculante na Lei 11.471/2006 e dos Regimentos Internos do STF e no STJ. No julgamento de casos, os tribunais brasileiros indicam também a aplicação do overruling, conforme o julgamento dos Recursos Extraordinários 4.66343 e 3.88359.28

A previsão normativa é prevista na Lei 11.471/200629 regulamenta o artigo 103-A da Constituição Federal e altera a Lei nº. 9.784/199930, disciplinando a edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo STF.

Para fins de visualização da aplicação da técnica do overruling para superação de precedentes, vamos analisar o Recurso Extraordinário RE 4.66343 julgado pelo STF em 03.12.2008, que discutiu à luz do artigo 5º, LXVII31, da Constituição Federal, a constitucionalidade, ou não, das normas que dispõem sobre a prisão civil do depositário infiel.

Para tanto, iniciamos destacando a parte final do voto do Ministro Gilmar Mendes, proferido no RE 4.66343 julgado pelo STF em 03.12.2008:

Deixo acentuado, também, que a evolução jurisprudencial sempre foi uma marca de qualquer jurisdição de perfil constitucional. A afirmação da mutação constitucional não implica o reconhecimento, por parte da Corte, de erro ou equívoco interpretativo do texto constitucional em julgados pretéritos. Ela reconhece e reafirma, ao contrário, a necessidade da continua e paulatina adaptação dos sentidos possíveis da letra da Constituição aos câmbios observados numa sociedade que, como a atual, está marcada pela complexidade e pelo pluralismo.

A prisão civil do depositário infiel não mais se compatibiliza com os valores supremos assegurados pelo Estado Constitucional, que não está mais voltado apenas para si mesmo, mas compartilha com as demais entidades soberanas, em contextos internacionais e supranacionais, o dever de efetiva proteção dos direitos humanos.

Tenho certeza de que o espírito desta Corte, hoje, mais do que nunca, está preparado para essa atualização jurisprudencial.

Com essas considerações, Senhora Presidente, nego provimento ao recurso.” (grifamos)32

Ao que parece, o fundamento para superação do precedente lançado neste trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes, ocorreu em função de estar socialmente incongruente, pois já não reflete socialmente aquilo que é justo.

A seguir, analisando o trecho do voto do Ministro Marco Aurélio proferido no RE 4.66343 julgado pelo STF em 03.12.2008, vamos constatar a decorrência de evolução fática histórica para superação do precedente, em decorrência do advento da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, instituída pelo Pacto de São José da Costa Rica, a que o Brasil aderiu em 25 de setembro de 1992. Vejamos:

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Senhora Presidente, mais uma vez, o Tribunal revê a própria jurisprudência; e o faz ante não só a modificação sofrida pelo Colegiado diante dos novos membros que vieram a integrá-lo como também diante da própria dinâmica da vida, da dinâmica da jurisprudência. A prisão civil é um resquício do velho Direito romano. Espero, ainda, viver o dia em que ela não mais figurará no nosso ordenamento jurídico. Que se execute a dívida, que se proceda a atos de constrição, em razão de inadimplemento, não no tocante ao homem em si, mas quanto aos bens que integrem o respectivo patrimônio, o patrimônio do devedor.

(...)

Não cansei jamais de sustentar esse entendimento, muito embora vencido no Colegiado - e sempre digo que a seara própria para se rediscutir qualquer matéria, desde que haja convencimento por parte de integrante do Tribunal, é o Plenário. Antes ficava vencido na companhia honrosa de alguns membros da Corte e hoje vejo que o Tribunal caminha - não sei, ainda faltam dois votos e dois colegas estão ausentes - para o consenso, que digo unânime, em torno da matéria, sufragando o entendimento até aqui minoritário.

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Esse fato, eminente Ministro MARCO AURÉLIO, acentua o alto significado - que é sempre importante destacar - que assumem os votos vencidos na jurisprudência dos Tribunais em geral e na desta Suprema Corte, em particular.

