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Propostas para uma agenda de debate sobre o constitucionalismo europeu no pensamento de Roberto Mangabeira Unger

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Agenda 15/12/2007 às 00:00

Sumário:1.Introdução. 2.Primeiro Tema: Especificidade do Projeto do Constitucionalismo Europeu. 3.Segundo Tema: O Problema da Terceira Via. 4.Terceiro Tema: Caminhos Alternativos. 5.Quarto Tema: Economia e Administração Pública em Contexto Constitucional Transnacional. 6.Quinto Tema: Constitucionalismo Europeu e Ascendência Norte-Americana. 7.Conclusões. Referências Bibliográficas

Resumo: Trata-se de ensaio que investiga conjunto de propostas relativas ao constitucionalismo europeu, de acordo com o pensamento de Roberto Mangabeira Unger. Indica-se campo conceitual marcado pela busca de uma democracia radical, em desfavor de mera discussão conceitual, de questões analíticas, de fixação de competências.

Palavras-Chave: Direito Constitucional. Europa. Democracia.

Abstract: The paper argues for mechanisms of institutional imagination in order to debate the European Constitution, according to Roberto Mangabeira Unger. It shows an array of conceptual tools in favor of programmatic proposals towards radical democracy irrespective of traditional analytical questions regarding sources of legislative power.

Key Words: Constitutional Law. Europe. Democracy.


1.Introdução

Em março de 2002 realizou-se nos Estados Unidos, em Cambridge, Massachussets, na Harvard University, discussão a propósito do constitucionalismo europeu. Roberto Mangabeira Unger, brasileiro que leciona naquela universidade, preparou roteiro para o debate, o qual se encontra na íntegra no sítio eletrônico do professor e ativista político [01]. A exemplo do que se percebe no pensamento de Mangabeira Unger, mais uma vez, não se justifica o que já existe. Tem-se algo novo, inusitado, convergente com projeto mais amplo e ambicioso de democracia radical [02]. São propósitos do presente artigo contribuir para a divulgação da proposta, problematizá-la, vinculá-la a nossa realidade transnacional (em âmbito de Mercosul), bem como identificar que o tratado constitucional europeu de que se cogita transcende a meros problemas analíticos [03], a exemplo de simples renúncia de soberania fiscal [04]. A versão para o português dos excertos que seguem é de minha autoria, e de minha inteira responsabilidade.


2) Primeiro Tema: Especificidade do Projeto do Constitucionalismo Europeu

O tema central que anima as reflexões de Mangabeira prende-se às relações entre criação ou supressão de possibilidades em nível de União Européia e em níveis nacionais e locais. A proposta de Mangabeira desdobra-se em cinco temas, que antecedem conclusão, no sentido de que a constituição européia pode e deve energizar as sociedades do velho continente, protagonizando-se função muito mais dinâmica do que efêmera instrumentalização para coordenação entre os signatários do pacto constitucional que se desenha. Trata-se de oportunidade única para realização de projeto democrático, que ao menos no plano retórico parece informar a tradição ocidental, tal como plasmada no ideário europeu [05], especialmente como concebido na trajetória iluminista que se fundamenta em Kant [06], quanto a um projeto de paz perpétua, em Spinoza [07] e em Milton [08], no que se refere à liberdade de expressão, bem como em Rousseau [09], no que se reporta a versão mais acabada de um contratualismo visionário.

O primeiro tema que Mangabeira aborda se refere à especificidade do projeto do constitucionalismo europeu. O formalismo que marca a discussão atual não deixa de apreciar o problema central, isto é, a definição do campo de competência da União que se formata e dos Estados-Membros que existem, e que contam com tradições marcadas pela consistência das opções, identificadoras de amplo campo experimental, justificando-se tese clássica em Mangabeira, e que nos dá conta de que sociedades são criadas, são artefatos, e que por isso podem ser transformadas, sem que o caos, a guerra e a desordem sejam necessários.

O professor brasileiro vê que o projeto constitucional europeu fraciona responsabilidades centrais (da União) e periféricas (dos Estados-Membros); a esses últimos caberiam definição de direitos básicos, e respectivas dotações; àqueles primeiros se outorgaria regime de competência relativo a políticas econômicas e internacionais. Assim,

Na União Européia que se vê nascer, a definição de direitos básicos e de dotações sociais é responsabilidade dos Estados-membros. Políticas econômicas e internacionais, no entanto, estariam sob a responsabilidade de instituições supranacionais. A política econômica é conduzida por um Banco Central Europeu. A política internacional segue receita norte-americana, embora com distâncias que variam. Há tendência implícita, como segue: a) manutenção da maioria dos conflitos distributivos relativos a tributos e dotações em nível local, enquanto, b) fixação de modelo particular de instituições econômicas, políticas e sociais e, c) obstaculização de amplo espectro de possíveis desafios para as políticas presentes, bem como para os arranjos que hoje há, incluindo-se barreiras que com certa plausibilidade aprofundam tradições liberais e democráticas [10].

