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O princípio da dignidade da pessoa humana e sua aplicação no processo administrativo disciplinar

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Agenda 09/03/2008 às 00:00

3. O princípio da dignidade da pessoa humana como fonte de outros direitos fundamentais

É por isso que a Constituição Federal se preocupou em, expressamente, consignar, como princípio, a dignidade da pessoa humana.

Romeu Felipe Bacellar Filho destaca: "A dignidade do ser humano foi erigida a fundamento do Estado Democrático de Direito: o seu principal destinatário é o homem em todas as suas dimensões". [24]

É, de fato, por causa da elevação e magnitude da importância do homem no mundo que decorrem direitos fundamentais como a liberdade (as Constituições deferem a faculdade de ir e vir, a concessão de ordem judicial de hábeas corpus), o direito de integridade física e moral (é capitulado o dever de indenização dos danos morais e materiais causados, o imperativo de respeito, mesmo pelo Estado, da vida privada e da intimidade das pessoas), o livre arbítrio (concede-se liberdade para o exercício de profissões, de reunião, de credo religioso), o suprimento de necessidades básicas como a alimentação, o trabalho como fonte de sobrevivência legítima e honesta (tutela-se, nas Cartas Magnas, os valores sociais do trabalho), a saúde, a educação, o lazer, o repouso corporal e mental, a não submissão a tratamento desumano, a justiça, a pluralidade de idéias e orientações políticas, a vedação ao preconceito e à discriminação racial e de outros matizes, dentre outras prerrogativas essenciais à própria existência do ser humano, as quais podem ser encontradas no disposto nos artigos 5º, 7º, da Constituição Federal do Brasil.

De fato, diversos preceitos constitucionais inalienáveis radicam no princípio da dignidade da pessoa humana, como se observa na Lei Maior pátria de 1988: a cidadania, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (art. 1º, II, III, IV e V); os objetivos fundamentais da República de construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, I e IV). Soma-se a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II).

O princípio da dignidade da pessoa humana é explicado em suas origens por Dalmo de Abreu Dallari, o qual assevera que o fim do Estado é promover as condições da vida social que "consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da pessoa humana", ao mesmo tempo em que sublinha que as raízes modernas do Estado democrático, que remontam ao século XVIII, implicam a afirmação de valores fundamentais do homem, cuja proteção incumbe ao ente estatal. [25]

A Lei Maior ainda consagra (art. 5º, caput) a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade; a liberdade de manifestação do pensamento (art. 5º, IV); a indenização por dano material, moral ou à imagem (art. 5º, V); a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI); a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (art. 5º, IX); a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (art. 5º, X); exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; a liberdade de locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens (art. 5º, XVI); a punição da prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão (art. 5º, XLII); a repressão como crime inafiançável da tortura (art. 5º, XLIII); a proibição de penas de morte, de trabalhos forçados ou cruéis (art. 5º, XLVII, "a", "b", "e"), além do respeito à integridade física e moral do preso(art. 5º, XLIX).

Aditivamente, a Carta Suprema brasileira arrola como direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados (art. 6º, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000).

Paulo Gustavo Gonet Branco advoga que o princípio da dignidade da pessoa humana inspira os outros direitos fundamentais e concerne ao respeito à vida, à integridade física e íntima e à segurança de cada ser humano. [26]

Todos esses preceptivos revelam a preocupação do legislador constituinte com a dimensão superior da dignidade da pessoa humana em si e como fundamento de uma série de outras garantias e princípios de raiz constitucional.


4. As formas de incidência do princípio da dignidade da pessoa humana no processo administrativo disciplinar

No estudo da garantia do processo administrativo, cumpre aquilatar o espectro do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, CF 1988) com o efeito de que o poder disciplinar não deverá ser exercitado de forma arbitrária, desproporcional, desmotivada.

O exercício do poder punitivo estatal deve considerar, necessariamente, a importância do cargo para a sobrevivência do cidadão que logrou ingressar no serviço público, mediante concurso, e adquiriu a garantia de permanência com a estabilidade, razão pela qual o funcionário deve gozar de segurança jurídica na mantença do seu vínculo com a pessoa estatal que o investiu em função pública, ressalvadas as hipóteses constitucionais e legais de rompimento da relação jurídica institucional.

