O presente artigo visa à análise dos novos tipos penais, criados pela lei federal nº 14.811/2024, por meio da qual introduziu, no Código Penal brasileiro de brasileiro de 1940, o artigo 146-A, definindo como crime a intimidação sistemática (bullying) e a intimidação sistemática virtual (cyberbullying).
Exorta-se a importância e a relevância do aludido diploma legislativo, o qual estabelece a Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente e prevê, como um dos seus objetivos, contribuir para fortalecer as redes de proteção e de combate ao abuso e à exploração sexual da criança e do adolescente (art. 4º, inciso II). Tais inciativas legislativas são de suma importância para a aplicação ao princípio da proteção integral à criança e aos adolescentes as quais já foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro por meio de dispositivos legais previstos na lei federal nº 8.069/90 (ECA)1. Assim, o que se pretende discutir neste artigo é a análise constitucional-penal do novo tipo penal elaborado pelo legislador federal.
Antes de adentrar na análise dos tipos penais, urge esclarecer que a lei federal nº 14.811/2024 tem como objeto instituir medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência nos estabelecimentos educacionais ou similares. Contudo, o novo tipo penal foi inserido no capítulo VI, o qual trata dos crimes contra a liberdade individual, não havendo menção expressa à criança ou adolescente nesse tipo penal.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB88), ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, estabelece diversas normas-principiológicas aplicadas ao Direito Penal. Vale transcrever os seguintes dispositivos os quais merecem destaque para análise do tipo penal analisado neste artigo:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
(...)
XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
b) perda de bens;
c) multa;
d) prestação social alternativa;
e) suspensão ou interdição de direitos;
(...)
Tendo como norte os dispositivos constitucionais supra colacionados, a doutrina elenca alguns princípios do Direito Constitucional. Nos próximos parágrafos, destacaremos alguns princípios que auxiliarão na interpretação hermenêutica do novo tipo penal elaborado pelo legislador federal.
O princípio da taxatividade aduz que os tipos penais devem ser objetivos, claros, sendo representado pela fórmula da lex certa, originária da expressão latina “nullum crimen, nulla poena sine lege certa”2. Reforça-se a necessidade, pelo legislador federal, de elaboração de tipos penais certos, mediante a descrição de condutas claras e específicas, que não deixem dúvidas e incompreensões não somente para o aplicador do direito, mas para as pessoas leigas. Tipos penais revestidos de cláusulas abertas, termos incertos e genéricos, sem especificar precisamente qual a conduta é considerada crime, violam tal princípio3.
Já o princípio da proporcionalidade prevê que as penas devem ser proporcionais à gravidade da infração penal cometida, vedado o exagero na punição4. Ademais, é importante referir que este princípio deve servir como vetor para o legislador federal, na cominação de penas, para que elas estejam em harmonia e proporcionalidade com os demais tipos penais previstos no ordenamento jurídico. Por exemplo, não seria proporcional estabelecer uma pena de 04 a 10 anos para o crime de furto, sendo que o crime de roubo possui a mesma pena, prevendo, em seu preceito primário, a subtração de coisa alheia acrescido de outra elementar no tipo, que a subtração seja realizada por meio de violência ou de grave ameaça à pessoa (não prevista no crime de furto).
O princípio da ofensividade (também conhecido como princípio da lesividade), em suma, pressupõe que a lei penal somente deve abranger condutas que causem dano, ou ao menos exponha a risco, a um bem jurídico. Nesse sentido, Nilo Batista5 elenca quatro funções desse princípio: a) proibição de incriminação de atitude interna; b) proibição de incriminação de condutas que não excedam ao âmbito do próprio autor (não se poderia, por exemplo, criminalizar a tentativa de suicídio); c) proibição de incriminação de simples estados ou condições existenciais; d) proibição de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico.