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Enquanto se localiza a engenharia que faz ligação entre tributação e dotação local, modelos particulares seriam formatados por concepções transnacionais. Tradição liberal e democrática oscila junto a velho dilema da teoria política clássica, relativo à fixação centrífuga ou centrípeta das fontes do poder. A questão é recorrente nas discussões sobre o federalismo, em sua feição vertical; fala-se, inclusive, de modelo federalista que decorreria do esforço para a concepção de uma constituição européia. Para Mangabeira, tende-se a se restringir a atuação local, quanto a problemas de muita visibilidade. Segurança social e econômica seriam prejudicadas. Um poder transnacional não conseguiria adequadamente tratar tais questões, que também não seriam enfrentadas por poderes locais, na medida em que a esses faltariam condições institucionais para definição de rumos macroeconômicos. Para Mangabeira:

Até o presente momento a evolução para uma União Européia tem agravado restrições regulatórias e macroeconômicas no que se refere à habilidade de governos nacionais garantirem segurança social e econômica para seus cidadãos. Ao mesmo tempo, não se consegue criar estrutura supranacional que assuma tais responsabilidades, libertando-se de tarefas de governos locais. Questiona-se se há um desenho constitucional europeu supranacional que reporte a tais problemas. Também se pergunta se há riscos em se potencializarem tais questões, conferindo-se natureza constitucional para essas restrições ou limitando-se variáveis constitucionais que poderiam fazer frente a desafios vindouros [11].


3) Segundo Tema: O Problema da Terceira Via

O segundo tema que Mangabeira desenvolve é relativo à tendência que há no tratado constitucional europeu no sentido de aderir ao que se nomina de terceira via, tal como a concepção fora desenvolvida por Anthony Giddens [12]. Por conta dos problemas sociais que a primeira via suscita, decorrentes de neoliberalismo de suposta convergência que define políticas econômicas de globalização [13], e também por causa do fracasso do socialismo real, que definiria uma segunda via, tenta-se humanizar o inevitável: é a marca dessa suposta terceira via. Para Mangabeira, tal tripartição de caminhos é ilusória. O que se tem é apenas uma via, à qual pode se propor tão-somente uma segunda senda [14], porquanto somos sufocados por instruções que decorrem do chamado Consenso de Washington [15]. Mangabeira inquieta-se com ingenuidade que procura amalgamar proteção social do modelo alemão weimeriano [16] com a flexibilidade que caracteriza o estilo norte-americano. O professor brasileiro vê muito mais do que impossibilidades topográficas, na aproximação entre o Vale do Reno e o Vale do Silício. E de tal modo,

A abordagem que se tem em relação à alocação de poderes e responsabilidades entre a União Européia e Estados-Membros não é neutra quanto a direções alternativas de política econômica ou de desenvolvimento de formas de vida e de consciência. Há certa inclinação para com opções de terceira via. Do ponto de vista da política econômica, o plano constitucional que se desenvolve pretende possibilitar que a Europa conte com o modelo renano de proteção social, bem como com o paradigma norte-americano de flexibilidade econômica. Quer-se tudo. Paulatinamente, características de democracia social têm sido abandonadas, na esperança de melhor se preservar o essencial de democracia social de feição liberal: parcerias sociais e gastos sociais redistributivos. Esses últimos, calcados em modelos exacionais regressivos, centrados na tributação sobre o consumo [17].

