3. Constitucionalismo global; senão plenamente possível, ao menos um compromisso em torno do discurso consensual sobre o combate à corrupção sistêmica
Na busca por um novo paradigma para o direito, que avance e finalmente se desloque das teorias clássicas positivas normativistas, MÜLLER (2013) adequa e assenta sua metódica estruturante à contemporaneidade, globalizada e multicultural, aproximando os sistemas do civil e do common law, sobrepondo, intercalando, enfim, harmonizando os dois principais troncos jurídicos ocidentais. Identifica os mundos real e ideal, numa correlação de causa-efeito-causa entre o ser e o dever ser. Ressalta a importância da concretude dos fatos na concepção e formatação do direito, resgatando, sob este eixo, parte da perspectiva schimittiana de valorização da realidade17. Em linha paralela, MACCORMICK (2008) estrutura sua teoria no poder da argumentação jurídica, atualizando antigas noções aristotélicas a feições modernizantes18. Vertentes teórico-jurídicas atuais, portanto, que vêm sendo maturadas desde as últimas décadas do século passado, e que visam, sobretudo, construir uma nova ordem normativa, que não ignora a importância da segurança historicamente desenhada pelo positivismo clássico, mas antes a complementa, integrando-a à justeza da atuação pública. Uma nova ordem porque, efetivamente, propõe um rompimento com as bases positivistas, descolando-se do conceito separatista entre sein e sollen, fazendo o caminho exato oposto, unindo-os. Pretende-se, como terceira via, e exatamente porque mescla dos planos real e ideal, evitar a arbitrariedade do puro decisionismo, sem abrir mão da previsibilidade necessária às relações humanas, escamoteando-se à principal crítica direcionada ao positivismo normativista, que diz respeito ao preestabelecimento do cenário fático, pressupondo sua adequação, ainda que a forceps, num desenho de mundo hipotético. Neste cenário, atribui-se um novo papel para a norma jurídica, que deixa de ter um papel figurativo e assume o protagonismo da realização material do Direito, principal reivindicação do Estado social e democrático na sociedade contemporânea, o que se faz, v.g., por meio do uso de mecanismos reguladores da economia pelo Estado pode evitar o colapso de um sistema que, cada vez mais, concentra a riqueza nas mãos de um número reduzido de capitalistas. Nesse sentido, economista francês PIKETTY, no livro O capital no século XXI, ressalta:
"as desigualdades sociais só são aceitáveis se forem do interesse de todos e, especialmente, se forem do interesse de grupos sociais menos privilegiados. É necessário estender os direitos fundamentais e as vantagens materiais ao máximo de pessoas possível" (2014, p. 467).
Concretude que tende a apontar para um cenário específico, contrário, assim, à concepção supranacional. Não quer isso dizer, no entanto, que não exista pensamento convergente sobre numerosos aspectos que, incontroversos, demandam um conjunto global de forças, num jogo de ganha-ganha, em que todos os participantes sejam beneficiados. Afora sentidos fluidos, subjetivos, como a felicidade, a paz etc., que antes representam consequências, características objetivas, pragmáticas, podem naturalmente ensejar uma maior interação global. Um claro exemplo nesse plano se circunscreve ao enfrentamento à corrupção sistêmica. O povo brasileiro está vivenciando um momento histórico, como jamais aconteceu, de aprofundamento no combate deste que representa talvez o mais nefasto e universal problema social19. A coincidência de fatores tão necessária para o fazer história, como o amplo apoio popular, alguns avanços recentes na legislação relativos à possibilidade de aplicação de acordos de leniência20 (capitulado dentro da Lei Anticorrupção - Lei nº 12.846/2013) e relativos à possibilidade de acordos de colaboração premiada21 e execução contundentemente justificadas de prisões preventivas lato senso, assim como a atuação institucional firme de órgãos de investigação e persecução (Polícia e Ministério Público) e do Poder Judiciário22, são patamares que podem e devem ser pulverizados e compartilhados entre os países num caminhar gradual em direção ao ideal democrático proposto por DAHL (2005)23. Elementos que remetem quase que num impulso intuitivo à comparação, à vinculação entre as operações brasileira Lava-Jato e italiana Mani Pulite de combate à corrupção sistêmica, instaurada e enraizada às profundezas nas entranhas do poder público. É indispensável a troca de informações, expertise, erros e acertos, sobretudo quanto a estratégias, tanto de métodos e limites de apuração24, de negociação, como mecanismos de recuo, defesa organizacional e em especial pessoal etc. Nesse aspecto, por exemplo, pode-se perfeitamente falar em interconstitucionalidade.
