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A seletividade do sistema penal brasileiro e os crimes tributários:

Agenda 30/03/2024 às 08:20

A seletividade do sistema penal expõe a desigualdade de tratamento entre os criminosos das classes economicamente favorecidas.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 assegura, em seu Art. 5º, o Princípio da Isonomia, segundo o qual todas as pessoas são iguais perante a Lei, devendo esta igualdade ser considerada tanto sob o aspecto formal quanto material, fazendo com que se tenha a obrigação de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade, o que no Direito Penal

importa em dizer que as pessoas (nacionais ou estrangeiras) em igual situação devem receber idêntico tratamento jurídico, e aquelas que se encontram em posições diferentes merecem um enquadramento diverso, tanto por parte do legislador como também pelo juiz (MASSON, 2019, p. 55).

No entanto, na prática o sistema penal brasileiro apresenta tratamento diferenciado entre os indivíduos, violando o Princípio da Isonomia com a seletividade penal presente na legislação brasileira, que estabelece tratamento desigual para criminosos que deveriam ter tratamento semelhante, notadamente beneficiando criminosos de classes econômicas mais elevadas, quando estes deveriam ser punidos da mesma forma que os criminosos das classes menos favorecidas.

Este tratamento diferenciado é reflexo da sociedade brasileira, que apresenta grande disparidade entre as classes, sendo que as classes dominantes ditam as regras, se utilizando do sistema penal para defender seus interesses e proteger seus integrantes que cometem crimes. Isto fica claro no tratamento estabelecido para os indivíduos que cometem crimes tributários, dando a eles o benefício da suspensão do processo diante o parcelamento do débito, e da extinção da punibilidade quando do pagamento, este podendo ser feito a qualquer tempo, beneficiando os criminosos de classe social mais elevada, os criminosos de “colarinho branco”, em detrimento dos criminosos de classes mais baixas que comentem crimes patrimoniais, que ao ressarcirem o prejuízo da vítima possuem o benefício de redução de pena, conforme Art. 16 do CP.

O presente trabalho busca explicitar esta desigualdade de tratamento, demonstrando a presença da seletividade penal na Lei brasileira, criticando o tratamento dado aos crimes tributários e o papel imposto pelo Estado aos órgãos incumbidos da persecução penal referente a estes delitos, e, ao final, trazer formas de enfrentamento deste problema, defendendo a posição que nos parece mais adequada à realidade brasileira.

1. A SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO

A seletividade do sistema penal opera-se em duas fases: a criminalização primária e a criminalização secundária. Na criminalização primária o legislador elenca o bem jurídico a ser protegido, devendo este ser relevante para a sociedade (caráter fragmentário do Direito Penal), e elabora a norma penal que tutelará a proteção deste bem jurídico. Já na criminalização secundária os órgãos estatais aplicam a norma penal a um caso concreto, exercendo ação punitiva sobre pessoas concretas.

Nas palavras de Cléber Masson:

Criminalização primária é o ato e o efeito de sancionar uma lei primária material, que incrimina ou permite a punição de determinadas pessoas. Trata-se de ato formal, fundamentalmente programático, pois, quando se estabelece que uma conduta deve ser punida, enuncia-se um programa, o qual deve ser cumprido pelos entes estatais (...) Criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas. Verifica-se quando os órgãos estatais detectam um indivíduo, a quem se atribui a prática de um ato primariamente criminalizado, sobre ele recaindo a persecução penal (MASSON, 2019, p. 5).

Em uma sociedade em que as classes dominantes, com maior poder econômico, ocupam os cargos mais elevados no governo, como no Brasil, a seletividade do sistema penal reflete a desigualdade presente na sociedade, pois as classes dominantes utilizam o sistema penal em prol de seus próprios interesses. Assim, mesmo sendo anunciado como igualitário, o sistema penal é desequilibrado, pois seu funcionamento é seletivo, sendo aplicado de forma a atingir mais severamente as classes menos favorecidas.

O direito penal tende a privilegiar os interesses das classes dominantes, e a imunizar do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dos indivíduos a elas pertencentes, e ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista, e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para formas de desvio típicas das classes subalternas. Isto ocorre não somente com a escolha dos tipos de comportamento descritos na lei, e com a diversa intensidade da ameaça penal, que frequentemente está em relação inversa com a danosidade social dos comportamentos, mas com a própria formulação técnica dos tipos legais. Quando se dirigem a comportamentos típicos dos indivíduos pertencentes às classes subalternas, e que contradizem às relações de produção e de distribuição capitalistas, eles formam uma rede muito fina, enquanto a rede é frequentemente muito larga quando os tipos legais têm por objeto a criminalidade econômica, e outras formas de criminalização típicas dos indivíduos pertencentes às classes no poder (BARATTA, 2020, p.165).

No Brasil a seletividade do sistema penal, tanto no aspecto da criminalização primária, quanto da secundária, demonstra a desigualdade de tratamento entre os criminosos das classes economicamente favorecidas (criminosos de “colarinho branco”) e os criminosos de classes menos favorecidas, ofendendo, assim, o Princípio da Isonomia, garantia fundamenta previstas explicitamente no texto constitucional. Dessa forma a lei penal não é igual para todos os indivíduos, o status de criminosos é distribuído de modo desigual entre eles (BARATTA, 2020, p. 162).

Os crimes comumente praticados por membros das classes mais elevadas, como a sonegação fiscal, possuem tratamento mais brando estabelecido pelo legislador, enquanto crimes cometidos em sua maioria por indivíduos de poder econômico menor, como o furto, possuem tratamento legal mais gravoso. Sendo assim, o sistema penal oferece benefício aos ricos que praticam crimes financeiros, e ainda não os estigmatiza como criminosos, pois há uma visão de parte da sociedade em que pessoas mais favorecidas, com grau de escolaridade maior, com elevado status social, não cometem crimes, visão já combatida por Edwin Sutherland ao conceituar os “crimes de colarinho branco”, demonstrando que membros das classes dominantes também cometem crimes.

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No Brasil não são raros os exemplos da quebra de isonomia no tratamento de criminosos, tanto no aspecto da criminalização primária, quanto da secundária, no entanto, no presente trabalho focaremos na diferenciação presente no tratamento dado a quem comete crimes tributários.

2. A PERSECUÇÃO PENAL DOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

Os crimes contra a ordem tributária estão tipificados na Lei 8.137/90, e são delitos que tutelam a proteção do erário, o patrimônio público e a ordem econômica, bens de natureza supraindividual, de grande relevância para toda a sociedade. Os Arts. 1º e 2º do referido diploma legal trazem os crimes praticados por particulares, sendo que o Art. 1º traz crimes materiais e o Art. 2º traz crimes formais.

Com relação aos crimes tributários materiais, a Súmula Vinculante 24 estipula que "Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º incisos I a IV da lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo". Sendo assim, não há crime antes da constituição definitiva do tributo, portanto, não pode a ação penal ser iniciada, nem mesmo serem decretadas medidas cautelares. Nesse sentido:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. DESCABIMENTO. RECENTE ORIENTAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. IMPETRAÇÃO ANTERIOR À ALTERAÇÃO DO ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL. ANÁLISE DO ALEGADO CONSTRANGIMENTO ILEGAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. MEDIDA CAUTELAR DE BUSCA E APREENSÃO DEFERIDA E EXECUTADA EM PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO ANTES DA CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. IMPOSSIBILIDADE DE DEFLAGRAÇÃO DA PERSECUÇÃO PENAL. PRECEDENTES DO STJ E DO STF. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA ILEGALMENTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Buscando dar efetividade às normas previstas no artigo 102, inciso II, alínea "a", da Constituição Federal, e aos artigos 30 a 32, ambos da Lei no 8.038/90, a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal passou a não mais admitir o manejo do habeas corpus em substituição a recursos ordinários (apelação, agravo em execução, recurso especial), tampouco como sucedâneo de revisão criminal. 2. O Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se à nova jurisprudência da Colenda Corte, passou também a restringir as hipóteses de cabimento do habeas corpus, não admitindo que o remédio constitucional seja utilizado em substituição do recurso cabível. 3. No caso de o remédio constitucional ter sido impetrado antes da alteração do referido entendimento jurisprudencial, a fim de evitar prejuízos à ampla defesa e ao devido processo legal, o alegado constrangimento ilegal deverá ser enfrentado, para que se examine a possibilidade de eventual concessão de habeas corpus de ofício. 4. A jurisprudência desta Corte e do STF tem orientação firme no sentido da necessidade da constituição do crédito tributário, para que se possa instaurar persecução penal pela prática de crimes contra a ordem tributária, previstos no art. 1º, incisos I e II, da Lei n. 8.137/1990, configurando aquela uma condição objetiva de punibilidade. 5. Não existindo o lançamento definitivo do crédito tributário, revela-se ilegal a concessão de medida de busca e apreensão e de quebra de sigilo fiscal, em procedimento investigatório, visando apurar os crimes em apreço. 6. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, para reconhecer a ilicitude da prova obtida mediante a aludida cautelar, bem como determinar a devolução dos objetos apreendidos na empresa e na residência do ora paciente e levantar a quebra do sigilo bancário, que restou igualmente deferido. (STJ. 5ª Turma. HC 211.393/RS. Relator Min. Campos Marques. Julgado em 13/08/2013, grifo nosso).

Para se apurar o cometimento de crimes tributários materiais antes do lançamento definitivo do tributo não pode a polícia instaurar inquérito policial, podendo apenas realizar diligências prévias diante da notícia da ocorrência de uma conduta criminosa, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

EMENTA HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. SUBSTITUTIVO DE RECURSO CONSTITUCIONAL. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. CRIMES FISCAIS. QUADRILHA. CORRUPÇÃO. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. DENÚNCIA ANÔNIMA. ENCONTRO FORTUITO DE PROVAS. INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE DE TRIBUTOS TIDOS COMO SONEGADOS. 1. Contra a denegação de habeas corpus por Tribunal Superior prevê a Constituição Federal remédio jurídico expresso, o recurso ordinário. Diante da dicção do art. 102, II, a, da Constituição da República, a impetração de novo habeas corpus em caráter substitutivo escamoteia o instituto recursal próprio, em manifesta burla ao preceito constitucional. 2. Notícias anônimas de crime, desde que verificada a sua credibilidade por apurações preliminares, podem servir de base válida à investigação e à persecução criminal. 3. Apesar da jurisprudência desta Suprema Corte condicionar a persecução penal à existência do lançamento tributário definitivo (Súmula vinculante nº 24), o mesmo não ocorre quanto à investigação preliminar. 4. A validade da investigação não está condicionada ao resultado, mas à observância do devido processo legal. Se o emprego de método especial de investigação, como a interceptação telefônica, foi validamente autorizado, a descoberta fortuita, por ele propiciada, de outros crimes que não os inicialmente previstos não padece de vício, sendo as provas respectivas passíveis de ser consideradas e valoradas no processo penal. 5. Fato extintivo superveniente da obrigação tributária, como o pagamento ou o reconhecimento da invalidade do tributo, afeta a persecução penal pelos crimes contra a ordem tributária, mas não a imputação pelos demais delitos, como quadrilha e corrupção. 6. Habeas corpus extinto sem resolução de mérito, mas com concessão da ordem, em parte, de ofício. (STF. 1ª TURMA. HC 106152/MS. Relatora Min. Rosa Weber. Julgado em 29/03/2016, grifo nosso).

Somente após a constituição definitiva do crédito tributário se dará de fato o início da persecução penal, com a instauração de inquérito policial e a consequente propositura da competente ação penal. No entanto, diante do tratamento benevolente dado aos indivíduos que cometem essa espécie de crime, o trabalho dos órgãos encarregados da persecução penal será paralisado ou encerrado com o parcelamento ou pagamento do tributo devido pelo criminoso.

No atual cenário legislativo e jurisprudencial, o parcelamento do débito tributário tem o condão de suspender a pretensão punitiva do Estado, já o pagamento integral do débito tributário extingue a punibilidade, mesmo sendo feito após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, conforme o Art. 9º da Lei 10.684/2003, in verbis

Art. 9o É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento. § 1o A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva. § 2o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.

