Apenas lhe chegue à notícia ter alguém cometido infração penal, deve a autoridade policial entender em sua apuração (que, nas sociedades civilizadas, é regra precípua não fiquem impunes os crimes). Na instauração do inquérito, porém, urge catar sempre estrita observância dos preceitos legais.
I. Suposto não seja o inquérito outra coisa que a fase preparatória da acusação formal, sua instauração já constitui mal considerável, pois alcança o indivíduo em seu mais precioso bem: a honra.
Assim, para que se não pratique violência grave à sua dignidade pessoal e “status libertatis”, a lei só autoriza o indiciamento do suspeito em inquérito policial se provada a existência de crime.
Ao demais, atento o princípio da presunção de inocência — consagrado pelo texto constitucional (art. 5º, nº LVII, da Carta Magna) —, é não só escusado mas também iníquo submetê-lo a indiciamento formal, de plano, antes que se lhe apurem indícios graves e concretos de culpabilidade.
O trancamento do inquérito policial, todavia, por implicar profunda quebra da atividade da Polícia Judiciária e do Ministério Público, segundo a comum opinião dos doutores, não se admite senão quando salte aos olhos a falta de justa causa para a persecução penal.
De igual passo, haver-se-á com notável circunspecção o Magistrado que, deparando-lhe os autos do inquérito policial forte dúvida sobre as circunstâncias da imputação atribuída ao acusado, tenha por melhor sustar-lhe o indiciamento, que — vem a ponto encarecê-lo — unicamente se justifica após a averiguação da materialidade do ilícito penal e de sua autoria (art. 6º do Cód. Proc. Penal).
II. Instaurada já a persecução penal com o recebimento da denúncia, o indiciamento formal do acusado passa por dispensável e desnecessário. Orientação é essa que frisa perfeitamente com a Jurisprudência, como consta do voto (cuja cópia vai adiante reproduzida) proferido em julgamento pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
PODER JUDICIÁRIO - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Quinta Câmara – Seção Criminal
“Habeas Corpus” nº 1.081.175-3/3-00 - Comarca: Osvaldo Cruz - Impetrante: Dr. Homero Morales Massarente - Impetrado: Dr. AM - Voto nº 8988 - 3º Juiz
Declaração de Voto (vencido, em parte)
– Não se passa de um salto da vida honesta para o crime: “Non si passa di balzo dalla vita onesta al reato” (Malatesta, La Logica delle Prove in Criminale, 1895, vol. I, p. 235).
– Enquanto não liquidada a autoria, prevalece, em caso como o dos autos, a velha parêmia latina: “Cui prodest scelus, is fecit”. Aquele a quem o crime aproveita, esse o praticou.
–“Exame de provas em habeas corpus é cabível desde que simples, não contraditória e que não deixe alternativa à convicção do julgador” (STF; HC; rel. Min. Clóvis Ramalhete; DJU 18.9.81, p. 9.157).
– Matéria de alta indagação, como a que entende com o elemento moral do crime (dolo), é insuscetível de exame em processo de “habeas corpus”, de rito sumaríssimo; apenas cabe na instância ordinária, com observância da regra do contraditório. Trancamento de ação penal por falta de justa causa unicamente se admite quando comprovada, ao primeiro súbito de vista, a atipicidade do fato imputado ao réu, ou a sua inocência.
– É entendimento dominante na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que, uma vez recebida a denúncia, já não cabe ordenar o indiciamento formal do acusado, por implicar-lhe desnecessária e ilegítima violência ao “status dignitatis”, remediável pela concessão de “habeas corpus” (art. 647 do Cód. Proc. Penal).
–“Em havendo propositura de ação penal, o regresso à fase inquisitorial para deferido indiciamento de réus, constitui ilegalidade sanável pelo remédio heroico” (STJ; HC nº 10.340-SP; 6a. Turma; rel. Min. Hamilton Carvalhido).
1. Pedi vista dos autos, após os votos dos eminentes Desembargadores Juvenal Duarte (Relator) e Sérgio Rui (2º Juiz), que denegavam a ordem de “habeas corpus” impetrada pelo Dr. Homero Morales Massarente em favor do Dr. AM.
Havia mister esclarecer meu espírito acerca de vários pontos da questão submetida ao Tribunal.
