1. Processo objetivo versus processo subjetivo
Apesar das tentativas de se afirmar que a ação direta de inconstitucionalidade e a ação civil pública possuem semelhanças que as tornam um processo objetivo, pode-se facilmente perceber que os mais variados aspectos distintivos podem ser apontados, distanciando os dois institutos referidos.
Primeiramente, deve-se registrar que o processo instaurado por intermédio do ajuizamento de uma ação civil pública, em verdade, nada tem de "objetivo".
A expressão "processo objetivo" qualifica o processo em que não há interesses concretos em jogo [01]. Como bem observa Luís Roberto Barroso: "o processo objetivo [...] não se presta à tutela de direitos subjetivos, de situações jurídicas individuais" [02]. Daí porque se dizer que o controle de constitucionalidade provocado pela ação direta de inconstitucionalidade instaura um processo objetivo. No controle iniciado por ação direta inexiste litígio referente a situações concretas ou individuais. O controle concentrado é exercido por meio de um processo sem partes e que tem como questão principal, vale dizer, como objeto da ação, a manifestação acerca da validade de determinada norma.
De outro lado, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem negado o caráter objetivo do processo instaurado pela ação civil pública, distanciando-o do processo instaurado pela ação direta de inconstitucionalidade [03]. Nesse mecanismo de tutela coletiva, temos uma pretensão deduzida em juízo por intermédio de um pedido. Este pedido em hipótese alguma se confunde com a declaração de inconstitucionalidade.
Não se nega, ademais, a presença de tutela ao interesse público nas ações civis públicas. Este, no entanto, estará presente com feição nitidamente subsidiária. Fato é que esta característica não se mostra, por si só, capaz de transformar o processo em objetivo. Também é certo que a natureza do processo não pode ser desfigurada, ignorando-se completamente a existência do caso concreto. Este deverá necessariamente existir, devendo a petição inicial da ação civil pública descrever um litígio definido, baseando-se em fatos suscetíveis de comprovação, como decorre do art. 282, III, primeira parte, do Código de Processo Civil.
Portanto, se as referidas ações civis públicas forem ajuizadas desconectadas de um verdadeiro litígio ou, em outras palavras, se as suas iniciais forem confeccionadas em condições que não levem a que se possa sequer vislumbrar propriamente um litígio, senão que, a real, ontológica e exclusiva, pretensão à declaração de inconstitucionalidade de determinados textos legais, deve-se concluir, que tais petições serão ineptas e devem ser imediatamente indeferidas nos termos do artigo 295, I, e parágrafo único, I e II, quer por lhes faltar causa de pedir, quer por restar consignado que da narrativa dos fatos não decorre uma conclusão lógica [04].
3. Bens jurídicos protegidos pela ação civil pública e pela ação direta de inconstitucionalidade
Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery observam que a ação civil pública e a ação direta de inconstitucionalidade atendem a fins distintos, e, por isso mesmo, são tendentes a promover efeitos diversos no ordenamento jurídico [05]. De fato, estamos diante de instrumentos que visam à proteção de bens jurídicos diversos.
Na ação direta de inconstitucionalidade, a questão da constitucionalidade é o próprio pedido.
A ação civil pública configura-se como instrumento voltado à solução de litígios concretos coletivos. Conseqüentemente, a ação civil pública também se apresenta como meio idôneo a resguardar direitos coletivos tutelados pela Constituição. Assim, nas situações em que estiver em jogo a defesa em juízo de direitos coletivos positivados no texto fundamental, os motivos que embasarem o pedido da ação civil pública poderão ser construídos em oposição a alegado ato inconstitucional que agride, ou põe em risco, o direito ressalvado pela Constituição. Daí a constante presença de questões acerca da constitucionalidade de normas nas ações civis públicas. Mas, vale destacar, na ação civil pública, a questão da constitucionalidade reside apenas na sua fundamentação, como um dos possíveis caminhos que levarão à procedência do pedido.
