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Súmula 670 do STJ: um esclarecimento necessário

Agenda 23/06/2024 às 14:37

A Súmula 670 do STJ estabeleceu que a ação penal dos crimes sexuais é pública condicionada à representação, aparentemente entrando em conflito com a legislação vigente.

1. A SÚMULA 670 STJ E SEU ESTRANHAMENTO

O Superior Tribunal de Justiça divulgou a sua Súmula 670 com o seguinte teor:

Nos casos de vulnerabilidade temporária, em que a vítima recupera suas capacidades físicas e mentais, e o pleno discernimento para decidir acerca da persecução penal de seu ofensor, a ação penal dos crimes sexuais é pública condicionada à representação.

Essa redação trouxe certa perplexidade inicial ao mundo jurídico-penal, uma vez que aparentemente entra em conflito com a legislação que regulamenta a ação penal nos crimes contra a liberdade sexual. Isso porque o artigo 225, CP determina que a ação penal será sempre pública incondicionada nos delitos sexuais.

Para desvendar a aplicabilidade da Súmula 670 STJ é preciso recorrer a uma revisão histórica do regramento da ação penal nos crimes contra a liberdade sexual, ensejando a inserção temporal da Súmula em destaque e estabelecendo seus limites de alcance.


2. ESBOÇANDO UM BREVE HISTÓRICO 1

Originariamente o Código Penal de 1940 previa, como regra, que a ação penal nos então denominados “Crimes contra os Costumes” seria privada.

A Lei 12.015/09 promoveu uma grande alteração no regramento dado à ação penal nos crimes sexuais com a nova redação do artigo 225, CP.

Eliminou-se a regra da ação penal privada nos crimes sexuais. A regra passou a ser, nos termos do artigo 225, “caput”, CP, a ação penal pública condicionada à representação. Em nenhuma hipótese a ação seria mais privada exclusiva, somente subsistindo, por força de norma constitucional e de regras ordinárias gerais, a possibilidade de ação penal privada subsidiária da pública em casos de inércia do Ministério Público (artigo 5º, LIX, CF c/c artigo 100, § 3º, CP c/c artigo 29, CPP).

Também estabeleceu à época o Parágrafo Único do artigo 225, CP, as exceções em que a ação penal seria pública incondicionada. Isso ocorreria quando:

Não obstante, tudo isso somente tem hoje valor como conhecimento histórico da evolução da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual. Acontece que a Lei 13.718/18 determinou peremptoriamente que a ação penal nos crimes contra a dignidade sexual passa a ser, invariavelmente, pública incondicionada. Certamente, a única hipótese de ação penal privada é a da subsidiária. Quanto à modalidade de ação penal pública condicionada, foi extirpada definitivamente.

Como visto, estabelecia o artigo 225 e seu Parágrafo Único, CP que a ação penal nos crimes contra a liberdade sexual era, em regra, pública condicionada à representação do ofendido. Excepcionalmente, no caso de vítimas menores de 18 anos ou vulneráveis a ação seria pública incondicionada. Na verdade, o dispositivo era elaborado com certa impropriedade, pois o “caput” dizia que ação seria pública condicionada para os crimes dos Capítulos I e II, abrangendo, portanto, os crimes sexuais contra vulnerável. Na realidade, a ação seria realmente condicionada somente nos casos do Capítulo I, ainda assim se a vítima não fosse menor de 18 anos e maior de 14, por força do Parágrafo Único do mesmo dispositivo. Já com relação ao Capítulo II, que trata dos crimes sexuais contra vulneráveis, a ação seria sempre e invariavelmente incondicionada, inexistindo a regra do “caput” na prática, sendo a vítima menor de 14 anos, enferma ou débil mental sem discernimento ou pessoa que, por qualquer outra causa, não pudesse ofertar resistência.

Portanto, para as vítimas maiores e capazes, a ação penal nos Crimes do Capítulo I seria pública condicionada à representação, havendo respeito à deliberação do ofendido, tendo em vista que os delitos sexuais envolvem questões de foro íntimo nas quais o Estado não deve se imiscuir unilateral e arbitrariamente.

Ocorre que, com o advento da Lei 13.718/18, o Parágrafo Único do artigo 225, CP foi revogado, sendo dada nova redação ao “caput”, determinando que a ação penal nos crimes previstos nos Capítulos I e II do Título VI do Código Penal Brasileiro será sempre e invariavelmente pública incondicionada.

