4. INÉDITO CASO DE PERFILHAMENTO ENTRE IRMÃOS PELA JUSTIÇA DO MARANHÃO
Em pleno período de pandemia, procuraram a Defensoria os adultos Rosana dos Santos Silva (44 anos de idade) e Roziel Matos dos Santos (35 anos de idade) e o adolescente Carlos Alberto Barbosa dos Santos (17 anos de idade), todos possuindo um vínculo biológico apenas por parte de pai, sendo assim denominados de “irmãos consanguíneos ou unilaterais”.
Com efeito, apresentaram-se como “pais e filho” e não irmãos, pretendendo, portanto, a regularização da situação fática e consolidada através da medida de adoção.
Narraram que o adolescente Carlos teria passado por drama vivenciado em sua infância. Quando ainda possuía 1 (um) ano e alguns meses de vida, seus pais biológicos – que eram contumazes no consumo de bebidas alcoólicas – acabaram negligenciando gravemente seus cuidados, abandonando-o. Por essa razão, o infante foi levado pelo Conselho Tutelar da Capital a uma determinada casa de apoio de crianças e adolescentes em situação de risco de São Luís/MA (SITE G1 – Maranhão: notícias e vídeos – Globo, 2023).
Desamparado pelos pais biológicos, a notícia do caso acabou chegando ao conhecimento dos demais familiares, especialmente dos irmãos unilaterais, pretensos adotantes. Em decorrência disso e visando garantir a manutenção do laço familiar, Rosana e Roziel ficaram desde então responsáveis por Carlos, proporcionando-lhe um lar com bastante amor, carinho, afeto e proteção integral (SITE DPEMA, 2023).
O adolescente Carlos sempre considerou Rosana e Roziel como seus “verdadeiros pais” , pois somente quando atingiu determinado grau de compreensão e maturidade tomou conhecimento, aos 11 (onze) anos de idade, que os pretensos adotantes eram também seus irmãos unilaterais e que seu suposto avô de consideração era, na verdade, seu pai biológico, este já falecido. Destaque-se que tal descoberta, embora importante, não trouxe quaisquer problemas para os pretensos adotantes e, principalmente, para o adolescente, não tendo o condão de modificar algo já devidamente consolidado.
Afinal, nada mais natural do que reconhecer a manifestação inequívoca de vontade dos envolvidos, sendo todos favoráveis à adoção, bem como por tal condição ser de pleno conhecimento público pela comunidade, havendo reciprocidade do status “pais e filho”.
Diante do paradigmático caso, a família contou com a assistência da Defensoria Pública do Estado do Maranhão, que, através do Núcleo Ecológico da Zona Rural de São Luís, levou à Justiça o pedido para que fosse feita a primeira “Adoção Germana”, que é o perfilhamento entre irmãos, tratando-se de um caso inédito no Estado.
Sustentou-se a relativização excepcional do art. 42, §1º, do ECA, possibilitando que os adotantes (irmãos adultos) adotassem o adolescente (irmão caçula), pois estaria comprovado o vínculo socioafetivo consolidado entre eles, não havendo ainda a presença de nenhum elemento configurador de confusão de ordem moral, emocional e patrimonial entre os interessados.
O precedente inovador foi exarado na decisão proferida em 21 de agosto de 2023, pelo Juiz de Direito Dr. José Américo Abreu Costa, titular da 1ª Vara da Infância e da Juventude de São Luís/MA, no PJE nº 0800148-50.2022.8.10.0002, confirmando tese suscitada pela Defensoria Pública do Estado do Maranhão acerca da possibilidade de reconhecimento da “Adoção Germana” no direito brasileiro, aplicando-se ao caso concreto em apreço. Apontamos alguns trechos da sentença:
“(…)
20. Compulsando os autos percebe-se que o processo encontra-se regular, sem falhas ou nulidades que possam comprometer a prestação jurisdicional e, que por seu conjunto probatório, constata-se que a ação deve ser julgada procedente. Ressalte-se, ainda, que a jurisdição foi perpetuada em face do processo ter se iniciado durante a adolescência do adotando e chegando ao seu final hoje, pouco tempo depois de atingir a maioridade.
