É fora de dúvida que o crime culposo não admite a figura criminosa tentada.
Com efeito, referidas categorias jurídicas se afiguram incompatíveis: no crime culposo, tem-se resultado, sem vontade (a ele dirigida), ao passo que, na figura tentada de crime, tem-se vontade, sem resultado.
Impossível, pois, sem ofensa à lógica, que alguém ''queira'' (crime tentado) e, ao mesmo tempo, ''não queira'' (crime culposo) algo.
Outrossim, não merece reparo a posição de doutrina uníssona que entende, com razão, que na expressão "crime de outrem", presente na redação típica do peculato culposo (artigo 312, parágrafo 2º, do Código Penal – CP), somente se amoldam crimes que tenham por objeto material "dinheiro, valor, ou qualquer outro bem móvel, público ou particular", aos quais alude o caput do artigo 312 do CP.
Neste passo, se Rita, funcionária pública, por negligência, deixa aberta, ao final do expediente, janela de sua repartição, através da qual Rômulo adentra o recinto e subtrai 1 (um) computador; ou se, no mesmo contexto fático, ao invés de subtrair o computador, Rômulo estupra Manuela, que, após a saída de todos, permanecera na repartição, para pôr em dia o serviço; qual, em cada caso, a responsabilidade penal de Rita?
Na primeira hipótese, responderá a servidora relapsa pelo delito de peculato culposo, não se lhe podendo impingir, na segunda hipótese, qualquer responsabilidade penal, seja pelo fato de o estupro não apresentar objeto material encartável no rol do artigo 312, caput, do CP; seja, ainda, por não se afigurar previsível (previsibilidade é diferente de possibilidade) a ocorrência do havido estupro, na situação delineada; seja, por fim, em face da inexistência de previsão legal da conduta como crime culposo (artigo 18, parágrafo único, do CP).
Pertinente, ademais, ao peculato culposo, a causa extintiva da punibilidade prevista no parágrafo 3º do artigo 312 do CP, consistente na reparação do dano, precedentemente à decisão irrecorrível.
2.Até aqui, palmilhou-se a trilha da doutrina prevalente. Nada obstante, o seguimento da empreitada esquadrinhatória da expressão "crime de outrem", no peculato culposo, fará exsurgir alguma divergência.
Por primeiro, com Janaina Conceição Paschoal, afasta-se, nesta seara, a nomenclatura ''tentativa de crime'', para se adotar a de ''crime tentado''.
É que as figuras dos incisos I e II do artigo 14 do CP patenteiam verdadeiras formas de manifestação da atividade criminosa - ou do fato penal, na dicção de Roxin [01] -, ambas, em realidade, crimes. Uma na modalidade consumada (inciso I) e outra na modalidade tentada (inciso II), mas, repise-se, crimes em essência as duas.
É o quanto se colhe na dicção de Janaina Conceição Paschoal: "Deve-se tomar cuidado para não cair no erro de falar em tentativa de crime (tentativa de estupro, tentativa de homicídio, tentativa de roubo etc.), pois, na verdade, o que se tem é um crime tentado (estupro tentado, homicídio tentado, roubo tentado etc.). A tentativa já é um crime" [02] (grifei).
3.E o que é, afinal, "crime de outrem" na redação típica do peculato culposo?
Para a doutrina majoritária, tão-somente crimes que, sobre deterem objeto material idêntico ao do peculato, apresentem-se, exclusivamente, na forma consumada.
É o pensar de Capez: "Obviamente o funcionário público somente poderá responder por essa modalidade culposa se o crime doloso praticado por terceiro consumar-se. É que não se admite tentativa de crime culposo, de forma que, se o crime doloso ficar na fase da tentativa, não há falar na configuração do crime em estudo. O terceiro, contudo, deverá responder pelo crime praticado na forma tentada" [03]; e Damásio: "Consuma-se o delito no momento em que outro crime atinge o seu momento consumativo. Culposa a modalidade, não admite tentativa" [04].
Referenciadas pontuações doutrinárias, inobstante autorizadas, não colhem aqui adesão.
Admite-se, sim, neste labor, a possibilidade de subsunção da figura criminosa tentada na intelecção da expressão "crime de outrem" contida na redação do parágrafo 2º do artigo 312 do CP.
E, com isso, não se perfaz qualquer afronta à afirmação primeira deste texto, no sentido de se afigurar inadmissível a figura tentada no crime culposo. Com efeito, o que não se admite é a modalidade tentada no crime do funcionário (intraneus), nada obstando, entrementes, que o crime do extraneus se apresente sob a forma tentada, já que o parágrafo 2º do artigo 312 do CP alude singelamente a "crime de outrem", fato conducente a se ter por inexistente pretensa limitação à figura criminosa consumada, imposta ao crime do terceiro, mesmo porque crime consumado e crime tentado são, ambos, espécies de crime.
4.A dificuldade que dita interpretação impõe consiste na impossibilidade de o funcionário, na hipótese de crime tentado do terceiro, poder livrar-se da pena - pela sua extinção -, com a reparação do dano, o qual, em verdade, inexiste.
Mas dito empeço se faz presente também no cotejo dos artigos 1º, inciso I, e 2º, inciso I, da Lei 8.137/90, quando, no primeiro, crime de dano, enseja-se o pagamento, a título de reparação, com consectária extinção da punibilidade, e, no segundo, crime formal, no qual a inocorrência do resultado ''supressão ou omissão de tributo'' impossibilita a reparação pela paga da exação sonegada, com afastamento, pois, da incidência da extinção da punibilidade.
5.Seria, pois, o caso de, pela via legislativa, se proceder à modificação da redação do parágrafo 2º do artigo 312 do CP, para nela constar: "§ 2º. Se o funcionário concorre culposamente para a consumação do crime de outrem"?
Com a redação atual, o "crime de outrem", no peculato culposo, tanto pode ser consumado, quanto tentado.
Notas
01ROXIN, Claus et alli. Introdução ao direito Penal e ao Direito Processual Penal. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 26.
02PASCHOAL, Janaina Conceição. Direito Penal, Parte Geral. Baruerí: Manole, 2003, p. 67.
03CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, v. 3, Parte Especial. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 399.
04JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, 4º volume, Parte Especial. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 133.