Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Economia do cárcere

O encarceramento de um integrante da família provoca uma reação em cadeia no âmbito pessoal, e a prisão acaba por atravessar a vida de inúmeras pessoas que não se encontram concretamente presas.

Resumo: O Brasil é um país que prende muito. Existem muitas pessoas enredadas pela prisão, para além daquelas que estão de fato encarceradas. O texto versa sobre as trajetórias e as adversidades enfrentadas por familiares de apenados que os visitam em quatro unidades penais localizadas no estado do Rio Grande do Sul. A partir de um questionário criado com o objetivo de entender o perfil do preso visitado, o perfil dos visitantes, bem como a relação dessas pessoas com seu familiar segregado, a pesquisa foi realizada presencialmente junto ao público entrevistado – familiares visitantes – durante o tempo de espera na fila de entrada em quatro presídios gaúchos em dias de visita. Os resultados empíricos da pesquisa mostraram que o encarceramento de um integrante da família provoca uma reação em cadeia no âmbito pessoal, e a prisão acaba por atravessar a vida de inúmeras pessoas que não se encontram concretamente presas. Além da ausência física do integrante familiar, a prisão impõe uma reorganização na vida desses visitantes, uma reestruturação nas relações que atinge âmbitos emocionais, econômicos e profissionais. Ao final foram propostas três políticas públicas visando impactar positivamente a vida do público pesquisado.

Palavras-chave: Segurança pública, relações familiares, sistema prisional, visitantes, prisionização secundária.


Introdução

Em condições normais de atividades, o sistema prisional brasileiro permite, pelo menos uma vez por semana, que familiares de apenados os encontrem presencialmente dentro das casas penais, mediante uma série de condições a serem cumpridas. Cada estabelecimento prisional possui suas particularidades para o ingresso de visitantes e de materiais. No Rio Grande de Sul, a instituição responsável pelo controle e pela orientação dessas atividades é a Superintendência dos Serviços Penitenciários – SUSEPE – órgão vinculado à Secretaria de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo.

O estudo aqui apresentado buscou explorar as experiências e as dificuldades que a prisão impõe às pessoas que visitam seus familiares encarcerados, por meio de uma pesquisa de campo aplicada durante o tempo de espera na fila de entrada em quatro estabelecimentos prisionais gaúchos em dias de visitação. Por meio da aplicação presencial de questionários, objetivou-se identificar os desafios enfrentados pelos familiares e os impactos da prisão nas relações com os presos.

Em meio à realização da pesquisa de campo, adveio a pandemia da doença COVID-19, causada pelo vírus Sars-Cov-2, ocasionando a suspensão das visitas de familiares aos segregados, impactando diretamente a coleta de dados. A interrupção de visitantes nos estabelecimentos penais do Rio Grande do Sul perdurou de 23 de março de 2020 até meados de maio de 2021. As medidas sanitárias de contenção da propagação do vírus levaram à necessidade de efetuar algumas alterações no desenho de pesquisa, mas que não comprometeram integralmente a coleta de dados.

A pesquisa se justifica pela necessidade de dedicar um olhar sobre as pessoas que dão apoio (material e emocional) aos presidiários, na grande maioria das vezes, são mulheres que suportam sacrifícios, gastam seus usualmente ínfimos recursos com as “sacolas”, permanecem por horas em filas para ter a chance de terem seus corpos e seus materiais revistados por agentes de segurança. Assim, pensar em políticas públicas direcionadas aos familiares de apenados, indivíduos imprescindíveis ao bom andamento das cadeias, é uma questão de utilidade pública e, mais ainda, de humanidade.

Durante todo o texto serão utilizadas palavras variadas para se referir às pessoas privadas de liberdade: interno, apenado, preso, detento, encarcerado, custodiado, prisioneiro, presidiário, aprisionado, recluso, segregado, enclausurado.

Após cerca de três meses de suspensão das visitas, a SUSEPE determinou que os familiares dos apenados poderiam entregar materiais higienizáveis, em dia e horário estipulado previamente por cada unidade prisional, a chamada “entrega de sacola”. Neste texto, o termo “sacola” possui o seguinte significado: embalagens plásticas contendo materiais cuja entrada é permitida em estabelecimentos penais. A partir disso, percebeu-se a oportunidade de retomar a pesquisa de campo, a qual passou a ser aplicada nas filas de visitantes que se formavam nos dias dessa entrega de materiais.

Métodos

A SUSEPE conta com 153 (cento e cinquenta e três) unidades prisionais no Estado do Rio Grande do Sul, das quais apenas 144 (cento e quarenta e quatro) abrigam indivíduos aprisionados, conforme mapa prisional do Departamento de Segurança e Execução Penal da SUSEPE. As demais unidades prisionais correspondem a estabelecimentos penais responsáveis pelo monitoramento eletrônico – popularmente conhecido como “tornozeleira” – dos apenados em território sul-rio-grandense. Para esta pesquisa, foram selecionadas quatro casas prisionais, a saber: Complexo Prisional de Canoas (composto por quatro penitenciárias: Penitenciária Estadual de Canoas I, Penitenciária Estadual de Canoas II, Penitenciária Estadual de Canoas III e Penitenciária Estadual de Canoas IV), Presídio Estadual de Santa Vitória do Palmar, Penitenciária Estadual de Porto Alegre e Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier.

