Resumo: Assentada a teoria da Constituição na maturação democrática e em elementos clássicos de identificação de uma concepção de mundo moderno, como a separação dos poderes constituídos e o controle das leis, seus paradigmas, que outrora pretendiam transpor limites nacionais, mostram-se cada vez mais acinzentados, em razão da complexificação da sociedade contemporânea. Mas senão plenamente possível, a interconstitucionalidade pode se revelar ao menos eficiente compromisso em torno de um discurso consensual sobre direitos universais (artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789), como, a exemplo, o combate à corrupção sistêmica.
Palavras-chave: Interconstitucionalidade, Crise, Limites, Senso comum. corrupção sistêmica
Introdução
“As nações todas são mistério, cada uma é todo o mundo a sós”1.
Diante da crise generalizada que assola a comunidade global, a proximidade dos conceitos de nacionalidade e constitucionalismo, filhos legítimos da Era Moderna, que se mesclam como que formando um único corpo, unigênito, parece recobrar seu lugar na História. Dessa forma, impõem, por assim dizer, grandes desafios aos paradigmas que sustentam o ideário de interconstitucionalidade, à própria teoria constitucional. Se a magnitude do avanço humano no último período secular, assentada proeminentemente numa tecnologia que embora não ignore pelo menos redimensiona a relação espaço-tempo, inviabiliza o isolacionismo, o sentimento nacional de conformação de um mundo próprio, a sós, por outro lado, tampouco cauteriza o desejo de integrar uma única nação, planetária. E é nesse limbo pendular que o presente ensaio se permite balançar, apontando, entre vieses dicotômicos, áreas de consenso que possibilitem o desenvolvimento teórico e a melhoria das relações internacionais sobre temas de interesse comum e evolução universal. Como, a exemplo, o combate à corrupção. Senão plenamente possível, o constitucionalismo global ao menos possibilita um compromisso em torno do discurso consensual sobre alguns direitos universais.
1. O estado da arte. Uma breve retomada histórica do constitucionalismo. A definição epistemológica do problema. Hipótese e metodologia
Conquanto embrenhado e inebriado pela grande narrativa de pertencimento e nacionalidade, consubstanciada em meio a glórias e feitos históricos da primeira metade do milênio anterior2, é possível admitir que a genialidade pessoana transpunha uma mensagem não apenas sobre o passado, mas em relação a seu próprio tempo. Como que uma alcântara, um olhar, uma ponte; enfim, uma passagem para o futuro. Se “cada uma [nação] é todo o mundo a sós”, nota-se em Pessoa, homem do século XX e, portanto, contemporâneo, sabedor do potencial globalizante da humanidade, indisfarçável distanciamento do conceito de interconstitucionalidade, de constitucionalidade global, de interculturalidade; do multilevel constitutionalism, dito noutras palavras.
Concebe-se, pois, um potencial conflituoso do paradigma teórico do constitucionalismo, passível de perene discussões e, consequentemente, de parâmetros revisionais. Conquanto assentado em elementos definidos, o arranjo constitucional possui características específicas vinculadas ao desenvolvimento cultural, político, social, jurídico etc. de cada povo. Não por outra razão, os blocos supranacionais mais exitosos baseiam sua prosperidade quase que essencialmente na economia. São antes, portanto, conglomerados meramente econômicos. E sob um viés de análise dos países que o integram e que deles se beneficiam, pouco diferem, diriam alguns cientistas políticos, dos ideais imperialistas de antanho. Decorrência da globalização que, no dizer de SILVA,
“[...] trata-se de um poder designador de um processo de uniformização entre as nações e os povos, com a consequente transformação dos Estados em Super- Estados e Nações em Sociedades. Apresenta-se, assim, na figura de um processo avassalador nunca antes visto - em termo de velocidade dos acontecimentos -, na história da humanidade. As transformações impostas pelo processo de globalização são ferozes e ininterruptas. Daí, em virtude de suas características, surgirem as mais diversas consequências. Podendo ser apontadas consequências de ordem social e política. Quanto à primeira, a relação escravocrata contemporânea ‘disfarçada na extinção gradual do instituto do emprego, na política de baixos salários, nas dificuldades intencionais em escala crescente do acesso à educação e do aperfeiçoamento profissional, na negação do acesso tecnológico etc.’, pautada no vínculo explorador e explorado; e uma relação de inclusão e exclusão. Quanto à segunda, a figura impotente do Estado Soberano no exercício do seu poder político diante de um poder econômico global, numa situação de substituição da economia real pela economia financeira, como se funcionasse como um Estado virtual [...]” (2005, p. 396).
