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Eleição para o cargo de conselheiro tutelar.

Flagrante burla ao princípio do concurso público

Agenda 05/03/2008 às 00:00

Resumo: O presente estudo defende a tese de que o artigo 132 do Estatuto da Criança e do Adolescente é inconstitucional, porquanto não pode o legislador ordinário criar hipóteses de mandato eletivo não contempladas na Constituição da República, tudo em obséquio aos princípios da máxima efetividade da norma constitucional e da proibição do atalhamento constitucional, que exigem o efetivo respeito do primado republicano do concurso público.

Palavras-chave: Estatuto da Criança e do Adolescente, cargo de conselheiro tutelar, mandato eletivo, inconstitucionalidade, princípio do concurso público.


A Lei federal n.° 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, com o escopo de criar um organismo especializado na defesa dos superiores interesses das crianças e dos adolescentes, engendrou o Conselho Tutelar, "órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente" (artigo 131 do ECA).

Prosseguiu o Estatuto da Criança e do Adolescente determinando que "em cada Município haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar composto de cinco membros, escolhidos pela comunidade local para mandato de três anos, permitida uma recondução" (artigo 132).

Neste ponto, ao estipular que o acesso ao cargo público de conselheiro tutelar deve ser feito através de eleição direta, criando, por conseguinte, novo mandato eletivo sem calço na Constituição, o ECA incorreu em inconstitucionalidade chapada, eis que apenas a Constituição da República pode prever, em catálogo cerrado, os mandatos eletivos.

Dir-se-ia que a opção do ECA é legítima porque o conselheiro tutelar seria agente político. Dir-lhes-ei, entrementes, que o complexo de funções enfeixados no exercício da atividade de conselheiro tutelar fica longe de sequer tangenciar o conceito de agente político, encaixando-se, todavia, na definição de cargo público.

Grassa na doutrina pátria um grave dissenso sobre o alcance do conceito de agente político, descortinando-se duas fortes correntes em torno das quais gravita o debate doutrinário. A corrente reducionista, cujo maior expoente é o professor Celso Antônio Bandeira de Mello, advoga a seguinte delimitação conceitual:

"Agentes políticos são os titulares dos cargos estruturais à organização política do País, ou seja, ocupantes dos que integram o arcabouço constitucional do Estado, o esquema fundamental do Poder. Daí que se constituem nos formadores da vontade superior do Estado. São agentes políticos apenas o Presidente da República, os Governadores, Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos Chefes de Executivo, isto é, Ministros e Secretários das diversas Pastas, bem como os Senadores, Deputados federais e estaduais e os Vereadores" [01].

Em sentido diametralmente oposto, Hely Lopes Meirelles visualiza um conceito mais amplo de agente político, situando nesta senda os chefes do Executivo e seus auxiliares imediatos (Presidente da República e ministros de Estado, governadores e secretários estaduais etc.), os titulares de cargos no Poder Legislativo (senadores, deputados federais e estaduais e vereadores), magistrados, membros do Ministério Público, membros dos Tribunais de Contas, diplomatas e demais autoridades que atuem com independência funcional no desempenho das atribuições governamentais, judiciais ou quase judiciais, estranhas ao quadro do funcionalismo estatutário.

Hely Lopes Meirelles averba que agentes políticos "são os componentes do Governo nos seus primeiros escalões, investidos em cargos, funções, mandatos ou comissões, por nomeação, eleição, designação ou delegação para o exercício de atribuições constitucionais. Esses agentes atuam com plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições com prerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição e em leis especiais. Têm normas específicas para sua escolha, investidura, conduta e processo por crimes funcionais e de responsabilidade, que lhes são privativos" [02].

Portanto, a conclusão inarredável é da que os conselheiros tutelares não são agentes políticos, nem na visão ampla e tampouco na restrita do conceito. Sob o prisma reducionista, não são agentes políticos por não integrarem uma instituição fundamental para a conformação política do País, eis que o Conselho Tutelar não encontra previsão constitucional, estando vinculado ao organograma administrativo do Poder Executivo municipal. Também não se encaixa no conceito dilatado de agente político, pois não atuam com independência funcional, nem exercem funções constitucionais, além de submeterem-se ao regime estatutário dos servidores municipais, sem qualquer predicamento legal que assegure liberdade no desempenho de suas atividades rotineiras e burocráticas.

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Nesse esquadro, as funções públicas desempenhadas pelos conselheiros tutelares, ou seja, o conjunto de atribuições públicas definidas em lei, corresponde ao conceito de cargo público, de provimento obrigatório por concurso público, nos moldes do artigo 37, inciso II, da Constituição Federal, cuja redação é a seguinte:

"a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração".

Do arcabouço constitucional, extrai-se apenas duas exceções ao princípio do concurso público, o cargo em comissão, ressalva da parte final do inciso II do artigo 37, e a contratação temporária contemplada no inciso IX também do artigo 37.

Destarte, conclui-se que a Constituição Federal não admite que lei ordinária alargue o rol cerrado dos mandatos eletivos, sob pena de inconstitucionalidade chapada por atalhamento constitucional.

A propósito, vale destacar decisão do Supremo Tribunal Federal neste sentido, que declarou inconstitucional lei estadual que estipulou eleições diretas para o provimento dos cargos de diretores das unidades escolares, senão vejamos:

"É inconstitucional o dispositivo da Constituição de Santa Catarina que estabelece o sistema eletivo, mediante voto direto e secreto, para escolha dos dirigentes dos estabelecimentos de ensino. É que os cargos públicos ou são providos mediante concurso público, ou, tratando-se de cargo em comissão, mediante livre nomeação e exoneração do Chefe do Poder Executivo, se os cargos estão na órbita deste (CF, art. 37, II, art. 84, XXV)." (ADI 123, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 3-2-97, DJ de 12-9-97).

Portanto, é flagrantemente inconstitucional a regra vertida no Estatuto da Criança e do Adolescente que criou o mandato eletivo de conselheiro tutelar, configurando burla ao princípio do concurso público, que apenas pode ser afastado nos casos de cargos declarados em lei de livre nomeação e exoneração e para a contratação por tempo determinado, não sendo legítimo que o legislador ordinário estabeleça outros mandatos eletivos sem supedâneo constitucional.


Notas

01 Curso de Direito Administrativo. 22ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 238-239.

02 Direito Administrativo Brasileiro. 28ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 75.

Sobre o autor
Augusto Reis Bittencourt Silva

promotor de Justiça do Ministério Público de Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Augusto Reis Bittencourt. Eleição para o cargo de conselheiro tutelar.: Flagrante burla ao princípio do concurso público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1708, 5 mar. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11015. Acesso em: 25 nov. 2024.

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