A micro-história que rebentou nos meandros do século XX, criando fenda profunda na ideia de composição histórica baseada nas grandes narrativas, símbolo de um pensamento modernista das primeiras horas, e que tem em GINSBURG (2006) seu principal fomentador, mostra que pequenas e muitas circunstâncias relativamente independentes, quando integradas constroem a verdadeira concepção histórica. É nesse sentido que deve ser enxergada de forma ampla a narrativa em torno da operação Lava-Jato e de todas as circunstâncias que a envolvem, a constituem e que lhe dão a coloração, o matiz que de uma maneira geral, é percebido pela população. Circunstâncias que se buscam em processos históricos-judiciais antecedentes, que lhe serviram de estofo e lhe adubaram a raiz, como mais proximamente no tempo a ação penal 47025, assim como as próprias idiossincrasias circunscritas a este, como os motivos pelos quais descortinados os fatos investigados, o sorteio e a definição da relatoria, a ânsia e a pressão da população, que viu chegar o momento histórico de passar o país a limpo, criando legítimas expectativas, que senão satisfeitas completamente, ao menos pintaram com tintas fortes e visíveis o caminho a seguir, a condenação de figuras públicas ou privadas até então inacessíveis segundo o ideário popular, além de importantes consequências outras no plano jurídico, como a aprovação da lei de iniciativa popular da ficha limpa (Lei Complementar 135, de 04 de junho de 2010), a já mencionada lei de colaboração premiada (Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013) etc. Ao falar da Lava-Jato, portanto, rende-se homenagem à sociedade brasileira e à composição do Supremo Tribunal Federal à época do julgamento da ação penal 470. Mas a Lava-Jato, evidentemente, tem vida própria.
São numerosos os avanços sociais em torno dessa nova ambiência no cenário público brasileiro. Afora as mencionadas leis da ficha limpa, da anticorrupção e da colaboração premiada, podem ainda ser apontadas, dentre outras, as discussões em torno de propostas legislativas ou decisões judiciais acerca de medidas populares contra a corrupção, o fim do foro privilegiado, o fim da autorização das assembleias legislativas para o processamento de governadores, a execução da pena criminal ao menos após decisão de segunda instância etc. No mesmo sentido, uma melhor adequação da visão romantizada do garantismo em torno dos chamados crimes do colarinho branco, pois o ideário garantista não pode ter por escopo o direito de pessoas que se valem de instrumentos públicos disponíveis aos cargos que ocupam para obstaculizar a ação dos poderes constituídos26.
4. Conclusão
Ficou dito que a operação brasileira Lava-jato tem vida própria. Isso é verdade. Não se pode perder de vista, no entanto, que alterações sociais de tamanha magnitude necessitam de bases fortes, maturadas pelo tempo proporcional à profundidade da intervenção, e seu sucesso só será sentido acaso possibilitada a identificação e extirpação completa da metástase que tomou conta do tecido social27. Daí a menção à ação penal 470. A corrupção das instituições brasileiras alcançou níveis inconcebíveis, decorrentes da promiscuidade na relação pública x privada durante séculos que, evidentemente, não pode ser combatida em poucas décadas. É razoável a ansiedade da sociedade quanto ao capítulo final de toda esta trama; ânsia, porém, que pode pôr em risco o momento de fortalecimento da ambiência ética. É certo que o tempo do hoje parece-nos muito mais rápido que o tempo do ontem; e de fato o é. Mas é preciso compreender que essa desconexão, esse descompasso temporal não permite o rompimento de cultura enraizada por séculos em poucos anos. Mais que um processo judicial, a operação Lava-jato se tornou, ela própria, uma instituição nacional2829, não fazendo sentido a grita popular pelo encerramento, desfecho, pelo seu grand finale. Até porque isso já vem ocorrendo gradativamente e a seu tempo, a cada condenação, a cada etapa, a cada fim de ciclo individualizado.
Nota-se que a classe política, espécie predada, tende a reagir. Daí a sensação de que permanece alijada da realidade. É de se entender, no entanto, que tal reação espelha antes instinto de sobrevivência e, portanto, a concepção de que a atuação institucional tem gerado efeitos positivos. Daí a importância da correlação supranacional, da troca de experiências com autoridades italianas, para que não se repita, aqui, os óbices lá encontrados30. Para que as investigações não sejam barradas pela reação dos políticos denunciados; para que não se legalize a corrupção, mediante alterações legais e pressões políticas que invertam os papéis entre acusado e acusador. Para que não ocorra no Brasil a mutação antropológica citada por FIORINO e GALLI31, pela qual a sociedade se habitua de forma cúmplice com o ilícito32 33.