No mesmo sentido STIGLITZ (2003) e AMARTYA SEN (2001), ao se referirem aos malefícios da globalização. Se é verdade que nunca se produziu tanto no planeta, não menos verdade é que nunca se viu tamanha desigualdade social. Um devir, pois. Antigo contexto sócio-político requentado e matizado com as propriedades do presente, que retorna de forma reiterada, numa concepção potencialmente eterna do mesmo nietzschiano ou do diferente deleuzeano, fortalecendo ideias que, embora revestidas com ares de atualidade, trazem entranhada certa imutabilidade que insiste em desafiar o tempo. Ideias, que a história mostrou, de sobreposição econômica e pasteurização cultural em prejuízo dos países mais dependentes. Não há mistério. Tanto que a União Europeia, um dos blocos multinacionais mais antigos e estruturados do planeta, sofre grave crise, em que a solução pautada por muitos de seus componentes passa quase que inevitavelmente pelo discurso do esfarelamento, do esfacelamento do conjunto. Clássicos exemplos são o pico da agonia econômica grega, assim como as disputas presidenciais na Holanda e na França, que levaram ao segundo turno candidatos de extrema direita pouco simpáticos à União. Num campo mais pragmático, podem ainda ser citados o levante da “geringonça” portuguesa e o “desembarque” do Reino Unido. Situações com lastro proeminentemente econômico, é bem verdade, mas potencializadas por aspectos sociais outros tão importantes quanto, como a pulverização invisível de ataques terroristas, a onda de movimentos de refugiados ou seja, daqueles que fogem de guerras e perseguições políticas, étnicas ou religiosas, sem esquecer dos migrantes econômicos. A emoldurar o quadro, a ascensão de Donald Trump3.
Traçado de forma genérica o plano epistemológico, e definida a hipótese-problema a ser abordada, o presente trabalho utiliza-se basicamente de metodologia explanativa, abeirando-se dos temas condutores de forma mais aprofundada em itens individualizados. Após esta breve retomada histórica (item 1), pretende sobrevoar o constitucionalismo e mapear os elementos críticos da teoria constitucional (item 2 - Historicidade e topos da teoria da constituição e do constitucionalismo), para tentar conectá-los de maneira lógica e sistemática a algumas áreas de interesse global, como, a exemplo, o combate à corrupção sistêmica (item 3 - Constitucionalismo global; senão plenamente possível, ao menos um compromisso em torno do discurso consensual sobre o combate à corrupção sistêmica). No mais, e como objetivo principal (item 4 - Conclusão), almeja identificar e arrolar superfícies de contato entre as operações brasileira Lava-Jato e italiana Mãos Limpas, a pavimentar possíveis esferas de consenso global.
A atualidade e importância do objeto de estudo escolhido são evidenciadas pela histórica atuação das autoridades italianas nos anos 90 do século passado e sua inescondível influência nos caminhos que vêm sendo adotados no Brasil. Espera-se, dessa forma, demonstrar que áreas de interesses comuns admitem uma concepção supranacional, senão absoluta, ao menos em torno de determinados ideais comunitários, valendo-se de troca de informações, experiências, know-how, evidenciando, enfim, um diálogo capaz de aproximar nações diferentes, unificando-as como se repensassem e representassem o mundo todo a sós.
2. Historicidade e topos da teoria da constituição e do constitucionalismo
O direito, enquanto fenômeno não apenas normativo, mas também cultural, insere-se no arcabouço das relações sociais, fazendo parte das engrenagens de poder que se perfazem em seu bojo. Sendo assim, é imperioso reconhecer que seu estudo carrega consigo um conteúdo que não pode ser tomado simplesmente como veículo de proposições lógicas neutras. O mito de que existiria uma antinomia entre saber e poder há muito não mais se sustenta. “O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (FOUCAULT: 2002, pp. 50/51). E modernamente, o seio mais denso dessa trama se encontra no campo teórico constitucional, que tem por germes os textos das Constituições norte- americana e francesa do século XVIII4.