Nessa mesma direção caminha a jurisprudência:

PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. QUITAÇÃO INTEGRAL DO DÉBITO TRIBUTÁRIO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. AGRAVO DESPROVIDO. 1. Conforme entendimento pacífico nesta Corte, o pagamento integral do tributo, a qualquer tempo, extingue a punibilidade quanto aos crimes contra a ordem tributária. 2. Na hipótese dos autos, o TRF3 asseverou que os débitos tributários que ensejaram o processo criminal foram integralmente quitados. Por isso, de rigor o reconhecimento da extinção da pretensão punitiva. 3. Agravo regimental desprovido. STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 1772918 / SP. Rel. Ministro Ribeiro Dantas. Julgado em 03/08/2021, grifo nosso).

Não se tem a pretensão de exaurir aqui todos os meandros da persecução penal dos crimes contra a ordem tributária no Brasil, mas apenas explicitar o tratamento seletivo que foi estabelecido pelo legislador, beneficiando os indivíduos das classes dominantes que cometem tais crimes, fato que buscamos criticar no presente estudo.

3. A QUEBRA DA ISONOMIA PRESENTE NO TRATAMENTO DADO AOS CRIMINOSOS DO COLARINHO BRANCO

A seletividade do sistema penal brasileiro reflete no Direito Penal o poder das classes dominantes, pois são elas que criam as Leis que beneficiam seus pares que cometem crimes contra a ordem tributária, dando a eles os benefícios da suspensão da pretensão punitiva diante do parcelamento do tributo, e a extinção da punibilidade com o pagamento, podendo este ser feito a qualquer tempo, inclusive após o trânsito em julgado da sentença condenatória.

O sistema penal brasileiro, apesar de ser anunciado como igualitário, estabelece tratamento mais benéfico aos criminosos de “colarinho branco”, que comentem crimes contra ordem tributária, que atingem os cofres públicos, sendo mais prejudiciais do que um delito patrimonial individual, para o qual, o criminoso, normalmente membro das classes menos favorecidas, possui “apenas” a redução da pena no caso de ressarcir o prejuízo da vítima, conforme previsto no Art. 16 do Código Penal: “Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços”.

Dessa forma temos que a seletividade é uma forte característica do sistema penal brasileiro, que é usado como instrumento das classes dominantes para defender seus interesses, protegendo seus integrantes que se utilizam da proteção legal para delinquir sem serem corretamente punidos.

O tratamento conferido aos indivíduos que cometem crimes contra a ordem tributária, além de ferir a isonomia, é um exemplo de como o Direito Penal é utilizado de forma incorreta, pois, apesar de ser a “ultima ratio” do Estado, é utilizado como meio de coerção para arrecadar tributos, atividade para a qual outros ramos do Direito seriam suficientes. Sendo assim, se o objetivo do Estado é o de arrecadar, não é correto se utilizar do aparato penal estatal para tanto, pois existem meios menos gravosos que são aptos ao objetivo de arrecadar tributos. Ainda, sendo somente este o objetivo do Estado, não se faz necessário o uso do Direito Penal, haja vista que o Direito Tributário já possui instrumentos coercitivos próprios para a arrecadação de tributos.

Não temos o Menor pudor em afirmar que, no Brasil, o Direito Penal Tributário é utilizado como mero instrumento de coerção estatal para a arrecadação fazendária. São tantos os benefícios alcançados com o parcelamento e o pagamento do débito tributário que não há dúvida de que o Direito Penal é utilizado única e exclusivamente para promover a arrecadação dos valores devidos pelos contribuintes (BRASILEIRO, 2020, p. 299)

Apesar de ser clara a utilização equivocada do Direito Penal como meio coercivo para a arrecadação tributária, com a previsão dos benefícios já explicitados, diante da importância do bem jurídico tutelado pelos crimes tributários, não se pode afastar a aplicação do Direito Penal sobre tais condutas.