O que se tem como resultado é a generalização da insegurança, dado que não se consegue aproximar segurança social com flexibilidade, por intermédio de modelo tributário que se concentre tão-somente na regressividade. Isso é, embora a tributação indireta sobre o consumo seja mecanismo regulador e propiciador de distribuições e de dotações sociais, não se atingem esses dois últimos objetivos, sem que propicie, realmente, condições de acesso ao trabalho e ao consumo. E ainda, o que mais problemático, a ampliação do poder de consumo resulta em degradação ambiental e em disfunções ecológicas que marcam mais um nicho complicador [18]. Mangabeira questiona como se conciliar a flexibilidade do capitalismo norte-americano com passivo social que se deve prioritariamente enfrentar:

Reformas modernizadoras podem ser justificadas em nome da renovação econômica, de gerenciamento prudente das finanças públicas e, principalmente, da mitigação de barreiras que separam insiders e outsiders no mercado de trabalho. Todavia, o resultado não tem propiciado flexibilidade que beneficie a todos. O que se percebe com mais freqüência é a generalização da insegurança econômica, bem como a concentração de recursos e de oportunidades nas mãos de elite com interesses voltados para a economia mundial. Pergunta-se qual a estrutura transnacional que se busca com o objetivo de se alcançar uma Europa que garanta o que descrevi acima. E a questão se desdobra em duas outras: que estrutura específica seria provavelmente materializada na constituição européia que se prepara, bem como qual modelo propiciaria espaço para o desenvolvimento de alternativas progressista [19].


4) Terceiro Tema: Caminhos Alternativos

Colocado o problema, nos termos de conciliação entre opção social e flexibilidade negocial, não resolvido pelo tratado constitucional europeu, Mangabeira passa para terceiro tema, que suscita conjunto de caminhos alternativos para o constitucionalismo europeu. Como ponto de partida, Mangabeira cogita da criação de estrutura normativa transnacional que se mostre independente de qualquer compromisso com a suposta terceira via, embora o realismo da circunstância presente não possa descartar a possibilidade. Mangabeira então apresenta duas hipóteses. Trata-se da imaginação institucional levada ao limite na análise do direito [20].

Na primeira delas desenha-se rota de mudanças progressistas, afeiçoada às condições contemporâneas da Europa. Propõe que seja dada ênfase a dotações sociais básicas, mediante a redistribuição de bens, ao invés da utilização de mecanismos de extrafiscalidade, a exemplo da regressividade que identifica a tributação indireta sobre o consumo. Outro passo consiste na potencialização de investimentos em programas educacionais, com o objetivo de se fortalecerem habilidades práticas e conceituais, em detrimento de iniciativas pedagógicas de mera repetição mnemônica. Mangabeira insere nessa primeira proposta a radicalização da competitividade. Dá-nos conta de meios negativos e afirmativos; entre esses últimos o uso de capitais de risco para o apoio de empreendimentos; entre os primeiros, a concepção de modelos normativos eficientes, a exemplo de adequada legislação antitruste.

Essa primeira hipótese ainda cuida de um projeto para ampliação do conjunto nacional de poupança e investimento produtivo. Para tal, prevê-se poupança compulsória que objetive fortalecimento da produção; tais mecanismos se desenvolveriam em ambiente alternativo ao do mercado de capitais. Concomitantemente, ter-se-ia tentativa para desenvolvimento de parcerias entre iniciativa privada e poder governamental. Optar-se-ia por esquema que fugiria da igualdade formal do modelo norte-americano, bem como de fórmulas asiáticas orquestradas por burocracia centralizada, e que exigem criação de fundos e de núcleos de apoio que aproximem empresas e Estado.

Mangabeira ainda sugere modelo constitucional que possibilite desenvolvimento de esforço obstinado para se aproximar sistema produtivo e assistência social não governamental. Possibilitar-se-ia o incremento de organizações civis independentes: associações de moradores, de grupos civis preocupados com educação, assistência à saúde e prevenção do crime, bem como com sindicatos que defendam trabalhadores temporários, a par de trabalhadores empreendedores, isto é, que também sejam patrões. Essa hipótese orienta-se também pela combinação de traços de democracia direta e representativa nos governos locais e nacionais.

Sob a denominação de hipótese A, esses elementos informariam o conteúdo do texto constitucional europeu. Tem-se democracia social altamente experimental, cuja compatibilidade com o tratado constitucional que se tem é implacavelmente duvidosa. O que Mangabeira sugere é que a realização desses mecanismos exige o enfraquecimento do esquema constitucional da União Européia em favor de seus Estados-Membros, de modo que o conjunto que se tenha acomode o programa explicitado na hipótese A. Junto à mesma questão, Mangabeira alonga o debate e pergunta se o modelo que se desenha permite que se cruzem os limites que caracterizam instituições e ideologias presentes.