Essas unidades penais foram selecionadas por quatro motivos. A primeira razão foi a quantidade de detentos alojados nessas instituições prisionais: entendeu-se pertinente averiguar se havia divergências nas respostas ao questionário, em virtude da capacidade de lotação dos estabelecimentos penais. Ponderou-se que circunstâncias como infraestrutura, quantidade de efetivo funcional e quantidade de visitantes poderiam afetar as respostas. O segundo motivo foi a localização das unidades penais. Considerou-se que poderia haver dissenso nas respostas dos entrevistados, em razão da localidade onde a casa prisional se situa. Avaliou-se que circunstâncias como facilidade de acesso [englobando tempo decorrido para chegar ao presídio, qualidade (trem, ônibus, lotação, entre outros) e quantidade (horários) de transporte público ofertado], poderiam influenciar as respostas à ferramenta de pesquisa.

A terceira razão foi o tipo de regime prisional. Julgou-se que a pesquisa deveria ser aplicada em unidades penais direcionados ao regime fechado, uma vez que essa forma de aprisionamento é a mais rigorosa – conforme ordenamento jurídico nacional –, isto é, tende a distanciar com mais intensidade os internos de seus familiares, por privar sua liberdade de locomoção e de comunicação praticamente em tempo integral. O quarto motivo foi a conveniência e facilidade no acesso das pesquisadoras a essas instituições prisionais.

A presente pesquisa teve por objetivos explicitar de que forma uma série de indivíduos também são enredados pela prisão, até mesmo aqueles que sequer possuem vínculo direto com os presidiários. O estudo objetivou revelar o que acontece com as pessoas que acompanham a prisão de outras, como os contextos de vida são transformados pelo encarceramento de um membro familiar, e de que formas a cadeia afeta ou se infiltra na vida de quem não está segregado.

A fim de identificar as adversidades e as trajetórias de familiares de apenados em quatro unidades penais do Rio Grande do Sul, elaborou-se um questionário contendo 32 (trinta e duas) perguntas, as quais contemplam tanto questões abertas, quanto fechadas. A ferramenta foi aplicada entre os meses de janeiro de 2020 a junho de 2020, presencialmente.

No total, foram coletadas respostas de 96 (noventa e seis) familiares de presos no estado do Rio Grande do Sul, sendo 93 (noventa e três) respostas válidas para a pesquisa, pois duas respondentes estavam realizando a primeira visita e uma entrevistada havia conhecido o companheiro recluso dentro do presídio. Estar realizando a primeira visita ou iniciar um relacionamento dentro da prisão foram filtros para não dar continuidade às entrevistas, ao passo que algumas questões do questionário exigem requisitos, como, por exemplo, um período mínimo de visitas e um contato pré-encarceramento para a completa compreensão de algumas questões. A pergunta central do trabalho: “como a prisão mudou a sua relação com o preso?” é um exemplo.

A amostra utilizada no estudo é não-probabilística e por conveniência, portanto os dados obtidos não permitem inferência estatística ou generalização das conclusões para todo o universo de familiares de pessoas encarceradas. Embora não tenha sido possível a análise a partir de inferências estatísticas, a amostra não-probabilística oferece um panorama geral da situação por meio de informações amplas que abrangem os principais campos do objeto de análise. Ademais, os dados permitem sistematizações das percepções das pessoas entrevistadas - e somente delas - acerca dos tópicos abordados. Portanto, a análise por meio de amostra por conveniência mostrou-se relevante e adequada ao cenário estabelecido. A sistematização dos dados foi desenvolvida pelas próprias pesquisadoras e contou com codificações de algumas questões abertas. Para tanto, foram utilizadas as ferramentas Google Forms e SPSS.

O local de coleta e o posto de observação utilizado no roteiro das entrevistas foi, inicialmente, a parte externa (fila de espera) à entrada nas cadeias em dias de visita. Quando não foi mais permitida a visitação em razão da pandemia, as coletas de dados foram efetuadas nas filas de espera para entrega de sacola (igualmente na parte externa dos estabelecimentos prisionais).

As entrevistas iniciavam-se com a apresentação da aplicadora, dos objetivos da pesquisa e da instituição responsável pelo trabalho. Ao iniciar o diálogo, os familiares foram informados sobre a livre participação e a garantia de anonimato às suas respostas, bem como sobre o teor das questões. As perguntas da ferramenta de estudo dividiram-se em três partes: a primeira destinou-se a verificar exclusivamente o perfil do entrevistado; a segunda foi direcionada ao perfil do apenado e sua relação pessoal com o entrevistado; a terceira parte concentrou-se na relação do entrevistado com o sistema prisional e nas adaptações e mudanças ocorridas no relacionamento com o detento em razão do encarceramento. Para isso foi elaborado um sistema gradual de opiniões sobre as inconveniências ocasionadas aos entrevistados em decorrência do encarceramento como parte integrante de seu cotidiano.