Conquanto ilícito absolutamente racional, como lembrado por BECKER, é fato que a corrupção pode encontrar vigoroso óbice no mais recôndito espaço da alma humana, por mais simples que seja, como o aldeão moleiro de GINZBURG, ou o semi-analfabetismo do algarvio ANTÔNIO ALEIXO, que sintetizou em quadras populares e de forma ímpar, o sentimento do cidadão de bem:
O rato mete o focinho / sem pensar que faz asneira / Depois, ou larga o toucinho / ou fica na ratoeira /
Fazem a mesma figura / homens que vestem bons fatos / Quando lhes cheira a gordura / caem também como os ratos /
Tu que tanto prometeste / enquanto nada podias / Agora que podes, esqueceste / tudo quanto prometias.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
BECKER, Gary Stanley. Investment in human capital: a theoretical analysis. Journal of Political Economy, v. 70, n. 5, pp. 9/49, out. 1962.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 1999.
DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017.
CLÈVE, Clèmerson Merlim. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
COELHO, Humberto Alves. A interpretação constitucional como fundamento do recurso de revista. In COELHO, Humberto Alves, e NEVES, Marcelo [orgs]. Direito público do trabalho: estudos em homenagem a Ivan D Rodrigues Alves. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 209/257.
A Emenda Constitucional nº 45 e o novo Código Civil. Parâmetro e contradições sociais brasileiras. Rio de Janeiro: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, n. 55, p. 111-118, jan/jul 2014.
DAHL, Robert Alan. Poliarquia e oposição. Editora USP. São Paulo: 2005.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Conferência V. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. 3ª ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.
GINZBURG, Carlos. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
HAMILTON, Alexander, MADISON, James, e JAY, John. O federalista. Belo Horizonte: Livraria Líder e Editora, 2003.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição, 6ª ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. LEAL, Victor Nunes. A divisão de poderes no quadro político da burguesia. In CAVALCANTI, Themístocles, SILVA, Carlos Medeiros, LEAL, Victor Nunes. Cinco estudos: a federação, a divisão de poderes (02 estudos), os partidos políticos e a intervenção do Estado. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1955, p. 93/113.
MACCORMICK, Neil. Retórica e o estado de direito. Trad. Conrado Hübner Mendes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013
ORWELL, George, A revolução dos bichos: um conto de fadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
PESSOA, Fernando. D. Tareja. In Mensagem. São Paulo: Coleção L&PM Pocket, 2016. PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro, Intrínseca, 2014.
PINOTTI, Maria Cristina. A Itália após a Operação Mãos Limpas: entre os desenvolvidos, país exibe o maior índice de corrupção e o pior desempenho econômico. Estadão: 14 dez. 2016. Disponível em: <https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-italia-apos-a-operacao-maos-limpas,10000094373> Acesso em: 25 mai. 2017.
QUARESMA, Regina, e OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula. Neoconstitucionalismo: contextualização e perspectivas. In QUARESMA, Regina, OLIVEIRA, Farlei Martins, e OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula [orgs.]. Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 879/891.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção pós-moderna do direito: A crítica da razão indolente - contra o desperdício da experiência. Para um novo senso-comum - a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2000.
SARMENTO, Daniel. Os princípios constitucionais e a ponderação de bens. In TORRES, Ricardo Lobo [org.], Teoria dos direitos fundamentais, 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Oxford University Press. Oxford: 2001.
SIEYÈS, Joseph Emmanuel. A constituinte burguesa. São Paulo: Martin Claret, 2007.
SILVA, Luciano Nascimento. A (moderna) criminalidade econômica. O direito penal entre o econômico e o social. In BANDEIRA, Gonçalo Sopas de Melo, GONÇALVES, Rogério Magnus Varela, e RODRIGUES, Frederico Viana. Ciências jurídicas. Civilísticas; comparatísticas; comunitárias; criminais; económicas; empresariais; filosóficas; históricas; políticas; processuais. Apresentação CASTANHEIRA NEVES. António. Lisboa: Almedina: 2055, pp. 393/444.
STIGLITZ, Joseph Eugene. A globalização e seus malefícios. 4ª ed. São José - SC: Futura, 2003.