É que os direitos à educação, habitação, saúde, ao trabalho, dentre outros direitos sociais, decorrentes da dignidade da pessoa humana, associam-se ao moderado manejo da competência disciplinar pelo Estado, o qual não pode se valer do processo administrativo disciplinar, como instrumento que é destinado à apenação proporcional e justa de infrações realmente puníveis, como forma de privar o agente público acusado da sua estabilidade econômica e de sua família, para os quais a perda do cargo ou da aposentadoria, a título de sanção administrativa, não pode emanar de perseguições políticas, de falta de justa e robusta causa, consistente na prática de infração funcional relevante.

O desvio e o abuso de poder, na esfera do processo administrativo disciplinar, resultam na direta ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, haja vista que as penas podem abalar a estrutura financeira e moral do servidor punido e de seus familiares, os quais têm no cargo ocupado e na sua respectiva remuneração base segura de sobrevivência e de padrão econômico, ainda mais num regime jurídico em que se prevê a estabilidade no serviço público como garantia de assento na Carta Fundamental da República, preceito que não pode ser negado por expedientes desleais de produção de provas ilícitas, de manejo do poder de punir de forma distorcida, injustificada, autoritária ou com motivação em questões pessoais ou antipatias.

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O servidor estatutário deve ser respeitado como profissional devotado à Administração Pública, o qual consagra sua vida ao serviço estatal e não deve ser surpreendido, de forma injusta ou indevida, pela perda do vínculo funcional quando não tenha, verdadeiramente, cometido infrações gravíssimas ao código disciplinar do funcionalismo.

Sobretudo em um mercado de trabalho duro como o brasileiro, em que as pessoas com mais de quarenta anos são desprezadas em sua experiência, por preferência aos mais jovens, a decretação de perda do cargo público não deve ser procedida de forma leviana, draconiana, lançando o funcionário inocente, já idoso ou em idade de difícil reinserção na iniciativa privada, no desemprego, apenas por causa de mau exercício do poder punitivo da Administração Pública.

Por isso, não pode ser abrupta ou desnecessariamente decretada a perda da função, ao livre alvedrio da autoridade julgadora, a qual, ao contrário, deve tomar em conta o funcionário enquanto ser humano, cuja honra, economia e moral dependem do posto ocupado, sobretudo nos casos de idosos, de forma que a dignidade do agente administrativo processado deve ser considerada na aplicação de sanções pela Administração Pública.

Egberto Maia Luz finca que deve ser respeitado, no processo administrativo disciplinar, "o império da consideração à criatura humana, que, antes de tudo, deve ser tratada para não reincidir e, se possível, não ser admitida como agente delituoso." [27]

Luís Roberto Barroso assinala que o princípio da dignidade da pessoa humana, a par de exprimir um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade e cujo conteúdo se associa aos direitos fundamentais, identifica um espaço de integridade moral para as pessoas, representando a superação da intolerância, da discriminação, e no respeito à plenitude de ser, pensar e criar. [28]

O historiador Francisco Bethencourt narra a terrível afronta perpetrada contra o princípio da dignidade da pessoa humana no tempo da Inquisição Espanhola, realizada pela Cúria de Roma, consistente na decretação do confisco dos bens do condenado pelo crime de heresia, assentado no direito canônico medieval, cuja dureza não se restringia à já cruel execução capital dos sentenciados, mas, como se não bastasse, agravava e lançava na miséria os herdeiros inocentes do acusado. [29]

Quem já viu, pessoalmente, alguns dos instrumentos de aplicação dos métodos bárbaros de tortura de condenados ou presos, manejados no período medieval (como a cadeira de pregos, presente no castelo Festung, de Salzburg, na Áustria, ou a terrível roda, encontrada no Museu Madame Tussaud de Londres, na Inglaterra), sabe aquilatar a importância do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana nos processos acusatórios desenvolvidos pelo Estado.

Podem-se vislumbrar reflexos do princípio da dignidade da pessoa humana no dever de preservação de sigilo do processo administrativo disciplinar perante terceiros durante a instrução processual e até o julgamento (art. 150, Lei federal n. 8.112/90), como forma de resguardar a imagem do servidor que responde ao feito e que pode ser inocentado em seu final, da mesma maneira que se justificam as regras quanto ao recebimento de denúncias e às ressalvas e cautelas pertinentes, notadamente quanto às peças denunciatórias anônimas (art. 144, Lei federal n. 8.112/90).