Por fim, merece destaque o princípio da individualização da pena, o qual é expressamente previsto no artigo 5º, inciso XLVI, da CRFB88. Em linhas gerais, tal princípio consiste em evitar uma padronização da sanção penal. Entre as vertentes de aplicação de tal princípio, merece destaque a lição de Luiz Luisi, a qual afirma que há uma vertente de individualização legislativa, sendo que deve o legislador fixar as penas proporcionais à importância do bem tutelado e à gravidade da ofensa6.
Assim, tendo como norte os princípios supracitados, faz-se necessária a transcrição do novo tipo penal criado pela lei federal nº 14.811/2024, o qual foi inserido no Código Penal brasileiro de 1940 no capítulo VI, que trata dos crimes contra a liberdade individual:
Intimidação sistemática (bullying)
Art. 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais: (Incluído pela Lei nº 14.811, de 2024)
Pena - multa, se a conduta não constituir crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 14.811, de 2024)
Intimidação sistemática virtual (cyberbullying) (Incluído pela Lei nº 14.811, de 2024)
Parágrafo único. Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real: (Incluído pela Lei nº 14.811, de 2024)
Pena - reclusão, de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 14.811, de 2024)
Pela transcrição dos dispositivos acima, é possível depreender que o legislador federal inseriu dois novos tipos no ordenamento jurídico. A intimidação sistemática, conhecida como bullying, tipificada no caput do artigo 146-A, consiste no ato de intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais.
Já o cyberbullying possui a mesma descrição de conduta ao crime anteriormente abordado, contudo o seu modo de execução é realizado por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real.
Da leitura do tipo penal supracitado, vale compilar alguns pontos os quais merecem reflexões.
Primeiramente, tem-se que não há um conceito tipificado, na legislação penal, que individualize e caracterize o que é o ato de intimidação sistemática. Assim, o legislador federal introduziu, no Código Penal, o crime de intimidação sistemática sem definir o que precisamente é a intimidação, e sem definir o que pode ser considerado sistemático ou não. Por exemplo, a humilhação realizada várias vezes, em um único dia, seria sistemático? Ou a humilhação reiterada 5 vezes ao longo de um ano? Quais condutas podem ser consideradas como intimidação? Tal aspecto pode apresentar uma possível ofensa ao princípio da taxatividade do tipo penal.
Ademais, o novo tipo penal estabelece um elemento subjetivo ao tipo penal da intimidação sistemática, pela inserção da expressão “sem motivação aparente”. Assim, mediante uma interpretação restrita e literal do caput do artigo 146-A, para que se configure o crime de intimidação sistemática, os atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais devem ser desprovidos de motivação aparente. Nesse caso, apesar de contraditório, se houver uma motivação aparente para a realização de tal ato, a conduta, salvo melhor juízo, não seria típica, já que a expressão “sem motivação aparente” se constitui de elementar do tipo penal em epígrafe. Assim, exemplificando, se um agente, por meio de atos de intimidação sistemática, humilha reiteradamente uma pessoa, em razão de ter sido agredida por ela no passado, ou por algum familiar, teria uma motivação aparente para realizar tal conduta (ainda que injustificada). É possível inferir que há uma nova ofensa ao princípio da taxatividade do tipo penal, já que o texto legal confere margem substancial de dúvidas na subsunção do tipo penal à conduta realizada pelo agente.
Outro aspecto a apontar quanto ao caput do artigo 146-A é que não há a exigência de um resultado para que o agente incida na conduta descrita nesse tipo penal, tratando-se de um crime formal. Vale lembrar que o bem tutelado pelo tipo penal em destaque seria a liberdade individual. Contudo, o tipo penal não prevê a necessidade de que a vítima se sinta violada em sua liberdade individual ou sua dignidade. O legislador não exigiu representação da vítima para o início da persecução penal, ou que a ação somente se inicie mediante queixa da vítima. Nesses termos, tratando-se de uma ação penal incondicionada, ainda que a vítima não se sinta lesada, havendo a existência atos de intimidação sistemática, sem motivação evidente, mediante violência física ou psicológica, o crime existirá e deverá ser iniciada a persecução penal pela autoridade ministerial. Assim, em tese, poderá haver ofensa ao princípio da ofensividade. Neste ponto, seria suficiente que o legislador estabelecesse o tipo penal como uma ação penal pública condicionada à representação, de modo que a vontade da vítima, ou a de seu representante legal, no ato de permitir o início da persecução penal, seria suficiente para demonstrar a violação na liberdade individual da vítima.
