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Propostas para uma agenda de debate sobre o constitucionalismo europeu no pensamento de Roberto Mangabeira Unger

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6) Quinto Tema: Constitucionalismo Europeu e Ascendência Norte-Americana

Alcança então Mangabeira um quinto tema, pertinente às relações entre o constitucionalismo europeu e a ascendência sobre ele exercido pelos Estados Unidos da América. Mangabeira coloca o problema nos seguintes termos:

Uma forte alternativa constitucional em nível transnacional, concebida para favorecer a criação, coexistência e rivalidade de alternativas no contexto europeu exige vontade para realização fática. Isso também significa que a Europa deva defender ordem global que seja amistosa para com a potencialização da diversidade, baseada na democracia e no experimentalismo. Trata-se de diversidade de instituições, de estratégias nacionais e de desenvolvimento de formas de vida e de consciência. Uma Europa intimidada pelos Estados Unidos amargará falta de recursos práticos e espirituais com os quais poderia protagonizar tarefa transformadora [26].

O tratado constitucional europeu deve propiciar modos de se dialogar com a presença norte-americana. O engrandecimento europeu vincula-se a política de enfrentamento, de concepção de posição firme, viável, independente. Especificamente, segundo Mangabeira:

Uma constituição européia alternativa permanece comprometida com a construção de multilateralismo global mais genuíno. Exige comprometimento para com problemas que resultam da hegemonia norte-americana. A Europa não consegue isoladamente resolver tal dilema. Nenhuma solução, no entanto, provavelmente emergirá sem que se conte com o engajamento europeu [27].

É então que Mangabeira sugere uma hipótese C, identificadora do constitucionalismo europeu em face da composição internacional de forças. Para tal, Mangabeira sugere opção alternativa ao modelo das Nações Unidas, vigente desde o término da segunda guerra mundial, em 1945. Esse novo modelo teria três pontos de apoio. O primeiro deles seria formado por corrente de opinião internacionalista que viceja em setores progressistas dos Estados Unidos da América [28]. O segundo foco de poder seria representado pela própria União Européia. E o terceiro ponto de apoio seria cristalizado por alguns países periféricos continentais, que Mangabeira localiza na China, na Índia, na Rússia, no Brasil e na Indonésia. O ponto de partida da referida hipótese C desenvolve-se dentro desse triângulo geopolítico hipotético que não dá atenção aos modelos clássicos de política internacional, a exemplo das concepções que marcaram as tipologias de Metternich, de Bismarck e de Woodrow Wilson. Nega-se totalmente a fórmula das Nações Unidas, contingencial e realisticamente inadequada para problemas presentes, a exemplo do que se verifica com a presença norte-americana no Iraque. Embora, bem entendido, negue-se também feição encolhedora do Estado contemporâneo [29].

Essa hipótese C, concebida para o tratado constitucional europeu, porém, orientada para concepção alternativa de política internacional, indica que questões mais importantes de segurança internacional e de redesenho de instituições internacionais seriam decididas por consenso entre parceiros multilaterais [30]. Segundo Mangabeira, esse consenso seria definido por meio de acordo firmado pelos Estados Unidos, pela União Européia e pela pluralidade dos países periféricos continentais [31].

É premissa que os parceiros dos Estados Unidos reconheceriam o fato de que existe ascendência norte-americana, sem que isso signifique legitimidade ou eternidade [32]. Essa suposta entente não toleraria nenhuma ameaça a interesses vitais norte-americanos, objetivamene, a partir de alguns termos que seguem. É que, segundo Mangabeira, o mecanismo exige que os Estados Unidos reconheceriam que não desafiariam o consenso que brotasse da entente, exceto em circunstâncias extremas [33]. E ainda, de acordo com Mangabeira, a decisão relativa ao que seria interesse vital da segurança norte-americana seria apenas em última instância uma opção isolada dos Estados Unidos [34].