A propósito, no Supremo Tribunal Federal, conquanto exista divergência em torno da matéria, os Ministros Marco Aurélio (relator) e Eros Grau votaram pela concessão do pedido de habeas corpus, impetrado com vistas ao trancamento, por falta de justa causa, de notícia-crime, instaurada no Superior Tribunal de Justiça, por requisição do Ministério Público Federal, contra juiz estadual e dois desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de Tocantins, pela suposta prática do delito de tráfico de influência (CP, art. 332), em vista de que o Parquet da União atuara baseado em denúncia anônima, o que viola o inciso IV do art. 5º da CF ("IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;") e o disposto nos arts. 144, da Lei n. 8.112/1990, e 14, § 1º, da Lei 8.429/92, no que versam sobre a inidoneidade da denúncia anônima para os fins de instauração de processo administrativo ou de ação concernente à improbidade administrativa:

O Min. Marco Aurélio, relator, concedeu a ordem por entender que a instauração de procedimento criminal originada, unicamente, de documento apócrifo seria contrária à ordem jurídica constitucional, que veda expressamente o anonimato. Salientando a necessidade de se preservar a dignidade da pessoa humana, afirmou que o acolhimento da delação anônima permitiria a prática do denuncismo inescrupuloso, voltado a prejudicar desafetos, impossibilitando eventual indenização por danos morais ou materiais, o que ofenderia os princípios consagrados nos incisos V e X do art. 5º da CF. Ressaltou, ainda, a existência da Resolução 290/2004, que criou a Ouvidoria do STF, cujo inciso II do art. 4º impede o recebimento de reclamações, críticas ou denúncias anônimas. [30]

Também se revelam efeitos do princípio da dignidade da pessoa humana quando a Lei Geral de Processo Administrativo da União enuncia que o servidor público, acusado em processo disciplinar, tem o direito, enquanto administrado, de ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações (art. 3º, I, Lei Federal 9.784/99).

Do princípio em alusão deriva que o processo administrativo disciplinar não deve ser o palco de atrocidades contra a pessoa do acusado, para a humilhação, para o achincalhe, para a desmoralização fortuita, para a tortura mental e emocional do acusado mediante interrogatórios que se estendam por oito, quinze horas seguidas, com armas de fogo sobre a mesa dos presidentes de comissões processantes nos casos de autoridades legitimadas ao porte funcional, durante o depoimento do acusado, nem pela revelação pública de detalhes do feito disciplinar, embaraçadores para o funcionário processado, ainda na pendência do julgamento processual.

Mesmo depois da conclusão do processo disciplinar, não se se pode aplaudir o expediente de órgãos públicos que, com ânimo cruel, fixam nas paredes e nos murais da repartição, fazem circular longa notícia, detalhada, no jornal ou boletim interno de divulgação oficial, do fato de que o servidor X foi demitido ou teve sua aposentadoria cassada, porque era corrupto, porque era bandido, etc. Não basta a publicidade da veiculação da pena no Diário Oficial?

Mutatis mutandis, esse tipo de medida aviltante parece inspirar-se na crueldade e violação da dignidade da pessoa humana narrada pelo historiador e pesquisador Fernando Jorge, o qual narra, baseado no Lexicon der Päpste, de Rudolph Fischer WolIpert, que o Papa Estevão VI, no ano de 893, para desmoralizar a memória de Formoso, seu predecessor no Pontício Supremo, mandou arrancar da sepultura o corpo de seu antecessor depois de oito meses de sua morte, vesti-lo de paramentos litúrgicos, com vistas a realizar o "sínodo do cadáver", cortando em seguida os três dedos da mão direita, representantivos dos "dedos da bênção papal", para, por fim, como se não bastasse a descomunal barbaridade, como ato consumador da exemplar punição, lançar o cadáver no rio Tibre! [31]

Semelhantemente, no período da Inquisição Espanhola do século XV, Twiss comenta que

A morte não era garantia de paz – caso se chegasse à conclusão de que o penitente não havia sido castigado o bastante, seus ossos eram desenterrados e queimados, e sua família poderia ser obrigada a assumir suas penas e suas dívidas. Se o acusado optasse pela fuga, seu corpo era queimado em efígie. [32]

Ora, que se imponha a penalidade disciplinar adequada à falta cometida pelo servidor, ainda que seja a medida demissória, mas afronta a dignidade da pessoa do acusado a desnecessária execração pública da figura humana do punido, o qual pode, amanhã, ingressar, com toda razão, com vultosa ação indenizatória por danos morais em caso de ser reintegrado, por força de decisão proferida em decisão judicial posterior, ou ainda por resolução administrativa, em sede de recurso hierárquico, pedido de reconsideração ou em processo de revisão, conforme o fundamento da absolvição decretada em processo-crime posterior.