21. Conforme exposição apontada na exordial, o jovem Carlos Alberto Barbosa dos Santos passou por drama vivenciado em sua infância. Quando ainda possuía 1 (um) ano e alguns meses de vida, os seus pais biológicos – que eram contumazes no consumo de bebidas alcoólicas – acabaram negligenciando gravemente nos seus cuidados, abandonando-o, razão pela qual acabou sendo o infante levado pelo Conselho Tutelar da Capital à determinada casa de apoio de crianças e adolescentes em situação de risco de São Luís/MA.
22. Consigna-se na oportunidade, que este Juízo se pauta de forma estrita pela ordem de inscrição junto ao SNA e pelas suas exceções previstas na legislação e jurisprudência em vigor.
23. O genitor do adotando já é falecido e sua genitora encontra-se em local desconhecido, tendo sua citação por edital.
24. No caso em tela, o adotando Carlos Alberto Barbosa dos Santos já possui sólidos vínculos familiares, afetivos e emocionais com os requerentes.
25. Vale consignar, que o adotando é irmão caçula do casal de irmãos adotantes. E, neste ponto, entendo que a literalidade da vedação da adoção por irmãos deve ser mitigada, tendo em vista as circunstâncias deste caso concreto. O adotando não teve referência emocional com os pais biológicos, sendo criado por seus irmãos, que são suas reais referências arquetípicas materna e paterna. Ressalte-se, que após o neoconstitucionalismo, o brocardo segundo o qual a clareza da lei dispensa interpretação, foi mitigado haja vista que a interpretação constitucional contemporânea aponta para a preponderância dos princípios em casos de notada complexidade fática e jurídica, os denominados hard cases.
26. Por outro lado, a nível de prova técnica, o parecer conclusivo do relatório psicológico emitido pela equipe técnica interprofissional deste juízo foi favorável à concessão da adoção do adotando ao casal de irmãos requerentes, como reproduzido a seguir: "A partir destas reflexões, cabe ressaltar que o presente processo se refere não a uma criança, mas a um jovem, prestes a atingir a maioridade. Dentro do que foi possível observar, Carlos indicou ser uma pessoa responsável, consciente e amadurecida, portanto em condições de discernir sobre o que considera mais adequado para si, hoje e no futuro. Desta forma, caso seja possível juridicamente a concessão da presente adoção, sugerimos que seja considerado o desejo expresso pelo jovem adotando em relação à sua adoção pelos irmãos." (ID 79255156, Relatório Psicológico).
27. O Ministério Público, em parecer de mérito nesta audiência, apontou sólidas razões para o deferimento do pedido formulado pela parte autora, que deve ser atendido nos termos dos artigos 22 e seguintes do ECA.
28. A Constituição Federal determina em seu artigo 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. – grifamos –
29. O Estatuto da Criança e do Adolescente determina com clareza: Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. Art. 43. A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos.
30. Segundo os contornos doutrinários de Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel (Curso de Direito da Criança e do Adolescente - Aspectos Teóricos e Práticos, Lumen Juris, RJ, 2008, P.28), o princípio da proteção integral exsurge como corolário basilar do Estatuto da Criança e do Adolescente: “Trata-se de princípio orientador tanto para o legislador como para o aplicador, determinando a primazia das necessidades da criança e do adolescente como critério de interpretação da lei, deslinde de conflitos, ou mesmo para elaboração de futuras regras. Assim, na análise do caso concreto, acima de todas as circunstâncias fáticas e jurídicas, deve pairar o princípio do melhor interesse, como garantidor do respeito aos direitos fundamentais titularizados por crianças e jovens.”
31. Desta forma, tem-se que a medida protetiva mais acertada é destituição do poder familiar da genitora e a concessão da adoção de Carlos Alberto Barbosa dos Santos em favor do casal requerente Rosana dos Santos Silva e Roziel Matos dos Santos, pois este continuará a proporcionar toda assistência material, moral e afetiva ao mesmo, estando, assim, atendido o melhor interesse deste e atendidos os ditames do artigo 43 do ECA.