Depois de colocar o problema sob o enfoque de proposta progressista, de fortalecimento da democracia, Mangabeira passa a considerar a questão sob ângulo oposto, tendo como vértice o próprio tratado constitucional europeu. Na agenda que preparou para o debate, Mangabeira identifica esse segundo conjunto como hipótese B. E para tal propõe que se tenham parâmetros no texto constitucional europeu que hoje se conhece. Em primeiro plano cogita da definição precisa de dotações e proteções sociais básicas, com recursos oriundos (se necessário) de transferências redistributivas no contexto interno da União, garantindo-se sobrevida a mecanismos de fundos estruturais. Pensa na observação de conjunto de garantias normativas, que instrumentalizem os cidadãos para que possam obter compensações de Estados-Membros que tenham falhado em alcançar patamares sociais mínimos. Tem-se em vista modelo de prestação jurisdicional, que escapa a concepções clássicas de responsabilidade do Estado, em suas nuances objetiva e subjetiva.

De qualquer modo, é imprescindível a garantia de amplo espaço de ação para que governos nacionais, regionais e locais possam experimentar alternativas que se desenvolvam com independência em relação a restrições regulatórias e macroeconômicas. Mangabeira exemplifica o conjunto dessas restrições com doutrinas de saneamento econômico difundidas pelo Banco Central Europeu. Tudo, evidentemente, à luz de esforços para que se combinem traços de democracia direta e representativa em níveis transnacionais e nacionais. E em seguida, a dúvida:

Questiona-se agora se tal projeto constitucional não qualificaria justamente o inverso do desenho que prevalece, frágil em dotações sociais universais, prenhe de fortes limites macroeconômicos e regulatórios para inovações nacionais, regionais e locais. Pergunta-se se não seria o tratado constitucional de que se cuida expressão mais plausível de comprometimento professo para com modelo social que supostamente se encontra no centro de uma nova identidade européia, também preocupada com compromissos de paz perpétua. Também se questiona se essa alternativa constitucional não seria mais receptiva para amplo espectro de alternativas futuras que europeus poderiam desenvolver em seus respectivos países e comunidades. E, por fim, ainda se pergunta se tal modelo não seria conseqüentemente mais receptivo para com preocupação fundamental dividida por liberais e sociais democratas, para que se possa descobrir, por meio da experimentação, o que melhor funciona [21].


5) Quarto Tema: Economia e Administração Pública em Contexto Constitucional Transnacional

Apresentadas as duas hipóteses, a primeira delas centrada em alternativa progressista, e a última mais adequadamente afeiçoada ao que se tem presentemente, Mangabeira avança para um quarto tema, que se desdobra dos anteriores, e que é no entanto nuclear: a coordenação entre economia e administração pública em contexto constitucional transnacional.

Parte da argumentação que dá conta de que modelo diferenciado de trabalho e de cooperação tem se verificado em setores mais avançados de produção e de aprendizagem, isto é, em fábricas, centros produtivos e universidades de ponta [22]. Entre esses focos forma-se rede tecnológica que detém o comando da economia mundial. E ainda segundo Mangabeira:

Setores avançados são caracterizados pela atenuação de contrastes fortes entre regras de supervisão e de execução, por mistura fluída de convergência e de competição (a exemplo do que se passa em regimes de cooperação entre empresas pequenas e de tamanho médio), pela busca de inovação permanente, bem como por disposição para se redefinirem interesses e identidades. A emergência dessa forma de coordenação aberta em muitas das áreas da vida prática, dentro e fora do sistema produtivo, faz-se acompanhar por insistência em elos horizontais em detrimento dos verticais. A experimentação, em decorrência de conseqüências morais, sociais e econômicas, é o grito de guerra que estimula tal perspectiva [23].

O modelo europeu tem aderido a tal ponto-de-vista. De acordo com Mangabeira, tem-se menos um programa do que um modismo [24]. Existe obstinação nos projetos europeus, porquanto parece para Mangabeira que se tentam proliferar Vales do Silício no velho continente. Também, ao que consta, para Mangabeira, a própria administração pública, em níveis transnacionais e nacionais, tem reagido entusiasticamente a esses slogans [25]. Mangabeira percebe ainda uma comitologia, isto é, a proliferação de comitês, que acabam fortalecendo burocracias intermediárias que tratam de políticas e modelos fiscais, sempre em nome de coordenação possível de flexibilidade. Porém, esse experimentalismo é tímido, conservador, não transcende aos limites da chamada terceira via. Mangabeira propõe ideário mais ambicioso e completo, utilizando-se o que imaginou na hipótese B, que deve ser intercalada com proposta mais nacionalista que identificou na hipótese A.

Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Propostas para uma agenda de debate sobre o constitucionalismo europeu no pensamento de Roberto Mangabeira Unger. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1627, 15 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10769. Acesso em: 5 nov. 2024.

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