Quando se pergunta, pois, para que serve o direito, costuma-se afirmar sua função de ordenação da vida social, baseada na coordenação de interesses e reparação de injustiças. Causa certa espécie quando, após uma análise mais detida da realidade social, percebe-se que ao longo da história, o direito sempre tendeu a dar lugar a uma função regulatória e mantenedora de privilégios, de leis privadas. Afora qualquer discussão a respeito dos primórdios do constitucionalismo, como sistema de contenção e limitação de poder5, é fato que desde a Antiguidade, a noção mesma de democracia se via limitada à participação de uma determinada parcela da população na tomada de decisões públicas, já que não eram todos considerados cidadãos da pólis. Mulheres e escravos, por exemplo, estavam excluídos desse grupo, de forma que seus direitos políticos viam-se desconsiderados. Tendo em vista que o senhor feudal concentrava em suas mãos o poder social e político, o direito no Medievo continuava a ser um mecanismo destinado à manutenção do status quo vigente. A organização estamental da sociedade obstava qualquer tentativa de reversão do quadro desigual. As bases modernas acabaram por acinzentar os meios de manobra popular, e contrapondo-se ao conceito de servidão, o povo em geral passou a ter a fantasiosa esperança de que podia movimentar-se na escala social.
O mais relevante é notar que, com o advento da Modernidade, sobreposta em pilares renascentistas e iluministas, o caráter instrumental do direito permaneceu intacto, assim como seu objetivo precípuo, a blindagem da classe dominante6. O que, obviamente, mantém-se na atualidade, em que, por exemplo, as 85 famílias mais ricas do planeta somam uma fortuna equivalente à da metade mais pobre da população mundial7. E é no estudo da Constituição que se constata com mais evidência a correlação foucaulteana poder-saber. As formulações acerca do poder constituinte e da fundação de uma ordem constitucional encontram-se no limiar entre direito, política e economia, esparramando ainda mais os efeitos das relações de poder sobre todo o sistema jurídico. É nessa seara que se faz necessária, mais que nunca, e especialmente diante da atual realidade política e jurídica por que passa o Brasil, uma análise crítica a respeito.
As noções de igualdade e liberdade de que lançou mão a burguesia revelaram-se conceitos abstratos descolados da realidade para grande parcela da população, que se vê
excluída do processo de produção de normas jurídicas. O ideal primeiro que havia proposto a Modernidade foi, aos poucos, sendo desprezado, dando lugar a uma noção de regulação social (SANTOS: 2000, pp. 164/169). O direito tem servido, pois, como poderoso instrumento de preservação da sociedade capitalista e de suas assimetrias tais quais se apresentam. A ideia excludente do direito é muito perceptível na realidade social. A desigualdade é muitas das vezes naturalizada e banalizada pelos processos de abstração formal dos conflitos levados ao Poder Judiciário, deixando transparecer o profundo papel político do direito, que em geral tenta-se ocultar, ao lançar mão de uma pretensa neutralidade. A cientificização e estatização do direito o têm reduzido à mera técnica, ao passo que atribuem ao Estado o monopólio da produção jurídica. O direito moderno vê-se dissociado das relações culturais e éticas do meio social em que se insere, servindo à lógica da eficiência e estancando qualquer tentativa de produção jurídica a partir de processos populares (RANGEL e LARA: 2016, p. 691).
