3. Aspectos Jurídicos
Apresentados os dispositivos legais relativos ao caso, há agora a necessidade de uma maior argumentação jurídica (e não apenas legal) sobre o assunto. Inicialmente, há de se destacar, como desenvolvido no parecer, que o princípio (ou objetivo, como dispõe a Constituição) da universalidade da cobertura e do atendimento deve ser observado em absolutamente todos os casos de concessão de benefícios, valendo este na observância, pelo legislador, do princípio da igualdade, a impedir a ocorrência de exclusão social [14]. Significa dizer, em outras palavras, que todos os residentes no território nacional terão direito às prestações do sistema previdenciário [15], desde que implementem os requisitos legais.
Assim, os trabalhadores rurais não podem ser privados de seus direitos previdenciários, garantidos constitucionalmente, pelo motivo de trabalharem em terras de ocupação irregular. A questão fundiária não pode se "misturar" à questão previdenciária, ainda mais para impedir o exercício de direitos garantidos na Carta Magna.
Ainda que o constituinte, como foi aventado no tópico anterior, tenha dado ao legislador ordinário a função de determinar os requisitos para a concessão de benefícios aos segurados especiais, este não impôs como requisito formal a comprovação da licitude da terra onde o lavrador labuta. Há, pela lei, a necessidade de comprovação da atividade rural, do tempo e da forma como é exercida. A questão fundiária não pode ser óbice à concessão dos benefícios, por ausência de legislação que assim determine, não podendo o administrador público e nem o Poder Judiciário interpretar restritivamente uma norma constitucional e legal de garantia de direitos fundamentais.
Vale ainda ressaltar que os benefícios previdenciários possuem eminente caráter alimentar, sendo corolários do princípio da dignidade da pessoa humana, tão festejado, porém pouco implementado na atualidade.
É cediço o problema fundiário existente no Brasil, porém o fato de a posse do imóvel onde se exerce atividade de lavoura ser ilícita não pode negar aos trabalhadores (que efetivamente trabalharam e comprovaram essa condição) um direito elementar à dignidade em casos de infortúnio ou velhice.
4. A Concessão de Benefícios Previdenciários aos Segurados Especiais no Poder Judiciário
O Poder Judiciário lida diariamente com processos de trabalhadores rurais que pleiteiam, em face do INSS, a concessão de benefícios previdenciários, na condição de segurados especiais. A seara jurídica de maior movimento para a concessão desses benefícios é o Juizado Especial Federal.
Nesses processos, o que se observa é a necessidade de comprovação dos requisitos específicos de cada benefício (aposentadoria por idade, pensão por morte, auxílio-doença, dentre outros), além de prova da qualidade de segurado, que pode ser feita através de vários documentos e testemunhas.
Os documentos referentes à terra onde o lavrador exerce a sua atividade são de extrema importância, uma vez que formam um conjunto probatório robusto da condição de trabalho dos reclamantes (pretensos segurados), porém não são obrigatórios, havendo a possibilidade de concessão dos benefícios sem a existência de documentos do imóvel no qual se desenvolve a labuta. Nesses casos, não se indaga sobre a licitude da terra, importando mais a sua localização e a atividade nela exercida.
Há processos, inclusive, em que apenas a certidão de casamento do lavrador faz início de prova material da sua profissão, sendo o convencimento do juiz formado por uma única prova documental e pelas provas testemunhais, nada sendo indagado a respeito da titulação da terra. Esse entendimento já foi sumulado pela Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais, aduzindo que "a certidão de casamento ou outro documento idôneo que evidencie a condição de trabalhador rural do conjugue constitui inicio razoável de prova material da atividade rurícola." [16]
Em oposto, o simples fato de existirem documentos que comprovem a propriedade de imóvel rural não forma inicio de prova material do exercício de atividade rural, conforme precedente jurisprudencial:
PREVIDENCIÁRIO - APOSENTADORIA POR IDADE - SEGURADO ESPECIAL - ART. 11, VII, ART. 26, III, ART. 39, I E ART. 142 DA LEI 8.213/9- INICIO DE PROVA MATERIAL AUSENTE - BENEFÍCIO INDEVIDO. 1.Constando dos autos documento do CNIS, informando que o marido da autora foi aposentado por tempo de contribuição, na profissão de industriário, de natureza urbana, fica afastado como início de prova material documento anterior (Título Eleitoral) em nome deste para fins de comprovar o exercício da atividade rural da autora. 2. Apenas documentos de propriedade não servem como início de prova material do exercício de atividade rural. 3. Não comprovado o exercício de atividade rural, em período igual ao número de meses correspondentes à carência do benefício, conforme tabela progressiva do art. 142, da Lei 8.213/91, indevida a aposentadoria por idade. 4. Não restou atendido o disposto no art. 55, § 3º da Lei 8.213/91, uma vez que ausente início razoável de prova material.5. Apelação improvida. Sentença mantida.