No que toca ao crime de intimidação sistemática virtual, conhecido como cyberbullying, tem-se que a tipicidade da conduta faz referência ao tipo penal descrito no caput (bullying), porém constitui-se de novo tipo penal, pois o crime é cometido não de maneira presencial, mas por meio de rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real. Aqui a crítica reside no fato de que o crime do caput, o bullying, em seu preceito secundário, estabelece unicamente a pena de multa, se o crime não constituir crime mais grave. Por outro lado, no cyberbullying a pena é de reclusão, de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave. Ainda que se possa discutir, em política criminal, se a liberdade individual da vítima (lembrando que o tipo penal em análise não é centrado na proteção da honra subjetiva da vítima) é mais gravemente ofendida se realizada sistematicamente por meio da rede de computadores (ou qualquer meio/ambiente digital) do que realizada de maneira presencial, o fato de se estabelecer um crime muito mais grave ao cyberbullying por condutas semelhantes, seria possível defender a tese de que o presente tipo penal ofende o princípio da proporcionalidade e o princípio da individualização da pena.
Realizadas as análises compiladas acima, não se pode perder de vista que o Direito Penal possui como preceito basilar o seu caráter de ultima ratio. O Estado somente pode criminalizar condutas como o último meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico7. Analisando os princípios que regem o Direito Penal, especialmente os princípios da taxatividade, da ofensividade (lesividade), da proporcionalidade e da individualização da pena, é defensável a ilação de que o novo tipo penal apresenta uma série de impropriedades técnicas, sendo possível questionar sua constitucionalidade.
Em síntese, argumenta-se que o texto do novo tipo penal: a) apresenta uma redação genérica, ao não precisar o que seria intimidação sistemática; b) confere uma margem substancial de dúvidas ao tipificar a conduta de intimidação sistemática somente se for realizada sem motivo aparente; c) ao não elencar o tipo penal como uma ação pública condicionada à representação, ou uma ação privada, o novo tipo penal pode se concretizar sem haver qualquer dano causado à vítima, já que não há previsão de resultado no tipo penal; d) haveria uma desproporcionalidade na fixação do preceito secundário do crime previsto no caput (bullying) e no crime previsto no parágrafo único (cyberbullying), ao estabelecer apenas a pena de multa para o primeiro e uma pena de reclusão de 2 a 4 anos para esse último.
Assim, longe de esgotar o tema aqui analisado, o objetivo deste artigo é fomentar a discussão entre os operadores do Direito sobre este novo tipo penal o qual ingressou no ordenamento jurídico por meio da lei federal nº 14.811/2024. Ainda que a liberdade individual das pessoas, especialmente das crianças e adolescentes, mereça uma rigorosa proteção, os tipos penais devem ser elaborados de maneira a não transgredir princípios basilares do Direito Penal, sendo as que as normas penais devem ser elaboradas de maneira taxativa, proporcional, no afã de buscar a efetiva proteção de bens jurídicos.
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Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
(...)
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.︎
STRATENWERTH, Stafrecht, 2000, p. 58-59 apud CIRINO DOS SANTOS, Juarez: Direito penal: parte geral, 2006︎
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TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5ª ed. Saraiva: São Paulo, 1994.︎
ESTEFAM, André. GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado - Parte Geral. 3ª Edição. São Paulo. Saraiva, 2014.︎
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12ª edição. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011.︎
LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991.︎
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral 1. 16. Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2011.︎