Estruturação que remonta há mais de dois séculos, é possível vislumbrar a natureza instrumental do sistema constitucional (democracia, divisão de poderes e controle das leis), bem como o objetivo perseguido, já na sua gênese. Lançadas as bases da teoria por JOHN LOCKE, e desenvolvida a ideia de equilíbrio pelo VISCONDE DE BOLINGBROKE, unindo-as em seu Espírito das Leis, MONTESQUIEU8 serviu como pilar fundamental à construção do Estado constitucional moderno, que visava, sobretudo, garantir a liberdade e a propriedade, traços essenciais do pensamento liberal, direitos fundamentais à classe burguesa. Daí a importância da inserção do sistema de divisão de poderes no âmbito normativo da organização estatal e, consequentemente, a relevância da distinção entre constituinte e legislativo a ensejar possível controle judicial. Ainda que sob a luz de um ideário libertário, apenas o Estado que se estabelecia sobre tais pilares, era reconhecido na ordem internacional como Estado constitucional. Só a Constituição jurídica que previa a divisão e o equilíbrio entre os poderes e que garantia direitos fundamentais, era efetivamente considerada como Constituição. Era claro o recado: “a sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”910. Mas sob a opacidade do véu de interesses individuais, percebe-se, facilmente, como toda essa estrutura, que aparenta resguardar direitos e proporcionar a todos o caminho para a felicidade é, ao contrário, instrumentalizada, manipulada a blindar o poder da classe dominante.
Pautando-se no modelo inglês, MONTESQUIEU imaginou a atuação legislativa mediante dois planos, duas câmaras (a câmara alta, dos lordes, hereditária, e selecionada por critérios de nascimento, riqueza etc.; e a câmara baixa, representativa do povo, eleita, selecionada dentre burgueses) que, exigindo requisitos diversos para sua composição, conformariam o primeiro grande entrave à atuação do poder popular, decorrente da necessária harmonização de pensamentos e interesses no mais das vezes antagônicos. A incrementar o embaraço, ao rei foi dado o poder de veto, e à câmara alta, o controle da atuação executiva. Deste simples resumo já pode ser visto “todo um sistema construído para impedir que o Estado pudesse atuar prontamente” (LEAL: 1955, pp. 103/104); sistema, prossegue LEAL, mais tarde aprimorado de forma “genial” pelos convencionais de Filadélfia. E citando GARCIA-DUARTE, conclui que “a burguesia, ao construir um Estado dividido, peado, vagaroso, cuidou muito menos de assumir o poder do que de o conter”. Era o tipo de Estado que mais convinha (e convém) à burguesia. A clareza do trecho exige sua transcrição:
“[...] Embora o reconhecimento de interesses básicos praticamente indiscutíveis, não seria aconselhável construir-se um Estado capaz de atuar de maneira efetiva, rápida, decisiva, porque haveria o risco (e aí vamos encontrar um dos grandes segredos de toda essa estrutura), haveria o risco de que o Estado viesse a cair nas mãos dos inimigos da classe burguesa. E os inimigos da burguesia, uma vez posta a nobreza fora de combate, viria a ser uma classe que mal nascia, que estava começando a aparecer, a classe dos assalariados [...]” (LEAL: 1955, pp. 105/106)
O teor mais recôndido desta intenção é capturado nas entrelinhas dos artigos dos federalistas11 que embasaram a construção da nascente constitucionalidade norte-americana. A franqueza de James Madison, protegido pelo sigilo dos trabalhos da convenção [de Filadélfia], é reveladora:
“[...] Ao construir um sistema que desejamos que dure para as idades futuras, não devemos perder de vista a mudança que essas idades trarão consigo. Um acréscimo de população aumentará necessariamente a proporção daqueles que terão que sofrer os embates da vida, desejando secretamente uma melhor repartição do seus benefícios. É possível que, com o tempo, estes superem os que se encontrem bem situados economicamente. De acordo com as leis do sufrágio, o poder passará às mãos dos não possuidores [...]”12
As perguntas imediatamente feitas pelo federalista, dão o tom da preocupação dos detentores do poder, no exato momento do exercício de uma atribuição que tende antes manter privilégios que regular: “Como havemos de nos preservar disto, baseando-nos em princípios republicanos? Como vamos poder prevenir o perigo em todos os casos de colisões interessadas em oprimir a minoria que devemos defender?” Ao discorrer sobre a proposta de federação, MADISON, tratando nos capítulos XIX e X da “utilidade da União como salvaguarda contra as facções e as insurreições”, conceituou facção como “uma reunião de cidadãos que formem a maioria ou a minoria do todo, uma vez que sejam unidos e dirigidos pelo impulso de uma paixão ou interesse contrário aos direitos dos outros cidadãos, ou ao interesse constante da sociedade geral” (HAMILTON et. al.: 2003, p. 60). “Essa definição é falsa”, como nota de rodapé ali aposta. A ideia de facção é inseparável da de minoria, sendo inconcebível que a maioria atue contra os interesses da própria maioria. Logo, a facção a que se refere o federalista e que deve ser protegida é a minoria mesmo, a burguesia propriamente dita.