Ao demais, era uma forma (que a tradição do foro sempre exaltou) de homenagear o advogado que tenha revelado no patrocínio da causa dedicação, bravura e elegância, que tanto elevam seu nobre e árduo ofício!
Por fim, grande impressão me deixara no ânimo a circunstância de que era o filho quem tomara sobre si a defesa do pai, advogado de muito nome, pelo saber e integridade de vida!
Lembrou-me, naturalmente, o caso do legendário Evaristo de Morais, que, defendendo o próprio pai, acabou glorificado (cf. Alberto de Carvalho, Causas Célebres Brasileiras, 1898, pp. 303-356).
2. Perante o Juízo de Direito da 1a. Vara Criminal da Comarca de Osvaldo Cruz correm os termos do processo instaurado contra o Dr. AM, por infração do art. 297 do Código Penal (falsificação de documento público).
Foi o caso que, segundo a denúncia, pelo mês de agosto de 2006, na cidade de Osvaldo Cruz, teria aquele profissional alterado documento público verdadeiro, a saber, a data do termo de juntada do mandado de citação do requerido AM, nos autos da Ação de Cobrança que lhe intentara Kaisuhiro Mizohata, além da data de vencimento do prazo de contestação, anotada na capa de autuação do processo.
Reza ainda a denúncia que o Dr. AM, na condição de advogado do réu, teria praticado a falsificação para tornar tempestiva a contestação protocolada em 1º de setembro de 2006, data em que já decorrera o prazo legal para seu oferecimento (fls. 27/31).
Instaurada a persecução penal em Juízo pelo r. despacho de fl. 89, o acusado, por seu patrono (e filho), pretende o trancamento da ação penal por falta de justa causa, por manifesta atipicidade da conduta (fl. 9). Notou de grosseira a falsificação e, pois, a seu aviso, inócua.
Alega ainda, com fundamento na jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça, que o “ato falsificado não é punível, quando não seja idôneo a produzir prejuízo” (Rev. Tribs., vol. 354, p. 555).
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça opina pela denegação da ordem (fls. 75/77).
3. A denúncia imputa ao paciente fato que em tese constitui crime: art. 297 do Código Penal (falsificação de documento público).
Se a falsificação carecia de capacidade ilusória, como afirma o douto impetrante — o que, segundo graves autores, descaracteriza o delito “em face da ausência da potencialidade lesiva do comportamento” (Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 92) —, é matéria que, por exigir exame aprofundado, não se pode resolver em processo de “habeas corpus”, de natureza especial e rito sumário.
Também a autoria imputada ao paciente, que a repeliu com vigor, não é possível infirmá-la de plano.
Com efeito, o paciente, por seu teor de vida, pode ser apontado como brasão de honra e glória da Advocacia e, destarte, não teria capacidade moral para delinquir, de que falou Malatesta, pois não se passa de um salto da vida honesta para o crime: “(…) non si passa di balzo dalla vita onesta al reato” (La Logica delle Prove in Criminale, 1895, vol. I, p. 235).
Mas, enquanto não liquidada a autoria, prevalece, em caso como o dos autos, a velha parêmia latina: “Cui prodest scelus, is fecit”. Aquele a quem o crime aproveita, esse o praticou.
No interesse mesmo do paciente — que espera lhe seja reconhecida e proclamada a inocência —, não convém interromper o curso da ação penal.
4. Mesmo em processo de “habeas corpus”, permite a tradição de nosso Direito o exame de prova, porque antecedente lógico da verificação da existência (ou não) de justa causa para a instauração da demanda no Juízo Criminal.
Doutrina é esta consagrada por acórdãos infinitos de nossos Tribunais, como o persuadem os adiante reproduzidos por suas ementas:
a) “Exame de prova em habeas corpus é cabível desde que simples, não contraditória e que não deixe alternativa à convicção do julgador” (STF; HC; rel. Min. Clóvis Ramalhete; DJU 18.9.81, p. 9.157);
b) “O habeas corpus é o instrumento tutelar da liberdade. No seu exame o Juiz não pode criar obstáculos tais que venham a tornar letra morta a garantia constitucional. Daí que superado o entendimento de, a priori, não se examinar prova. Como, sem vencer esse obstáculo, se poderá afastar o abuso de poder ou ilegalidade da coação? Para se poder concluir sobre a tipicidade ou não do fato é, em certa medida, indispensável examinar a prova em que se baseia a acusação” (Revista do Superior Tribunal de Justiça, vol. 26, p. 95; rel. Min. José Dantas; apud Alberto Silva Franco et alii, Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, 1999, vol. I, pp. 593 e 595).