Foi na época intercorrente entre a alteração de 2009 (Lei 12.015/09) e o advento da Lei 13.718/18 que surgiu uma discussão acerca da ação penal nos casos de “vulnerabilidade Temporária” (v.g. pessoas embriagadas, narcotizadas etc.).

Passou-se a defender duas teses:

Embora, como já exposto acima, não concordássemos com essa espécie de entendimento, foi aquele mencionado na letra “b” supra que veio a prevalecer, inclusive em repetidas decisões do Superior Tribunal de Justiça, dando azo à publicação da atual Súmula 670, STJ.


3. ESTABELECENDO O DEVIDO ALCANCE DA SÚMULA 670 STJ

Como se vê, a discussão que dá ensejo ao surgimento da Súmula 670 STJ é bem localizada no tempo. Entre a legislação de 2009 e a de 2018. A partir de 2018 a ação penal é pública incondicionada, não havendo espaço algum para ação penal pública condicionada, o que torna a Súmula em destaque inaplicável.

Percebe-se, portanto, que a publicação da Súmula 670 STJ se dá com certo anacronismo e atraso, de forma que sua aplicação se restringe aos casos de crimes sexuais ocorridos antes do avento da Lei 13.718/18 quando vigia a mencionada controvérsia acerca dos chamados “vulneráveis temporários”.

Uma vez que o Superior Tribunal de Justiça resolveu publicar a Súmula 670 somente agora, deveria ao menos ter constado de sua redação a baliza temporal de sua aplicabilidade. Neste sentido, sugere Cunha, com razão, uma redação mais adequada:

Para os fatos cometidos antes da Lei 13.718/18, nos casos de vulnerabilidade temporária, em que a vítima recupera suas capacidades físicas e mentais, e o pleno discernimento para decidir acerca da persecução penal de seu ofensor, a ação penal dos crimes sexuais é pública condicionada à representação (grifo no original). 2


4. CONCLUSÃO

No decorrer deste texto analisamos o teor da Súmula 670, STJ que determina que ação penal nos crimes sexuais contra “vulneráveis temporários” deve ser pública condicionada à representação e não incondicionada.

Demonstramos que a controvérsia que deu ensejo a essa Súmula em discussão é datável do período de tempo entre as vigências das Leis 12.015/09 e 13.718/18. A partir desta segunda não existe mais espaço para discussão sobre a ação penal, a qual é sempre e invariavelmente pública incondicionada nos crimes contra a dignidade sexual.

Verificou-se, porém, que na época da vigência da Lei 12.015/09, até sua revogação pela Lei 13.718/18, realmente houve discussão sobre a natureza da ação penal nos casos de “vulneráveis temporários”. A solução da época foi pela ação penal pública condicionada para os “vulneráveis temporários” e pública incondicionada limitada aos “vulneráveis permanentes”.

Conclui-se que a Súmula 670, STJ somente pode ser aplicada e faz sentido jurídico para os casos ocorridos anteriormente às reformas promovidas pela Lei 13.718/18. Pretender sua utilização para casos atuais seria admitir uma espúria jurisprudência “contra legem”.

Melhor seria, na esteira de Sanches Cunha3, sugerir ao Superior Tribunal de Justiça, o ajuste da redação da Súmula 670, a fim de evitar interpretações absurdas e dúvidas desnecessárias, deixando claro seu campo de aplicabilidade temporal.


5. REFERÊNCIAS

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crimes Contra a Dignidade Sexual – Tópicos Relevantes. 2ª. ed. Curitiba: Juruá, 2020.

CUNHA, Rogério Sanches. Desvendando a Súmula 670 do STJ. Disponível em https://www.instagram.com/rogeriosanchescunha/p/C8MM2TTuSGS/?img_index=5 , acesso em 15.06.2024.


Notas

1 Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crimes Contra a Dignidade Sexual – Tópicos Relevantes. 2ª. ed. Curitiba: Juruá, 2020, p. 203. – 204.

2 CUNHA, Rogério Sanches. Desvendando a Súmula 670 do STJ. Disponível em https://www.instagram.com/rogeriosanchescunha/p/C8MM2TTuSGS/?img_index=5 , acesso em 15.06.2024.

3 Op. Cit.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Súmula 670 do STJ: um esclarecimento necessário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7662, 23 jun. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109883. Acesso em: 17 nov. 2024.

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