O professor brasileiro fia-se no fato de que como poder hegemônico de fato, com interesse em se livrar dos perigos da anarquia e dos ônus de situação imperial que protagoniza, os Estados Unidos da América funcionariam como garantidores do regime multilateral [35]. O modelo ainda tem como premissa a assertiva de que os Estados Unidos somente em condições extremas definiriam o cardápio de interesses vitais de segurança, em desacordo com definições e agenda dos demais países protagonistas da fórmula. Mangabeira cogita de mecanismo de estabilização, isto é, o desafio da entente aumentaria a possibilidade de implemento daquilo que a política externa norte-americana mais teme: uma aproximação prenhe de segundas intenções por parte da Europa e de poderes emergentes, contra a hegemonia norte-americana.

Nos termos da proposta de Mangabeira, tal como traduzo:

Tal modelo circunstancializa tentativa de se escapar dos contrastes perigosos que há entre fato bruto e consumado que dá conta da hegemonia norte-americana, cotejado com ideal normativo fantasioso relativo à igualdade jurídica entre Estados. Não se tem situação legal ou extralegal. Tem-se concepção proto-legal, que nos remete a modelo clássico europeu de equilíbrio de poderes nacionais. Tem-se desenho que remonta a Bismarck, em detrimento de percepções baseadas em teses de Metternich ou de Woodrow Wilson. Ao contrário dos modelos fossilizados em um Conselho de Segurança, tem-se engenharia institucional internacional flexível e atenta ao balanço de forças. Tem-se conseqüentemente um atributo vital: pode-se evoluir à luz da experiência sob a pressão da realidade [36].

E com o torneio retórico e apelativo que qualifica sua fala, Mangabeira suscita posição visionária, no estilo de Jefferson e de Mill:

No âmago de tal concepção encontra-se uma barganha. Por meio das vozes de países de menor poder o mundo reconhece o fato, mas não o direito, de que há ascendência norte-americana, o que faz em troca de avanço do multilateralismo. Os Estados Unidos da América, em contrapartida, aceitariam regime que aumenta o preço a ser pago por qualquer atuação unilateral que desafie o acordo multilateral. Assim, os Estados Unidos concordariam com o modelo proposto, em permuta por reconciliação com o núcleo de seus interesses morais e materiais, que países de menor poder aceitariam, defenderiam e desenvolveriam [37].

O tratado constitucional europeu exerceria papel nuclear nesse mecanismo proposto. A referida hipótese C tem alcance mundial, embora colocada originalmente em termos de proposta para o constitucionalismo europeu. Alavanca a tese final da proposta de Mangabeira, relativa à discussão do constitucionalismo europeu:

Considere-se agora a tese que segue. Embora em primeira vista não pareça assim, o desenvolvimento de um projeto europeu forte, definido como capaz de promover diferenças européias, bem como diferenças dentro da Europa, é inseparável da formação de uma nova ordem mundial multilateral. Para que tal ordem se implemente, a União Européia deverá tomar iniciativas no sentido de desenvolver um regime tal como definido na hipótese C. Uma constituição européia alternativa e um novo globalismo multilateral exigem responsabilidades paralelas e recíprocas. Demandam-se alianças difíceis de engenharia governamental e de visão institucional [38].


7) Conclusões

De tudo segue conclusão que propõe constituição européia que possa e que deva ajudar na potencialização da democratização das sociedades européias, não apenas protagonizando mecanismo de colaboração para políticas possíveis, que humanizem o inevitável, tal como proposto pela terceira via.

Segundo Mangabeira:

Uma constituição européia poderá fortalecer as condições para a criação de modelos novos e diferentes de iniciativa nas vidas econômica, social e política dos Estados-Membros. É tão-somente pelo desenvolvimento, pela rivalidade, bem como por testes em experimentos locais e nacionais que as sociedades européias conciliarão solidariedade social e ganhos em eficiência, obtendo-se muito de ambos, ao invés de um pouquinho dos dois, como propõe a terceira via. Requisito essencial consiste na predisposição para inovação institucional em âmbito de União, bem como no contexto dos Estados-Membros. E a promessa de tal resultado exige que se quebre o ritmo pouco esperançoso da história européia [39].