Não se pode admitir, pois, que a pena assuma caráter vexatório, como outrora sucedia na Inquisição Medieval patrocinada pela Igreja Católica Romana, durante a qual a punição mais leve, a disciplina, implicava que o herege confesso fosse obrigado a aparecer despido na igreja todo domingo com uma vara na mão, a qual era utilizada, em certo momento da missa, pelo padre, que chicoteava a vítima energicamente diante de toda a congregação, repetindo-se o açoite no primeiro domingo de cada mês, nas casas em que o apenado se encontrara com outros hereges, processo executório que tomava curso também, publicamente, após as procissões realizadas nos feriados religiosos da urbe, provações que eram infligidas ao punido pelo resto de sua vida, a menos que fosse liberado por um inquisidor em uma outra visita.Era comum que os réus confessos de heresia fossem compelidos a usar, perpetuamente, uma grande cruz de cor açafrão, costurada na frente e nas costas de suas roupas. [33]

Decorrência da dignidade da pessoa humana, outrossim, se revela a proibição de provas ilícitas, como forma de obtenção de evidências para punir o servidor acusado no processo administrativo disciplinar. Pela mesma razão, veda-se a tortura como forma de obter confissão, a ameaça a familiares. A Lei Fundamental brasileira de 1988, nesse diapasão, capitulou a proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), com o louvável escopo de proscrever das relações jurídicas pátrias e dos mecanismos investigatórios ou punitivos estatais as técnicas bárbaras de execução ou interrogatório, como se testemunhava na Idade Média, durante a Inquisição Espanhola pela Igreja Católica, quando se verificaram: a tortura, preferencialmente sem derramamento de sangue pelos inquisidores, os quais utilizavam os métodos do ecúleo ou flagelo; os anjinhos (instrumentos para apertar os polegares); tenazes e ferros em brasa sobre feridas; a tortura pela água, introduzida à força pela garganta; o potro, em que a pessoa era amarrada num cavalete com cordas apertadas, que eram esticadas cada vez mais; a garrucha, em que a vítima era pendurada pelos pulsos numa roldana presa ao teto, com pesos amarrados aos pés: puxando-se a roldana lentamente, para maximizar a dor, deixava-se o torturado cair bruscamente, deslocando-se-lhe os membros. [34]

Como corolário do princípio da dignidade do ser humano, igualmente, o Estado deverá atuar, na via administrativa, com boa-fé, de forma lídima e confiável, sem praticar atos contrários à expectativa de seu comportamento já demonstrado anteriormente no processo, do que se contemplam preceitos na Lei Geral de Processo Administrativo como atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé (art. 2º, par. único, IV, Lei federal n. 9.784/1999). O Estado não pode utilizar o processo com fim maquiavélico, justificando meios torpes, inaceitáveis, ardis, surpresas artificiosas e outros expedientes malévolos, somente por força do ânimo de conseguir obter o resultado final da apenação do funcionário processado – ainda que inocente!

A própria garantia do devido processo legal emana da dignidade da pessoa humana, a qual tem em jogo, no processo administrativo disciplinar, seus direitos ao vínculo funcional ou à remuneração postos em xeque, modo por que as formas para a atuação administrativa, predeterminadas em lei, devem ser respeitadas, a fim de que as formalidades essenciais ao exercício das faculdades processuais do servidor possam ser exercitadas.

Tanto que a Lei federal n. 9.784/1999 proclama que, no processo administrativo, deverão ser considerados os critérios de observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados e adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados (art. 2º, par. único, VIII e IX, respectivamente).

Sob outro ângulo, o princípio da proporcionalidade também emana da dignidade da pessoa humana. Não deve haver a privação de direitos nem a perda do cargo ou da aposentadoria do acusado, se a conduta não encerra gravidade compatível com penas tão drásticas e de efeitos tão significativos sobre a moral e a vida financeira do servidor acusado e de sua família. Mesmo uma suspensão de noventa dias, com a perda do pagamento da remuneração do funcionário por três meses, já pode causar um grave transtorno na economia pessoal do agente público punido.