Por isso, mostra-se relevante assinalar, até mesmo para efeito de registro histórico, que Vossa Excelência sempre perfilhou, embora vencido, a mesma orientação que, agora, vai se tornando dominante no Supremo Tribunal Federal quanto à inadmissibilidade, em nosso sistema jurídico, da prisão civil do depositário infiel.” (grifo nosso)33

O entendimento consolidado anterior (precedente) do STF que foi superado, é marcante no trecho extraído do voto do Ministro Gilmar Mendes no RE 4.66343 julgado em 03.12.2008, abaixo transcrito:

“Sob a égide da Constituição de 1988, exatamente em 22 de novembro de 1995, o Plenário do STF voltou a discutir a matéria no HC n° 72.131/RJ, Red. p / o acórdão Ministro Moreira Alves, porém agora tendo como foco o problema específico da prisão civil do devedor como depositário infiel na alienação fiduciária em garantia.

Na ocasião, reafirmou-se o entendimento de que os diplomas normativos de caráter internacional adentram o ordenamento jurídico interno no patamar da legislação ordinária e eventuais conflitos normativos resolvem-se pela regra lex posterior derrogat legi priori. Preconizaram esse entendimento também os votos vencidos dos Ministros Marco Aurélio, Francisco Rezek e Carlos Velloso. Deixou-se assentado, não obstante, seguindo-se o entendimento esposado no voto do Ministro Moreira Alves, que o art. 7° (7) do Pacto de San José da Costa Rica, por ser norma geral, não revoga a legislação ordinária de caráter especial, como o Decreto-Lei n° 911/69, que equipara o devedor-fiduciante ao depositário infiel para fins de prisão civil.

Posteriormente, no importante julgamento da medida cautelar na ADI n° 1.480-3/DF, Rel. Min. Celso de Mello (em 4.9.1997), o Tribunal voltou a afirmar que entre os tratados internacionais e as leis internas brasileiras existe mera relação de paridade normativa, entendendo-se as "leis internas" no sentido de simples leis ordinárias e não de leis complementares.

A tese da legalidade ordinária dos tratados internacionais foi reafirmada em julgados posteriores (RE n° 206.482-3/SP, Rel. Min. Mauricio Corrêa, julgado em 27.5.1998, DJ 5.9.2003; HC n° 81.319-4/GO, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 24.4.2002, DJ 19.8.2005) e mantém-se firme na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.” (grifamos)34

Ao final do julgamento do RE 4.66343 julgado pelo STF em 03.12.2008 gerou a seguinte ementa:

EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel.

Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. E ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. (grifamos)35

Da leitura dos trechos dos votos supra colacionados, é possível aferir a mudança de entendimento do STF, superando a jurisprudência anterior da corte.

Segundo Leonardo Boletti da Rocha, considera-se como overruling a mudança de entendimento de um tribunal acerca de tema jurídico anteriormente pacificado. Essa mudança jurisprudencial se dá (i) por alteração no ordenamento jurídico ou (ii) por evolução fática histórica. Quando o Tribunal profere decisão que não aplica a jurisprudência da Corte, porque o caso em julgamento apresenta particularidades que não se amoldam adequadamente à jurisprudência consolidada, ocorre o distinguishing.36

6. Conclusão

As técnicas de superação de superação de precedentes por meio do distinguishing e overruling são ferramentas essenciais e indispensáveis para boa e correta aplicação do precedente ou para sua superação.

Quando os precedentes judiciais são incongruentes ou inconsistentes, cabe uma reavaliação dos precedentes pela Corte, envolvendo a fundamentação adequada e específica, bem como a aplicação das técnicas do overruling e distinguishing.

Sobre o autor
Marcos Fernando Lopes

Mestrando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP); Pós graduado em direito e processo do trabalho pela Faculdade Metropolitana Unidas - FMU; Pós graduado em Direito e Processo Tributário pela Escola Paulista de Direito – EPD. Especialista em perícia judicial e extrajudicial pela Universidade Estácio de Sá. Contabilista. Advogado. Conselheiro no Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Marcos Fernando. Técnicas de superação de precedentes judiciais. : Distinguishing e overruling. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7449, 23 nov. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107315. Acesso em: 22 nov. 2024.

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