Criticando determinismo que exige catástrofes como mecanismo de mudança, Mangabeira admite esse naturalismo da teoria social clássica como alternativa a ser enfrentada, embora desnecessária e falaciosa:

Seja mediante a guerra ou depressão econômica, seja pela rendição em tempos de paz para pequenos prazeres e ambições (entusiasmo entre sofrimento e matança ou segurança com sonolência), tal escolha parece ser o preço que se tem que pagar se há pretensões em se escapar do que hoje há. Assim, a questão central que o momento constitucional nos põe, consiste em um quebra-cabeça familiar ao europeu, e que é substancialmente humano: como se acordar, e se permanecer acordado, independentemente do estímulo produzido pela crise e pela catástrofe. Paz desmerecida torna-se o ponto central. Mas pode se tornar parte da solução. O requisito básico consiste na aproximação entre uma visão de oportunidades até hoje não realizadas na Europa com um conjunto inovador de arranjos institucionais [40].

Os cinco temas desenvolvidos por Mangabeira suscitam duas hipóteses internas e uma hipótese de política internacional. Essa última despreza o modelo da Organização das Nações Unidas e centra-se em mecanismos de consenso que sugerem aproximação entre três núcleos de poder: setores progressistas dos Estados Unidos, Europa e países emergentes. Em que pese bem engendrada a hipótese, duvida-se de sua factibilidade, porquanto desafia realismo que marca a política internacional.

Em âmbito mais endógeno, Mangabeira promove leitura democrática radical (que segue seu projeto conceitual) que se intercala com mecanismos substancialmente mais tradicionais. De qualquer modo, para Mangabeira, a agenda de debates em torno do constitucionalismo europeu carece de mecanismos normativos ou interpretativos que levem em conta políticas macroeconômicas que ensejem medidas locais determinantes de redistribuição de riquezas. Tem-se conjunto que mitiga o Estado tradicional, sem que isso signifique adesão a terceira via, que combinaria soluções de protecionismo renano com a flexibilidade típica do capitalismo norte-americano. Mangabeira bem sabe que não há como se obter tudo ao mesmo tempo. Não há método de Pôncio Pilatos; é o sacrifício que constrói o bem estar, e a regra de experiência também é válida para o constitucionalismo contemporâneo.

Transposição para constitucionalismo sul-americano, de eventual concepção normativa mais ampla de Mercosul, em princípio, suscitaria o mesmo conjunto de precauções. Na proposta de Mangabeira fica muito explícita a necessidade de que mecanismos supranacionais de constitucionalidade sejam menos instrumentos de coordenação de políticas internas, em favor de articulações de alternativas progressistas ensejadoras de políticas democráticas.

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Especialmente, no que toca à relação com os Estados Unidos, o pensamento de Mangabeira parece agregar-se à percepção que hoje se desenha, de hostilidade, para com o projeto universalista norte-americano. Nesse sentido, em âmbito de tratado constitucional europeu, tem-se oportunidade para se cogitar de mecanismos de enfrentamento garantidores de maior liberdade de ação, levando-se em conta, naturalmente, a hegemonia norte-americana, e a ascendência exercida por esses últimos junto à economia européia, circunstância que se afirma desde a intervenção norte-americana na primeira guerra mundial.

Roberto Mangabeira Unger, professor de direito na Harvard Law School, nos propõe orientação constitucional instrumental e pragmática, com vistas à construção de entorno humano democrático e solidário. Visionário e romântico, embora intrigante e estimulante, o projeto de Mangabeira desponta por não justificar o que já existe, praga que marca a ciência social contemporânea, bem como incomoda por propor o que a primeira vista parece utópico e impossível: o desmonte consensual da hegemonia norte-americana e a realização de dotações sociais no continente europeu. Mangabeira desafia a história.


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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Propostas para uma agenda de debate sobre o constitucionalismo europeu no pensamento de Roberto Mangabeira Unger. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1627, 15 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10769. Acesso em: 21 nov. 2024.

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