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Constituição material, opção política e cláusula pétrea

Agenda 24/01/2008 às 00:00

O texto visa a enfocar o que é constituição, essencialmente, ou seja, materialmente. Daí, pode-se estabelecer em que consiste um conceito largo ou estreito de constituição. A abordagem faz-se pela breve análise de instituto jurídico diretamente relacionado à supremacia da lei materialmente constitucional.

Introdução breve

Conversando com um amigo, que trabalha com o direito, colhi uma opinião interessante sobre idéias expressas anteriormente, em texto sobre o processo histórico, político e jurídico que culminou na constituição de 1988. Disse-me o estimado e respeitado crítico que eu tinha sido claro na exposição, mas que tinha adotado conceito restritivo de constituição.

O presente escrito visa a enfocar o que é constituição, essencialmente, ou seja, materialmente. Daí, pode-se estabelecer em que consiste um conceito largo ou estreito de constituição. A abordagem faz-se pela breve análise de instituto jurídico diretamente relacionado à supremacia da lei materialmente constitucional.

Por isso, optou-se por tratar da cláusula pétrea para o estabelecimento da intangibilidade de certas matérias. Estes são temas indissociáveis da constituição, considerada norma superior do sistema jurídico e fundamento de validade das demais.

Não se trata de fazer a defesa incondicional de postura kelseniana, senão de assumir que tal postura – adotada declaradamente nos modelos que se autoproclamam de supremacia constitucional – deve ser abordada com rigor de raciocínio. Se este modelo é o melhor, o autor não sabe – ou prefere não dizer – mas é possível construir um sistema a partir dele.

Constata-se que as interpretações constitucionais não têm tido compromisso com a premissa da supremacia constitucional e são conduzidas segundo casuísmos múltiplos. Decorre disso que todos afirmam a supremacia da lei fundante, mas não se preocupam com o sentido de fundação político-institucional.


Cláusula pétrea

A história não se petrifica. A disciplina do que existe e a programação do que existirá tampouco parecem comportar petrificações. Daí é possível supor uma dificuldade enorme de pretender impor rigidez a toda sorte de aspecto das inúmeras relações sociais juridicamente relevantes. Não obstante, mostrou-se conveniente salvaguardar das vicissitudes mais freqüentes uma parte dos fatos e atos importantes para a coletividade.

O Estado deve prover – em maior e menor medida segundo o tempo e espaço – várias necessidades que o conjunto de uma população deixada à própria sorte não proveria adequadamente. Com efeito, o maior liberal – em sentido próprio do termo – não exclui o estado de sua teorização.

Uma vez que se assume a necessidade de existência do Estado, assume-se o problema de discutir e colocar suas limitações. Além das limitações, encontra-se o problema de configurá-lo e dotá-lo de uma previsibilidade que é útil à sua própria permanência. Significa dizer que o jogo de detenção do poder é dinâmico e rápido, mas suas regras devem ser minimamente previsíveis e, talvez mais importante, devem ter um modelo pré-estabelecido de confecção.

Eis a essência do que se chama cláusula pétrea: preservação das opções político-institucionais fundamentais à manutenção de um determinado modelo de acesso e exercício do poder. Neste ponto convém deixar claro que essência não é o mesmo que tudo. Há um pequeno campo residual.

Verificando-se o que diz a constituição brasileira de 1988 a respeito, observa-se que a declaração de intenções é relativamente coerente. Pretende-se que estão resguardadas a forma do Estado, a separação dos poderes desse Estado e garantias individuais e coletivas mínimas de integridade física, econômicas e culturais (ideológicas). Esse é um núcleo posto à parte do exercício do poder soberano do povo – por meio de representantes eleitos – de legislar.

As matérias que não poderiam ser tratadas pelo legislador posterior ao constituinte ficam reservadas ao poder originário, ou seja, àquele não condicionado por parâmetros jurídicos anteriores. Enfim, certos assuntos podem ser disciplinados, por exclusão, pelo legislador ordinário, segundo normas fixadas na constituição.

O problema que surge é a ampliação e a restrição do conceito de cláusula pétrea, muitas vezes dissociada de uma abordagem sistemática e comprometida com a noção de constituição como lei política fundamental e superior às demais normas. Interpretar a constituição segundo casuísmos não é desviante se o objeto são suas normas mais flexíveis. Contudo, se as flexibilizações interpretativas dirigem-se à parte relacionada à conformação do Estado, afronta-se a própria constituição.

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A cláusula pétrea abriga, então, aquilo que somente o constituinte originário pode suprimir. Dito de forma mais brusca, as matérias constitucionalmente intangíveis reservam-se aos rompimentos institucionais muito próprios de golpes de estado e de revoluções. O poder constituinte derivado não as alcança, o que conduz a uma conclusão assustadora para os mais formalistas: o poder soberano está muito além do mandato popular conferido segundo regras jurídicas.

O caráter aparentemente aberto e genérico da enunciação das cláusulas pétreas não deve conduzir à sua utilização oportunista, sob argumentos, ora de muita restritividade, ora de muita flexibilidade. Importa buscar seu sentido exato, o que não se revela tarefa impossível sob parâmetros da teoria do Estado.

Elas relacionam-se à conformação do poder estatal e aos seus limites e não são propositivas, mas garantidoras: primeiramente, do Estado contra sua fragmentação e deformação e; em segundo lugar, das pessoas contra os excessos do Estado. Trata-se de tentar evitar a desintegração do poder soberano e de evitar que esse poder representado pelo Estado desintegre as esferas individuais.

O constituinte híbrido de1988 foi bastante claro na enunciação das cláusulas pétreas, o que contrasta com a prolixidade evidente da constituição. Em meio a enorme coleção de disposições materialmente inconstitucionais, encontram-se as quatro restrições do artigo 60. Não se deliberará sobre emendas tendentes à abolição da federação, do voto direto, secreto, universal e periódico, da separação dos poderes e dos direitos e garantias individuais.

Por exclusão, todo o resto pode ser objeto de deliberação, o que convém dizer claramente porque criou-se o hábito de criticar negativamente a constante feitura de emendas à constituição. Ora, se é possível fazê-las e se uma constituição detalhista ao extremo obviamente implicaria constantes mudanças, não é razoável o espanto.

As cláusulas pétreas relativas ao voto popular e aos direitos e garantias individuais parecem ser mais claras. A primeira não deixa margens e chega ao cuidado notável de garantir a periodicidade do voto. Revela-se verdadeira cláusula de democracia representativa, algo que não foi objeto de muita atenção. Com efeito, as atenções sempre se voltaram mais à intangibilidade da separação dos poderes, seja por interesses corporativos imediatos, seja por arroubos de poder.

A segunda, aquela asseguradora dos direitos e garantias individuais, encontra sua explicitação no art. 5. da mesma constituição. Este artigo, monumento à má técnica legislativa, não contém somente direitos e garantias que se podem considerar intangíveis. A redação do art.60, parágrafo 4., inciso IV é expressa na referência a direitos e garantias individuais. O rol do art. 5. contém direitos não propriamente individuais que, a rigor, não se inserem na intangibilidade.

Além disso, muitos dos incisos do art. 5 prestam-se ao estabelecimento de formas de defesa ou exercício dos direitos ali previstos. Tais detalhes não se podem considerar direitos e garantias, senão meios de se proceder. Exemplificando: se há privação injusta de liberdade, pode-se pedir a órgão do judiciário ordem de soltura, pouco importando o nome que se dê à ação, embora o constituinte tenha se ocupado de tais batismos.

A defesa da forma federativa do Estado, enfaticamente, no nível de cláusula pétrea, trai a percepção quase nunca declarada de sua enorme carga de artificialidade. A forma federativa adotou-se com o golpe de 1889 à reboque da república, embora a última não implicasse a primeira. Muitos atribuem o afã federativo à imitação acrítica dos Estados Unidos da América, o que me parece bem razoável.

Após a instalação da república federativa, viu-se sua supressão em algumas oportunidades, sem maiores problemas institucionais que tivessem causa direta nessa supressão. O federalismo tem dimensão efetiva menor que a sua importância formal. Ajustou-se como maneira de estratificação do clientelismo político e cumpre, assim, uma função inegavelmente útil.

A despeito de inúmeras considerações políticas e históricas possíveis sobre a forma federativa, é inegável que se encontra alçada à condição de imutabilidade constitucional. Porém, a utilidade do formato e sua natureza de cláusula pétrea servem bem à sua utilização meramente casuística pelos Estados federados, mormente em matéria de repartição de receitas tributárias.

A despeito do divórcio da forma federativa com a história e da nítida prevalência da União, o constituinte foi coerente ao abrigar-lhe da possibilidade de mudança por vontade constituinte derivado. Enfim, trata-se da forma do Estado e de matéria nitidamente constitucional. Na verdade, os tipos e formas de Estado e de Governo são as primeiras opções realmente constitucionais.

O constituinte, contudo, transpareceu haver opções mais relevantes, estabelecendo um plebiscito para escolha do que chamou formas de governo – que seriam a monarquia ou a república constitucionais – e o sistema de governo – que seriam o parlamentarismo ou o presidencialismo. A confusão terminológica e o caráter de falsa consulta são óbvios, mas não tornam inútil a menção.