A ação direta de inconstitucionalidade, por seu turno, visa proteger a própria Constituição e, por isso, é tendente a atacar um ato abstratamente considerado. Não se faz necessária a concreta violação de direitos resguardados pela Constituição. O controle concentrado será exercido sem que haja um litígio concreto, bastando a existência de lei que em tese agrida a Constituição para que seja autorizado o seu exercício.
Luís Roberto Barroso bem sintetiza o tema:
O controle de constitucionalidade por ação direta ou por via principal, conquanto também seja jurisdicional é um exercício atípico de jurisdição, porque nele não há um litígio ou situação concreta a ser solucionada mediante a aplicação da lei ao órgão julgador. Diz-se que o controle é em tese ou abstrato porque não há um caso concreto subjacente à manifestação judicial. A ação direta destina-se à proteção do próprio ordenamento, evitando a presença de um elemento não harmônico, incompatível com a Constituição [06].
Não menos esclarecedora é a lição de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery:
O objeto da ação civil pública é a defesa de um dos direitos tutelados pela Constituição Federal, pelo Código de Defesa do Consumidor e pela lei de ação civil pública. A ação civil pública pode ter como fundamento a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. O objeto da ação direta de inconstitucionalidade é a declaração, em abstrato, da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, com a conseqüente retirada da lei, declarada inconstitucional, do mundo jurídico por intermédio da eficácia erga omnes da coisa julgada. Assim, o pedido na ação civil pública é a proteção do bem da vida tutelado pela Constituição Federal, Código de Defesa do Consumidor ou lei de ação civil pública, que pode ter, como causa de pedir, a inconstitucionalidade de lei, enquanto o pedido na ação direta de inconstitucionalidade será a própria declaração da inconstitucionalidade da lei [07].
A ação civil pública atua no plano dos fatos e litígios concretos, através das tutelas condenatórias, executivas e mandamentais. Por sua vez, a ação direta de inconstitucionalidade, de natureza meramente declaratória, limita-se a atacar a validade da lei ou ato normativo em tese [08]. Na ação direta de inconstitucionalidade, o objeto resume-se a declaração de inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes:
4. Efeitos produzidos em decorrência dos julgamentos da ação civil pública e da ação direta de inconstitucionalidade
Também não há que se falar em equiparação dos efeitos do controle incidental de constitucionalidade, exercido quando da apreciação de uma ação civil pública, aos da decisão proferida em uma ação direta de inconstitucionalidade. Tratam-se de realidades substancialmente distintas.
Decerto, alguns doutrinadores aventam a possibilidade de equiparação quanto aos resultados práticos das referidas ações [09]. No entanto, a simples possibilidade de um resultado prático semelhante ao da ação direta de inconstitucionalidade não é motivo bastante para constituir uma usurpação constitucional da competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal [10]. Ora, ainda nesta situação extrema, em que se vislumbre um efeito prático semelhante, o Supremo Tribunal Federal poderá exercer sua competência, em eventual exercício de controle concentrado.
Enfim, o que não se pode admitir é o uso da ação civil pública em substituição à ação direta de inconstitucionalidade. Nos processos instaurados pelo ajuizamento das ações civis públicas, a aferição da constitucionalidade de determinada norma jurídica, como já afirmado, só se poderá realizar de modo difuso.
O órgão julgador atuará para solucionar o caso concreto que lhe é submetido, consistindo a apreciação da constitucionalidade da norma em mera questão prejudicial, que subordinará logicamente a decisão a ser proferida [11], de acordo com o pedido formulado. O objeto da ação nunca será a pronúncia, em tese, da inconstitucionalidade, mas sim e tão-somente, a solução do conflito de interesses.
Assim, a questão a respeito da constitucionalidade jamais fará coisa julgada, pois, como já se remarcou, a manifestação do órgão jurisdicional sobre a constitucionalidade da norma se realiza sob a forma de uma questão prejudicial e a apreciação desta, decidida incidentalmente no processo, não faz coisa julgada, a teor do art. 469, III, do Código de Processo Civil. [12] Logo, não há como lhe atribuir efeitos erga omnes [13], que se existirem, limitam-se à parte dispositiva da sentença.