No entanto, considerando que o tratamento desigual estipulado pelo legislador fere o Princípio da Isonomia, o correto seria igualar o tratamento com o dado aos demais crimes patrimoniais, retirando do ordenamento jurídico a benesse de extinção da punibilidade diante do pagamento do tributo, deixando apenas a diminuição de pena prevista no Art. 16 do Código Penal.

Sendo assim, diante dos graves efeitos que os crimes tributários acarretam para a população, ao se igualar o tratamento jurídico dados aos criminosos, a arrecadação do Estado será preservada e o criminoso será punido com uma pena diminuída por ter feito o pagamento do tributo, corrigindo assim, a quebra da isonomia hoje existente.

4. CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, pode-se concluir que o Sistema penal brasileiro apresenta um viés seletivo que acaba por proteger os criminosos de colarinho branco, ou seja, os indivíduos de classe social mais elevada que comentem crimes contra a ordem tributária, dando a eles benefícios que não são estendidos a criminosos comuns, membros de classes sociais menos favorecidas, que cometem crimes patrimoniais, criando assim uma quebra na isonomia que deveria ser aplicada a todo o ordenamento jurídico.

Sendo assim, resta claro que o sistema penal brasileiro reflete a desigualdade social existente há muito tempo em nossa sociedade, que é assolada pela má distribuição de renda, entre outros males, que fazem com que a população mais carente seja a clientela mais comum do sistema penal.

O tratamento conferido aos crimes tributários, além de ferir a isonomia, se presta a utilizar o Direito Penal de forma equivocada, como um instrumento de coerção para promover a arrecadação de tributos, função esta que já possui instrumentos coercitivos aptos em outros ramos do Direito. No entanto, como já explicitado neste estudo, os crimes tributários tutelam bens jurídicos de grande relevância para a sociedade, são crimes cujos efeitos podem atingir grande parte da população, notadamente a parcela mais carente que necessita de serviços públicos básicos como saúde e saneamento. Dessa forma, o Direito Penal não pode se furtar a tutelar estas condutas, devendo punir com rigor os que cometem tais delitos.

Para garantir a punição penal dos indivíduos que cometem crimes tributários, e ainda estimular o ressarcimento ao erário, o tratamento dado a estes criminosos deve ser modificado, retirando as benesses hoje existentes e corrigindo a quebra da isonomia presente hoje no sistema penal, igualando-se ao tratamento dado aos que cometem crimes patrimoniais comuns, qual seja, a aplicação do instituto do arrependimento posterior, previsto no Art. 16 do Código Penal, o qual prevê a redução de pena caso seja reparado o dano ou restituída a coisa por ato voluntário do agente.

A visão crítica aqui apresentada foca no tratamento desigual conferido aos indivíduos que cometem crimes tributários, no entanto este é apenas um dos exemplos de como o sistema penal brasileiro é seletivo. Sendo que esta percepção deve ser difundida para que se corrija essa seletividade perversa, fazendo com que o sistema penal brasileiro deixe de ser seletivo e estigmatizante.


REFERÊNCIAS

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. 6ª ed. Rio de Janeiro/RJ: Editora Revan. 2020.

BRASILEIRO, Renato. Legislação Criminal Especial Comentada. 8ª ed. Salvador/BA: JusPodivm. 2020

HABIB, Gabriel. Leis penais especiais. 9ª ed. Salvador/BA: JusPodivm. 2017.

MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral. 13ª ed. São Paulo/SP: Método. 2019.

OLIVEIRA, Karine Alves Silva. A seletividade do sistema penal: resultando um tratamento diferenciado entre os indivíduos. Uberaba/MG: Boletim Jurídico, a. 19, nº 991.2020. Disponível em: https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/10412/a-seletividade-sistema-penal-resultando-tratamento-diferenciado-entre-individuos . Acesso em 27/03/21.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 8ª ed. São Paulo/SP: Revista dos Tribunais. 2020.

Sobre o autor
Rafael Pródel

Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. Pós-Graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUCRS e em Direito Municipal pela Universidade Anhanguera – Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRÓDEL, Rafael. A seletividade do sistema penal brasileiro e os crimes tributários:: a quebra da isonomia no tratamento dos criminosos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7577, 30 mar. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/108822. Acesso em: 2 nov. 2024.

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