32. Isto posto, rejeito a preliminar arguida pela Curadoria Especial, JULGO PROCEDENTE o pedido autoral e, por consequência: A – com fulcro no artigo 227 da CF e artigos 1º, 22, 24, 70, 98 do ECA, destituo o poder familiar da senhora Maria Raimunda Barbosa, em relação a seu filho Carlos Alberto Barbosa dos Santos e; B – com fulcro nos art. 43. e 148, III todos do ECA, defiro aos requerentes Rosana dos Santos Silva e Roziel Matos dos Santos, a adoção de Carlos Alberto Barbosa dos Santos, que deverá ser registrado, sob o nome de CARLOS ALBERTO MATOS DOS SANTOS, consignando como avós, tanto paternos quanto maternos, José Alberto Cardoso dos Santos e Maria de Jesus Matos dos Santos, aplicando-se à presente adoção os efeitos legais do art. 41. do ECA. Em face da presente sentença, determino a expedição mandado ao Cartório competente, visando o cancelamento do registro original do adotado e confecção de novo registro, onde não poderá constar nenhuma observação sobre a origem do ato, conforme disposto no artigo 47 do ECA e seus parágrafos. Decisão proferida em audiência. Partes intimadas neste ato. Sem custas. Consignam as partes, assim como o Ministério Público Estadual, pela dispensa ao prazo recursal.” (grifos nosso)
Como visto, aqueles que formavam uma família anaparental, com o deferimento do pleito da referida adoção, passaram a compor uma família adotiva e eudemonista.
“O que mais me emocionou foi que uma vez eu estava saindo para o serviço e ele disse: ‘pai, bom trabalho’. Aquilo, para mim, foi uma resposta do que ele já estava decidindo. Com a ajuda da Defensoria Pública, que deu atenção e insistiu no nosso caso, hoje nós somos muito felizes e gratos. É como se eu pudesse levantar um troféu e dizer: ‘Eu consegui!’. Se nós conseguimos, outras pessoas também podem’”, afirma o garçom Roziel Matos dos Santos (SITE DPEMA, 2023, grifo nosso).
“Eu nunca deixei meus irmãos para trás e eu digo muito para eles que, se um dia acontecer algo comigo, que cuidem um do outro. Só de saber que a gente pega uma pessoa para criar, sem a gente ter colocado aquela pessoa no mundo, é uma satisfação muito grande. Agora que ele vai poder usar o meu nome, eu vou poder dizer em qualquer lugar que eu estiver: ‘Sou mãe e mãe também, registrado em cartório’”, diz a irmã mais velha, e agora mãe de Carlos Alberto, a professora Rosana dos Santos Silva (SITE DPEMA, 2023, grifo nosso).
“Agora eu quero começar a fazer o meu Bacharelado em Direito e ter uma carreira na justiça. Por tudo o que já passei, um pouco de justiça e reparação é bom”, conta o estudante Carlos Alberto Matos dos Santos (SITE DPEMA, 2023, grifo nosso).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A admissibilidade da “Adoção Germana” deve ser vista como um grande avanço, pois se compatibiliza com as novas configurações familiares, que possuem elementos eudemonistas. Os laços de afeto, a estabilidade emocional e a busca pela felicidade plena dos membros são fatores determinantes, orientados principalmente pelos princípios da prioridade absoluta, da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente.
Apesar dos entraves legais para o reconhecimento da referida adoção, observa-se que, no caso em comento, restava nítida a existência de um laço socioafetivo devidamente solidificado e construído entre os envolvidos, além do pleno desejo do jovem de ser adotado e continuar convivendo com os seus “verdadeiros pais”, embora irmãos consanguíneos.
A decisão emitida pelo Juiz de Direito Dr. José Américo Abreu Costa é pioneira no Maranhão, e talvez até no país, sendo justa e representando uma reparação ao jovem, que agora já conta com 18 anos, pela sua história de vida. Isso, de fato, é proteção integral, por garantir tais direitos a Carlos Alberto. O caso é emblemático e servirá de matriz para o reconhecimento de novas situações análogas.
Não há dúvidas de que tal adoção assegura, inclusive, o “direito à felicidade afetiva”, levando-se em consideração a importância do amor, do afeto e das relações pessoais na construção de uma vida digna e realizada. O reconhecimento e a proteção desse direito são fundamentais para a promoção da igualdade, da justiça e do bem-estar emocional de todas as pessoas.
Permitir a adoção por diferentes arranjos familiares pode contribuir significativamente para a felicidade e o desenvolvimento saudável das crianças e dos adolescentes adotados. Pensemos nisso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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REsp nº 1785754-RS .
Abstract: The admissibility of “german adoption” as a new instrument in the pursuit of the full happiness of its members (eudaimonistic family) and the unprecedented judicial precedent were topics addressed in this work, without the slightest intention of exhausting the subject.
Key words: Germane adoption. Eudaimonistic family. Complete happiness. Unprecedented judicial precedent. Consolidated socio-affective bond. Principle of absolute priority. Principle of comprehensive protection. Best interest principle.