Esses efeitos serão, no entanto, distintos na ação direta de inconstitucionalidade.
A autoridade da coisa julgada se forma em relação ao pedido de declaração de inconstitucionalidade – e que constitui o objeto da ação – e opera-se erga omnes (Lei nº 9.868/99, artigo 28, parágrafo único). Constatada, e efetivamente declarada, a incompatibilidade da norma infraconstitucional com a Lei Maior, a conseqüência é a paralisação de sua eficácia e sua retirada do mundo jurídico.
Não se confundem, pois, a ação direta de inconstitucionalidade e a ação civil pública. Assim, não há dificuldades em se determinar a ação direta de inconstitucionalidade como instrumento de controle concentrado da constitucionalidade; sendo indubitável, também, a utilização da ação civil pública, assim como outras ações individuais ou coletivas, como instrumento idôneo ao exercício do controle difuso de constitucionalidade. Tratam-se de instrumentos distintos, que atendem a finalidades distintas, promovendo efeitos distintos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Civil. Reclamação. Ação ajuizada, entre partes contratantes, na persecução de bem jurídico concreto, individual e perfeitamente definido, de ordem patrimonial, objetivo que jamais poderia ser alcançado pelo reclamado em sede de controle in abstracto de ato normativo. Quadro em que não sobra espaço para falar em invasão, pela Corte reclamada, da jurisdição concentrada privativa do Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 602/SP. Reclamante: Banco Mercantil de São Paulo S/A. Reclamado: 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo. Relator: Ministro Ilmar Galvão. Brasília, DF, 03 de setembro de 1997. Publicado no DJ de 14.02.2003, p. 59.
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FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.
GUASQUE, Luiz Fabião. O controle cautelar de inconstitucionalidade nas ações de interesse difuso. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 6, jul./dez. 1997.
NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 2. ed. revista e ampliada, São Paulo: Revista dos Tribunais.
NOTAS
01 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro, 2000, p.143-144.
02 BARROSO, Luís Roberto. O Controle da Constitucionalidade no Direito Brasileiro:exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 1. ed., São Paulo: Saraiva, 2004,p,114.
03 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Civil. Reclamação. Ação ajuizada, entre partes contratantes, na persecução de bem jurídico concreto, individual e perfeitamente definido, de ordem patrimonial, objetivo que jamais poderia ser alcançado pelo reclamado em sede de controle in abstracto de ato normativo. Quadro em que não sobra espaço para falar em invasão, pela Corte reclamada, da jurisdição concentrada privativa do Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 602/SP. Reclamante: Banco Mercantil de São Paulo S/A. Reclamado: 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo. Relator: Ministro Ilmar Galvão. Brasília, DF, 03 de setembro de 1997. Publicado no DJ de 14.02.2003, p. 59.
04 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de Janeiro:Forense, 2000, p. 230-231
05 NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 2. ed. revista e ampliada, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 1403, nota nº 7.
06 BARROSO, Luís Roberto. Op. cit. p,114.
07 NERY JÚNIOR, Nelson ; NERY, Rosa Maria Andrade. Op. cit. p. 1403, nota nº 7.
08 BARROSO, Luís Roberto. Op. cit. p.115.
09 ALVIM, Arruda. A declaração concentrada de inconstitucionalidade pelo STF impõe limites à ação civil pública e ao Código de Defesa do Consumidor. In: MILARÉ, Edis (Coord.). Ação Civil Pública - Lei 7.347/85- Reminiscências e Reflexões após dez anos de aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, Op. cit. p. 131.
10 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de Janeiro:Forense, 2000. p. 232.
11 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 7. ed., vol.5. Rio de Janeiro:Forense, 1998. p. 29-31.
12 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Op. cit. p. 232.
13 GUASQUE, Luiz Fabião. O controle cautelar de inconstitucionalidade nas ações de interesse difuso. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 6, jul./dez. 1997, p. 139.