Não é debalde que a Lei Geral de Processo Administrativo da União enuncia que é mister o respeito ao critério de adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público (art. 2º, par. único, VI, Lei federal n. 9.784/1999).

Sob outro ângulo, o respeito à dignidade da criatura humana demanda que o Estado não atue de forma arbitrária, injustificada, na esfera disciplinar. Em razão disso, a motivação das decisões sancionadoras erige-se em dever das autoridades julgadoras do processo administrativo apenador.

Não se pode considerar que a demissão de um servidor público ou a cassação de sua aposentadoria ou disponibilidade sejam imotivadamente impostas, uma vez que delas podem resultar lesões e prejuízos financeiros e morais, mesmo a supressão de direitos como o lazer, o sustento familiar como fonte do acesso à educação, à cultura, à saúde, à habitação (o funcionário pode nem sequer mais pagar aluguel sem os vencimentos do cargo de que seja demitido), à alimentação, dentre outros direitos essenciais ao agente público num regime capitalista.

É preciso, pois, que haja lógica, coerência, robusta proporcionalidade e inerente justificativa, explícita, para as penas impostas no processo administrativo disciplinar. A Lei Geral de Processo Administrativo da União obriga a indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão punitiva (art. 2º, par. único, VII, Lei federal n. 9.784/1999).

O princípio da dignidade da criatura humana também importa o contraditório e a ampla defesa na esfera do processo administrativo disciplinar, de sorte que o servidor, o qual pode sofrer graves conseqüências em sua esfera jurídica individual, possa apresentar suas razões para os fatos, sua versão; possa refutar a procedência das teses acusatórias; possa fiscalizar, por meio do direito de presença, a produção de provas pela Administração Pública e propor contraprovas. O acusado deve ter suas razões e meios probatórios produzidos devidamente apreciados e cotejados quando da lavra do julgamento do feito punitivo. Tanto que se defere a garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio (art. 2º, par. único, X, Lei federal n. 9.784/1999). O acusado tem a prerrogativa de reinquirir testemunhas de acusação e contraditar a idoneidade delas para depor sobre os fatos apurados.

Causa repulsa, nesse particular, e a isso se opõe o regramento constitucional presente do processo administrativo disciplinar brasileiro, o processo desenvolvido pela Inquisição Espanhola Medieval do século XV, quando o acusado era, de pronto, antes mesmo da condenação, preso, tinha seus bens confiscados, com prejuízo e miséria imediata para seus familiares e dependentes econômicos, além de seus bens serem vendidos para pagar as despesas de sua permanência no cárcere!Não somente isso, mas as testemunhas de acusação eram mantidas no anonimato, sem que o delatado pudesse eficazmente se defender, o que rendia ensejo e na verdade era instrumento corriqueiro manejado para resolver pendências antigas, para dar vazão a vinganças pessoais, para eliminar rivais nos negócios, de modo que "qualquer um poderia denunciar alguém, e o ônus da defesa caberia ao acusado", num clima de paranóia e terror disseminado naquela quadra trevosa da história da humanidade e do direito. "Denúncias mesquinhas eram a regra, não a exceção." Não se admitia defesa e a tortura fora sancionada pelo Papa em 1252. [35]

Só como resultado de falsos testemunhos, segundo Twiss, foram mortas na fogueira mais de 1.500 pessoas inocentes! [36]

A própria prescrição do direito de punir da Administração Pública centra suas raízes na dignidade da pessoa humana, na medida em que o servidor não pode ficar eternamente sujeito à apreensão de uma conduta praticada há muito tempo, mais de dez, vinte anos, poder render possibilidade a uma pena administrativa, pois o homem deve poder prosseguir sua existência de forma digna, em paz, sem inquietações perenes quanto ao exercício do poder sancionador estatal, haja vista que, se o Estado não apenou determinada conduta no tempo legalmente estipulado, a conclusão é de que não mais pretende revolver o assunto, pondo em risco a velhice do agente outrora infrator, ameaçando-lhe o próximo direito de aposentadoria possivelmente suprimido com a pena de cassação ou a demissão.

Não é debalde que a Lei federal n. 8.112/1990 reza que a prescrição é de ordem pública e não pode ser relevada (art. 112), evidência da importância do princípio da segurança jurídica, quando atrelado ao da dignidade da pessoa humana.

Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. O princípio da dignidade da pessoa humana e sua aplicação no processo administrativo disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1712, 9 mar. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11033. Acesso em: 23 nov. 2024.

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