Era clara a ideia do texto dos federalistas em tentar desqualificar politicamente a maioria (leia-se, o povo). Tanto que se distanciaram da democracia, tão atrelada à época à noção de poder popular rousseauniana, construindo a sua própria concepção de república. E nesse contexto, emprestaram à Constituição valor diverso daquele que sempre lhe deram os europeus, consignando sua superioridade tanto política quanto jurídica. Resumindo, a minoria que deveria ser defendida, segundo Madison, era a própria burguesia. Não a burguesia-povo, o povo que a burguesia dizia integrar e no qual buscava legitimação (até porque, vencido o inimigo maior e comum, a monarquia, o Antigo Regime, o povo perdeu sua importância13), mas a burguesia-burguesia, o núcleo do poder capitalista, que pretendia cristalizar seu direito de propriedade, estruturando-o mediante norma constitucional, garantindo e possibilitando, como que por viés compensatório, “liberdade” para que os demais um dia viessem a se tornar possuidores. Realidade que não só Madison, mas todos sabiam ser improvável, e que a história se encarregou de confirmar. Afinal, parafraseando ORWELL (2007), todos são livres, embora uns sejam mais livres que outros.
Daí o caráter atemporal da constatação de LASSALE (2001), íntegra há quase dois séculos, de que a essência da Constituição corresponde àquilo que efetivamente se impõe na realidade; em outras palavras, aos fatores reais de poder. Ao distinguir a Constituição real da jurídica, já no século XIX, Lassale afirma que esta, se não implementada, se não conformada com aquela, não passaria de mera folha de papel. A simplicidade desta constatação foi sublinhada por vários outros pensadores. Um século após, em seu clássico A força normativa da Constituição, embora afirme, ao contrário, que a Constituição escrita, ainda que não implementada, ainda que não conformada à realidade, tem, sim, potencial normativo, ao menos impeditivo de retrocesso, enfim, que não se restringe a simples papel, HESSE (1991, p. 10) atesta de forma primorosa, que “a concepção sustentada inicialmente por Lassalle parece ainda mais fascinante ao se considerar sua aparente simplicidade e evidência, sua base calcada na realidade, bem como a sua aparente confirmação pela experiência histórica”14.
E tendendo a manter a distância entre a norma e a realidade é que a construção do Estado liberal foi cuidadosamente programada pelos federalistas. Acaso a massa popular conseguisse tornar-se maioria em uma das casas parlamentares, sofreria a oposição da outra15. Vencida esta etapa, deveria enfrentar o veto presidencial. Ultrapassado este, e relembrando que a lei não pode conflitar com os direitos fundamentais (da burguesia), “estaria, ali, de alcateia a Corte Suprema, notoriamente conservadora”, como antecipado por Madison já no capítulo XVI, ao consignar que “se os juízes não conspirarem com a legislatura, hão de declarar que as decisões da maioria são contrárias à lei do país, inconstitucionais e nulas” (HAMILTON et al.: 2003, p. 102). “Aí está, portanto, explicado o verdadeiro sentido sociológico da divisão dos poderes. Era um sistema concebido menos para impedir as usurpações do executivo do que para obstar as reivindicações das massas populares”. Em outras palavras e em resumo,
“a convenção da Filadélfia defrontou-se com o problema de procurar o substitutivo para assegurar a propriedade, que na Inglaterra estava garantida pelo acatamento popular à oligarquia governante. Em lugar da obediência tradicional à autoridade, de um povo sujeito, ofereceram um sistema de equilíbrios e freios tão intrincado que dificilmente se poderia filtrar através de suas malhas uma gota do sentimento popular” (LEAL: 1955, p. 107)16.