Mas — e aqui bate o ponto —, em razão de seu rito sumaríssimo, na via heroica do “habeas corpus” é defeso proceder a análise de matéria de alta indagação; tratando-se de questão que apenas pode ser dirimida na quadra de instrução criminal, não há apreciá-la no raio exíguo do processo de “habeas corpus”.
Trancamento da ação penal por falta de justa causa unicamente se admite quando comprovada, ao primeiro súbito de vista, a atipicidade do fato imputado ao réu, ou sua inocência.
Jurisprudência é esta que tem voga desembaraçada em nossos Tribunais, como o persuadem acórdãos notáveis, de que a seguir vai amostra:
“Somente pode ser reconhecida e afirmada, em sede de habeas corpus — a falta de justa causa —, quando os fatos apontados como delituosos são atípicos ou quando a inocência do acusado se manifesta de forma desembuçada, clara, precisa, límpida e incontestável” (Rev. Tribs., vol. 499, p. 488).
Destarte, não evidenciada existência de constrangimento ilegal para o prosseguimento da ação penal, não tem jus o paciente ao remédio judicial que pleiteia, no que tange ao trancamento da ação penal por falta de justa causa.
5. Em que pese aos louváveis esforços e talentos do ilustre subscritor do parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, mostra-se atendível, bem que em parte, a pretensão do paciente.
No que respeita ao formal indiciamento do acusado, embora não o considerem alguns arestos de nossas Cortes de Justiça constrangimento ilegal, argui manifesta violência ao “status dignitatis” do indivíduo, demais de acarretar-lhe danos de vária ordem, por seu caráter indelével.
Com efeito, e não há quem o não saiba, os registros policiais do indiciamento permanecem “in perpetuum”, ainda que o acusado seja, ao cabo, absolvido.
A autoridade policial, como o reputasse despiciendo, levantou mão do indiciamento formal do paciente; pelo que, não se me antolha desarrazoado seja a providência diferida para o termo da ação penal, na hipótese de ao réu sobrevir condenação.
Não se trata de fraqueza da Justiça punitiva, senão cautela com que devem obrar seus agentes, em ordem a não deitar a perder aqueles que, por insídia ou malícia, foram submetidos a formal indiciamento, ato procedimental cujos estigmas persistem “ad aeternum” nos registros dos órgãos da Polícia.
De que, em casos como o dos autos, têm nossos Tribunais considerado desnecessária, e pois causadora de constrangimento ilegítimo, a determinação do indiciamento formal do acusado, quando já em curso a ação penal, demonstram-no arestos copiosos, dentre os quais merece reproduzido este pequeno rol:
a) “Em havendo propositura de ação penal, o regresso à fase inquisitorial para deferido indiciamento de réus, constitui ilegalidade sanável pelo remédio heroico” (STJ; HC nº 10.340-SP; 6a. Turma; rel. Min. Hamilton Carvalhido; j. 11.4.2000);
b) “Com o recebimento da denúncia não mais se justifica a determinação de indiciamento do acusado” (STJ; HC nº 23.840-SP; 5a. Turma; rel. Min. Felix Fischer; j. 10.2.2004);
c) “Segundo orientação pacífica desta Corte, a determinação de indiciamento formal, quando já em curso a ação penal pelo recebimento da denúncia, é tida por desnecessária e causadora de constrangimento ilegal” (STJ; HC nº 29.466-SP); 5a. Turma; rel. Min. José Arnaldo da Fonseca; j. 4.3.2004);
d) “Conforme entendimento desta Corte, não se justifica a determinação do indiciamento de acusado como consequência do recebimento da denúncia, porquanto se trata de ato próprio da fase inquisitorial” (STJ; HC nº 23.435-SP; 5a. Turma; rel. Min. Jorge Scartezzini; 4.11.2003).
Assim, a dispensa do indiciamento do acusado, em hipótese como a que faz objeto deste remédio judicial, não implica prejuízo aos negócios da Justiça; ao revés, preserva-os da nota de iniquidade.
6. Pelo exposto, concedo em parte ordem de “habeas corpus” ao paciente para sustar-lhe o formal indiciamento até final decisão da causa pelo mérito (se condenatória).
São Paulo, 13 de setembro de 2007
Des. Carlos Biasotti
3º Juiz
III. Coletânea de ementas sobre inquérito policial.
1. Sob pena de constituir violência contra o “status dignitatis” do indivíduo, o indiciamento em inquérito policial a lei unicamente permite em face de prova cabal da existência do crime e de indícios veementes de sua autoria.
2. Procede com excelente critério o Magistrado que, em vista dos elementos confusos e ambíguos do inquérito policial, determina a sustação do indiciamento do suspeito: somente a existência de um princípio de prova da materialidade e da autoria do ilícito penal pode justificá-lo (art. 6º do Cód. Proc. Penal).
3. É entendimento dominante na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que, uma vez recebida a denúncia, já não cabe ordenar o indiciamento formal do acusado, por implicar-lhe desnecessária e ilegítima violência ao “status dignitatis”, remediável pela concessão de “habeas corpus” (art. 647 do Cód. Proc. Penal).
4. “Em havendo propositura de ação penal, o regresso à fase inquisitorial para deferido indiciamento de réus, constitui ilegalidade sanável pelo remédio heroico” (STJ; HC nº 10.340-SP; 6a. Turma; rel. Min. Hamilton Carvalhido).
5. “Cabe ao juiz examinar o inquérito, antes de receber a denúncia, a fim de não submeter o cidadão ao vexame de um processo por fato que não constitui crime” (Rev. Forense, vol. 177, p. 372).
6. “É preciso que haja o fumus boni juris, para que a ação penal tenha condições de viabilidade. E desse controle não deve ser o juiz afastado, porque o direito de defesa, que é garantia constitucinal, torna imperativo que se evitem procedimentos temerários e infundados” (José Frederico Marques, Estudos de Direito Procesual Penal, 1a. ed., p. 17).
7. A existência de crime em tese é elementar da instauração do inquérito e, com maioria de razão, da ação penal. Em ela faltando, estará ausente a justa causa, que é, na frase de J. Canuto Mendes de Almeida, a “causa legal para o devido processo”.
8. Em princípio, não comete ilegalidade nem abuso de poder a autoridade policial que, ao receber “notitia criminis”, determina a apreensão de objetos relacionados com o fato, pois se trata de ato de sua discrição, previsto em lei (art. 6º, nº II, do Cód. Proc. Penal).
9. Na esfera do “habeas corpus”, é possível discutir a legitimidade da “persecutio criminis” para efeito de trancamento da ação penal, desde que manifesta a ilegalidade do ato ou a ausência de justa causa.
10. Para trancar ação penal, ou impedir o curso de inquérito policial, sob o fundamento da ausência de “fumus boni juris”, há mister prova mais clara que a luz meridiana, a fim de se não subverter a ordem jurídica, entre cujos postulados se inscreve o da apuração compulsória, pelos órgãos da Justiça, da responsabilidade criminal do infrator.
11. Só é admissível trancamento de ação penal por falta de justa causa, quando esta se mostre evidente à primeira face.
12. Não há arquivar inquérito policial, exceto se não constituir infração penal o fato nele apurado.
13. Toda a ameaça ao “status dignitatis” do indivíduo deve o Juiz, tão logo lhe venha de molde a ocasião, atalhar com firmeza e vigor, em ordem a não sancionar, com o prestígio de seu nome e autoridade, situação a um tempo ilegal e injusta; não raro, iníqua.
l4. Trancamento de inquérito policial, sob color de falta de justa causa, é providência excepcional, que apenas se defere em caso de prova terminante de não constituir crime, em tese, o fato imputado ao paciente, ou estar-lhe demonstrada cabalmente a inocência.
15. O art. 20 do Código de Processo Penal, embora considere o sigilo inerente ao inquérito policial — “A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade” —, não o confunde com o segredo de justiça, ao qual, unicamente, não poderá ter acesso o advogado (art. 7º, § 1º, da Lei nº 8.906/94). “O sigilo não atinge o advogado, salvo nos processos sob o regime de segredo de justiça” (Julio Fabbrini Mirabete, Código de Processo Penal Comentado, 3a. ed., p. 59).