AC 2006.01.99.042704-8/MG; APELAÇÃO CÍVEL Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL LUIZ GONZAGA BARBOSA MOREIRA Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA Publicação: 26/11/2007 DJ p.36 Data da Decisão: 03/09/2007. (destaque posto)
Pelo que se pode constar, o Poder Judiciário não condiciona, em momento algum, a concessão de benefício previdenciário à comprovação da propriedade ou da licitude da ocupação do imóvel onde a atividade é exercida, e nem poderia fazê-lo, uma vez que ausente qualquer dispositivo legal nesse sentido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todas as considerações esposadas no presente artigo, conclui-se que:
1. O ParecerCONJUR/MPS/N°. 10/2008 não padece de inconstitucionalidade, tampouco de ilegalidade.
2. O Sistema Previdenciário rege-se primordialmente pelo princípio da universalidade de cobertura e atendimento, reflexo direto do princípio basilar do ordenamento jurídico brasileiro: a dignidade da pessoa humana.
3. O Ordenamento Previdenciário não pode excluir direitos fundamentais dos cidadãos em razão de questões fundiárias, zelando por sua autonomia como ramo do Direito.
4. O reconhecimento dos direitos previdenciários aos ocupantes irregulares de terras alheias não deve ser compelido sob o argumento de que tal fato fomenta invasões de terra, uma vez que a terra é o meio de produção, importando efetivamente o exercício da faina rural.
5. O Direito não pode ser omisso em relação à parcela menos favorecida da sociedade que, mesmo em terras alheias, produz efetivamente (e comprovadamente) e merece os direitos cabíveis aos demais trabalhadores, nos termos da lei e da Constituição Federal.
BIBLIOGRAFIA
BRASIL, Ministério da Previdência Social. Enquadramento do posseiro ocupante de margens. Parecer CONJUR/MPS/N°. 10/2008. D.O.U. N°. 13, de 18 de janeiro de 2008. Relator Felipe de Araújo Lima. Brasília.
CASTRO, Alberto Pereira de Castro; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 7 ed. São Paulo: LTr, 2006.
MARTINS, Sergio Pinto. Fundamentos de direito previdenciário. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2004.
PREVIDÊNCIA.http://menta2.dataprev.gov.br/df/prevdoc/benef/pg_internet/iben_visudoc.asp?id_doc=9. Acesso em 02 fev. 2008.
SANTOS, Maria Ferreira dos. Direito Previdenciário. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
NOTAS
01 Art. 309. Havendo controvérsia na aplicação de lei ou de ato normativo, entre órgãos do Ministério da Previdência e Assistência Social ou entidades vinculadas, ou ocorrência de questão previdenciária ou de assistência social de relevante interesse público ou social, poderá o órgão interessado, por intermédio de seu dirigente, solicitar ao Ministro de Estado da Previdência e Assistência Social solução para a controvérsia ou questão.
§ 1º A controvérsia na aplicação de lei ou ato normativo será relatada in abstracto e encaminhada com manifestações fundamentadas dos órgãos interessados, podendo ser instruída com cópias dos documentos que demonstrem sua ocorrência.
§ 2º A Procuradoria Geral Federal
Especializada/INSS deverá pronunciar-se em todos os casos previstos neste
artigo.
02 BRASIL, Ministério da Previdência Social. Enquadramento do posseiro ocupante de margens. Parecer CONJUR/MPS/N°. 10/2008. D.O.U. N°. 13, de 18 de janeiro de 2008. Relator Felipe de Araújo Lima. Brasília, p. 89.
03 Citando BALERA, Wagner. Sistema de Seguridade Social. São Paulo: LTr, 2000. p. 18.
04Enquadramento do posseiro ocupante de margens. Cit. p. 89.
05 Idem, p. 90.
06 Idem, p. 90.
07 Idem, p. 90.
08 Idem, p. 90.
09 Idem, p. 91.
10 Regime Geral da Previdência Social.
11 A Emenda Constitucional N°. 20/1998 excluiu da lista de segurados especiais os garimpeiros, sem modificar as demais disposições do art. 195, §8° da CF.
12 CASTRO, Alberto Pereira de Castro; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 7 ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 195-196.
13PREVIDÊNCIA.http://menta2.dataprev.gov.br/df/prevdoc/benef/pg_internet/iben_visudoc.asp?id_doc=9. Acesso em 02 fev. 2008.
14 SANTOS, Maria Ferreira dos. Direito Previdenciário. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 05.
15 MARTINS, Sergio Pinto. Fundamentos de direito previdenciário. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2004, p.30.
16 Súmula N°. 6 da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais.