Capa da publicação Ação penal dos crimes sexuais e Súmula 670 do STJ
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Súmula 670 do STJ: um esclarecimento necessário

23/06/2024 às 14:37

Resumo:


  • A Súmula 670 do STJ trouxe certa perplexidade no mundo jurídico penal ao estabelecer que a ação penal dos crimes sexuais é pública condicionada à representação em casos de vulnerabilidade temporária.

  • A discussão sobre a interpretação da Súmula se baseia no período entre as leis de 2009 e 2018, sendo que a partir da Lei 13.718/18 a ação penal nos crimes sexuais é sempre pública incondicionada.

  • A aplicabilidade da Súmula 670 STJ se restringe aos casos anteriores à Lei 13.718/18, devendo ser considerada a redação mais adequada para evitar interpretações equivocadas e dúvidas desnecessárias.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Súmula 670 do STJ estabeleceu que a ação penal dos crimes sexuais é pública condicionada à representação, aparentemente entrando em conflito com a legislação vigente.

1. A SÚMULA 670 STJ E SEU ESTRANHAMENTO

O Superior Tribunal de Justiça divulgou a sua Súmula 670 com o seguinte teor:

Nos casos de vulnerabilidade temporária, em que a vítima recupera suas capacidades físicas e mentais, e o pleno discernimento para decidir acerca da persecução penal de seu ofensor, a ação penal dos crimes sexuais é pública condicionada à representação.

Essa redação trouxe certa perplexidade inicial ao mundo jurídico-penal, uma vez que aparentemente entra em conflito com a legislação que regulamenta a ação penal nos crimes contra a liberdade sexual. Isso porque o artigo 225, CP determina que a ação penal será sempre pública incondicionada nos delitos sexuais.

Para desvendar a aplicabilidade da Súmula 670 STJ é preciso recorrer a uma revisão histórica do regramento da ação penal nos crimes contra a liberdade sexual, ensejando a inserção temporal da Súmula em destaque e estabelecendo seus limites de alcance.


2. ESBOÇANDO UM BREVE HISTÓRICO 1

Originariamente o Código Penal de 1940 previa, como regra, que a ação penal nos então denominados “Crimes contra os Costumes” seria privada.

A Lei 12.015/09 promoveu uma grande alteração no regramento dado à ação penal nos crimes sexuais com a nova redação do artigo 225, CP.

Eliminou-se a regra da ação penal privada nos crimes sexuais. A regra passou a ser, nos termos do artigo 225, “caput”, CP, a ação penal pública condicionada à representação. Em nenhuma hipótese a ação seria mais privada exclusiva, somente subsistindo, por força de norma constitucional e de regras ordinárias gerais, a possibilidade de ação penal privada subsidiária da pública em casos de inércia do Ministério Público (artigo 5º, LIX, CF c/c artigo 100, § 3º, CP c/c artigo 29, CPP).

Também estabeleceu à época o Parágrafo Único do artigo 225, CP, as exceções em que a ação penal seria pública incondicionada. Isso ocorreria quando:

  • a) A vítima fosse menor de 18 anos;

  • b) A vítima fosse “pessoa vulnerável”.

Não obstante, tudo isso somente tem hoje valor como conhecimento histórico da evolução da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual. Acontece que a Lei 13.718/18 determinou peremptoriamente que a ação penal nos crimes contra a dignidade sexual passa a ser, invariavelmente, pública incondicionada. Certamente, a única hipótese de ação penal privada é a da subsidiária. Quanto à modalidade de ação penal pública condicionada, foi extirpada definitivamente.

Como visto, estabelecia o artigo 225 e seu Parágrafo Único, CP que a ação penal nos crimes contra a liberdade sexual era, em regra, pública condicionada à representação do ofendido. Excepcionalmente, no caso de vítimas menores de 18 anos ou vulneráveis a ação seria pública incondicionada. Na verdade, o dispositivo era elaborado com certa impropriedade, pois o “caput” dizia que ação seria pública condicionada para os crimes dos Capítulos I e II, abrangendo, portanto, os crimes sexuais contra vulnerável. Na realidade, a ação seria realmente condicionada somente nos casos do Capítulo I, ainda assim se a vítima não fosse menor de 18 anos e maior de 14, por força do Parágrafo Único do mesmo dispositivo. Já com relação ao Capítulo II, que trata dos crimes sexuais contra vulneráveis, a ação seria sempre e invariavelmente incondicionada, inexistindo a regra do “caput” na prática, sendo a vítima menor de 14 anos, enferma ou débil mental sem discernimento ou pessoa que, por qualquer outra causa, não pudesse ofertar resistência.

Portanto, para as vítimas maiores e capazes, a ação penal nos Crimes do Capítulo I seria pública condicionada à representação, havendo respeito à deliberação do ofendido, tendo em vista que os delitos sexuais envolvem questões de foro íntimo nas quais o Estado não deve se imiscuir unilateral e arbitrariamente.

Ocorre que, com o advento da Lei 13.718/18, o Parágrafo Único do artigo 225, CP foi revogado, sendo dada nova redação ao “caput”, determinando que a ação penal nos crimes previstos nos Capítulos I e II do Título VI do Código Penal Brasileiro será sempre e invariavelmente pública incondicionada.

Foi na época intercorrente entre a alteração de 2009 (Lei 12.015/09) e o advento da Lei 13.718/18 que surgiu uma discussão acerca da ação penal nos casos de “vulnerabilidade Temporária” (v.g. pessoas embriagadas, narcotizadas etc.).

Passou-se a defender duas teses:

  • a) De acordo com as normas então previstas pela Lei 12.015/09, a ação penal seria pública incondicionada para quaisquer vulneráveis, fossem eles temporários ou permanentes, afinal o artigo 225, Parágrafo Único da época não fazia qualquer distinção. A nosso ver esta seria a melhor interpretação para aquele tempo, já que aquilo que a lei não distingue não cabe ao intérprete distinguir (“ubi Lex non distinguit nec nos distinguere devemus”). Ademais entre os vulneráveis estão aquelas pessoas que “por qualquer outra causa não podem ofertar resistência”. Ora, se lei se referiu ao conceito de “vulnerável” sem fazer qualquer tipo de ressalva, não havia razão para fazer isso à sua margem.

  • b) Para outra corrente interpretativa, a ação penal seria pública incondicionada por força do então Parágrafo Único do artigo 225, CP, conforme redação dada pela Lei 12.015/09 somente para os vulneráveis permanentes (menores de 14 anos, enfermos ou débeis mentais). Para os vulneráveis temporários a ação seria pública condicionada à representação, tendo em vista que a pessoa recobraria plenamente sua consciência e poderia tomar a decisão de representar ou não. Apenas os vulneráveis permanentes é que não teriam como deliberar em tempo algum.

Embora, como já exposto acima, não concordássemos com essa espécie de entendimento, foi aquele mencionado na letra “b” supra que veio a prevalecer, inclusive em repetidas decisões do Superior Tribunal de Justiça, dando azo à publicação da atual Súmula 670, STJ.


3. ESTABELECENDO O DEVIDO ALCANCE DA SÚMULA 670 STJ

Como se vê, a discussão que dá ensejo ao surgimento da Súmula 670 STJ é bem localizada no tempo. Entre a legislação de 2009 e a de 2018. A partir de 2018 a ação penal é pública incondicionada, não havendo espaço algum para ação penal pública condicionada, o que torna a Súmula em destaque inaplicável.

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Percebe-se, portanto, que a publicação da Súmula 670 STJ se dá com certo anacronismo e atraso, de forma que sua aplicação se restringe aos casos de crimes sexuais ocorridos antes do avento da Lei 13.718/18 quando vigia a mencionada controvérsia acerca dos chamados “vulneráveis temporários”.

Uma vez que o Superior Tribunal de Justiça resolveu publicar a Súmula 670 somente agora, deveria ao menos ter constado de sua redação a baliza temporal de sua aplicabilidade. Neste sentido, sugere Cunha, com razão, uma redação mais adequada:

Para os fatos cometidos antes da Lei 13.718/18, nos casos de vulnerabilidade temporária, em que a vítima recupera suas capacidades físicas e mentais, e o pleno discernimento para decidir acerca da persecução penal de seu ofensor, a ação penal dos crimes sexuais é pública condicionada à representação (grifo no original). 2


4. CONCLUSÃO

No decorrer deste texto analisamos o teor da Súmula 670, STJ que determina que ação penal nos crimes sexuais contra “vulneráveis temporários” deve ser pública condicionada à representação e não incondicionada.

Demonstramos que a controvérsia que deu ensejo a essa Súmula em discussão é datável do período de tempo entre as vigências das Leis 12.015/09 e 13.718/18. A partir desta segunda não existe mais espaço para discussão sobre a ação penal, a qual é sempre e invariavelmente pública incondicionada nos crimes contra a dignidade sexual.

Verificou-se, porém, que na época da vigência da Lei 12.015/09, até sua revogação pela Lei 13.718/18, realmente houve discussão sobre a natureza da ação penal nos casos de “vulneráveis temporários”. A solução da época foi pela ação penal pública condicionada para os “vulneráveis temporários” e pública incondicionada limitada aos “vulneráveis permanentes”.

Conclui-se que a Súmula 670, STJ somente pode ser aplicada e faz sentido jurídico para os casos ocorridos anteriormente às reformas promovidas pela Lei 13.718/18. Pretender sua utilização para casos atuais seria admitir uma espúria jurisprudência “contra legem”.

Melhor seria, na esteira de Sanches Cunha3, sugerir ao Superior Tribunal de Justiça, o ajuste da redação da Súmula 670, a fim de evitar interpretações absurdas e dúvidas desnecessárias, deixando claro seu campo de aplicabilidade temporal.


5. REFERÊNCIAS

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crimes Contra a Dignidade Sexual – Tópicos Relevantes. 2ª. ed. Curitiba: Juruá, 2020.

CUNHA, Rogério Sanches. Desvendando a Súmula 670 do STJ. Disponível em https://www.instagram.com/rogeriosanchescunha/p/C8MM2TTuSGS/?img_index=5 , acesso em 15.06.2024.


Notas

1 Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crimes Contra a Dignidade Sexual – Tópicos Relevantes. 2ª. ed. Curitiba: Juruá, 2020, p. 203. – 204.

2 CUNHA, Rogério Sanches. Desvendando a Súmula 670 do STJ. Disponível em https://www.instagram.com/rogeriosanchescunha/p/C8MM2TTuSGS/?img_index=5 , acesso em 15.06.2024.

3 Op. Cit.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Súmula 670 do STJ: um esclarecimento necessário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7662, 23 jun. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109883. Acesso em: 18 dez. 2024.

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