As opções aparentemente disponíveis ao eleitorado em sete de setembro de 1993 não se harmonizavam automaticamente com a federação, cuja existência pressupunha-se a qualquer resultado. Apenas como exemplo, considere-se que um eventual resultado favorável à monarquia constitucional parlamentarista seria muito dificilmente harmonizável com a federação.

As considerações acima não se destinam a introduzir discussão e conclusões favoráveis a este ou aquele formato, mas a deixar claro o tipo de matéria e de opção político institucional que caracterizam materialmente uma norma constitucional. A constituição a salvo de mudanças posteriores é um núcleo que diz respeito à conformação do Estado e à defesa dos cidadãos frente a esse Estado.

A cláusula da separação dos poderes é tributária de idéia um tanto fetichista, cuja leitura quase sempre é restritiva. O constituinte teve a enorme felicidade de enunciá-la sem especificar quais são os poderes separados. Na verdade, a soberania popular pode ser desdobrada em tantos poderes quantas forem as funções estatais convenientes a certo lugar e tempo.

Convém, todavia, que sejam separados os poderes, no sentido de poderem exercer suas funções próprias com independência. Convém, ainda, lembrar – embora teoricamente óbvio – que separam-se poderes estatais e, não se distingue a noção de soberania popular, fundamento do próprio estabelecimento da separação. O poder constituinte originário pode julgar oportuno não estabelecer a divisão ora abordada.

Em muitos Estados, essa divisão é realizada de formas diversas, o que não se deveria esquecer para afastar certa tendência a julgar a tripartição algo inescapável. A existência de poderes informais fundados na detenção de capitais, por exemplo, serve para lembrar que há múltiplas nuances a penetrar a ordem formal.

Novamente, a despeito de várias perspectivas possíveis de abordagem da questão, além do foco jurídico, a colocação da separação dos poderes estatais entre as cláusulas pétreas é indicativo do tipo de matéria merecedor de imutabilidade constitucional.

A divisão de poderes estabece-se segundo o critério de função a se desempenhar. Daí, a independência, corolário da separação, existe para assegurar que a função será exercida adequadamente, a partir de critérios próprios e pré-estabelecidos. Vista por outro lado, a separação de poderes estatais evidencia que os poderes funcionais resultantes são partes do Estado e, consequentemente, buscam legitimidade institucional na mesma norma fundante.

A tomada de uma decisão que se encontre no âmbito de um poder estatal não deve sofrer influências de outro, nem devem os poderes deixarem acontecer a interpenetração de funções próprias, como forma de disfarce da ineficiência altamente custosa de todos.


Algumas conclusões

As chamadas cláusulas pétreas apontam para o real sentido de constituição, pois são dotadas de algo muito extremo: a pretensão de estar a salvo de qualquer modificação ordinária. Essa imutabilidade estabelece nítida diferença entre normas constitucionais. Umas, têm sua supremacia delimitada apenas por aspectos formais, outras simplesmente não podem ser objeto de deliberação. A opção do constituinte originário – independentemente de sê-lo em sentido próprio – revela-se nas cláusulas pétreas.

A rigidez constitucional é o indicativo seguro de seu núcleo de escolha político-institucional, ou seja, do que é matéria de constituição. Sempre haverá margens de interpretação, umas utilizadas para buscar sentidos reais, outras para obter posições relacionadas a interesses pontuais de certos grupos que se apropriam do Estado.

O Brasil vive situação de confusão de funções estatais, estabelecida e mantida em detrimento da população que custeia o Estado. Superposições e ausências de funções e serviços estatais – a depender do campo de cobertura que se visualize – ocorrem. Estranhamente, os próprios agentes da confusão institucional invocam normas constitucionais, como a cláusula pétrea da separação de poderes, em defesa de inexistentes violações.

Essa apropriação errônea da separação dos poderes por interesses de corporações estatais anuncia um déficit de deliberação democrática. Com efeito, a população, não é chamada a opinar se está de acordo com o funcionamento e o custo dos serviços a que correspondem as funções estatais.

A resultante de tanto quanto foi dito não é visão restritiva de constituição, senão percepção de que núcleo constitucional diz respeito a opções relativas à conformação do Estado e às garantias individuais. Os demais assuntos tratados na constituição têm sua relevância aferida segundo critérios muito próximos daqueles que balizam a legislatura ordinária.

As várias alterações promovidas na constituição brasileira de 1988 revelam a natureza ordinária da maioria de seu texto, mais que a realização de mutilações sem critérios. É surpreendente notar que o núcleo permanece e mostrou-se possível sua manutenção.

Sobre o autor
Andrei Lapa de Barros Correia

procurador federal em Campina Grande (PB), lotado no órgão de arrecadação da Procuradoria Geral da Fazenda

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORREIA, Andrei Lapa Barros. Constituição material, opção política e cláusula pétrea. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1667, 24 jan. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10874. Acesso em: 24 nov. 2024.

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