Processos de prisionização secundária

Os muros físicos não aprisionam a prisão. Em maior ou menor grau, as pessoas que, de alguma forma, relacionam-se com o confinamento penal são atingidas pelos efeitos do cárcere, os quais transitam pelas esferas sociais, profissionais, financeiras e/ou emocionais.

Megan L. Comfort (2003), no ano 2000, realizou um estudo na prisão de San Quentin (Califórnia) nos Estados Unidos, durante o qual fez observação na sala de espera dos visitantes da prisão e desenvolveu o conceito de prisionização secundária, que deriva de um clássico da sociologia prisional: The Prison Community, de Donald Clemmer, no qual o autor sustenta a ideia de que, em comparação com a utilização do termo ‘americanização’ para descrever um maior ou menor grau de integração dos imigrantes no estilo de vida americano, pode-se também usar o termo ‘prisionização’ para indicar a adoção, em maior ou menor grau, de rotinas, de hábitos, de costumes e da cultura geral das prisões pelos familiares que acompanham os apenados durante o cárcere, existindo portanto uma assimilação da instituição prisional para além de suas barreiras físicas.

Segundo a autora, a prisionização secundária se trata de um processo derivado e dependente da prisionização primária, pelo qual os familiares e amigos de presidiários padecem de restrições de direitos, escassez de recursos, marginalização social e outras consequências, meramente devido ao contato com a prisão.

Na mesma linha de pensamento, Godoi (2017) explana seu entendimento sobre os efeitos sociais externos mais amplos do encarceramento, isto é, a ação da prisão fora de seus limites estruturais e suas consequências sociais imprevistas e abrangentes:

Diferentes especialistas convergem na constatação de que a prisão atua no entorno social do detento, operando uma espécie de “punição invisível”, que, além de comprometer formas de subsistência e destituir orçamentos familiares, promove a estigmatização de mulheres, crianças e comunidades com consequências objetivas e subjetivas bastante graves. (GODOI, 2017, p. 192)

Reproduzindo a definição proposta por Goffman (1981, p.07), “o termo estigma é usado em referência a um atributo profundamente depreciativo”, cujos portadores veem sua identidade deteriorada ou desvalorizada. A noção de estigma pode originar-se a partir de aspectos físicos, comportamentais, morais ou mesmo de afiliação e, segundo o autor, trata-se de um atributo contagioso socialmente. Cúnico et al. (2020) sustentam que o estigma é transmitido para as pessoas próximas e/ou vinculadas ao estigmatizado, isto é, da mesma forma que o indivíduo ou o grupo é deteriorado, as pessoas vinculadas a ele também são. Corroborando a ideia de Godoi (2017), é possível inferir que o processo de estigmatização é uma das consequências da prisionização secundária.

Cúnico et al. (2020) explicam que, é possível identificar com clareza o processo de estigmatização no âmbito prisional. O estigma associado ao prisioneiro expande-se e ultrapassa as barreiras físicas do cárcere, ao passo que a família do detento também passa a sofrer estigmas relacionados à privação de liberdade, como se criminosos fossem.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Em outros termos, os familiares são percebidos como um prolongamento do preso e, por isso, devem sofrer represálias e constante desconfiança. Conforme Comfort (2008), os familiares visitantes vivenciam uma condição de quase-presos quando se encontram dentro dos estabelecimentos prisionais, visto que não estão legalmente segregados da sociedade, todavia permanecem sob constante suspeita por parte das autoridades, ainda que temporariamente.

Visitar alguém em uma prisão requer resiliência e paciência, planejamento, informações, conexões, tempo e recursos. É uma jornada que transforma a vida e a rotina dos familiares que peregrinam nas madrugadas pelos caminhos fatigantes que levam às cadeias. Os familiares acabam por cumprir pena juntamente com o detento, ao sofrer penalizações apesar de não terem relação com a “dívida social” dos apenados. Dedicam horas incontáveis antes e durante a visitação, submetem-se ao controle e ao escrutínio do ambiente prisional, sujeitam-se a revistas corporais e a outros tipos de constrangimentos por parte da administração penitenciária, além de serem estigmatizados por grande parte da sociedade, muito embora não estejam presos.

As visitas são fundamentais para o fluxo de informações, de produtos e de favores entre o mundo externo e o mundo interno das penitenciárias. A oportunidade de entrar e de sair das casas prisionais por parte dos familiares é essencial para o abastecimento dos detentos e para acelerar seus processos judiciais com advogados particulares ou com a Defensoria Pública. A visitação representa uma maneira de conciliar o mundo interno do cárcere e o mundo externo. Para uma estadia minimamente confortável, é imprescindível ao interno manter relações com o mundo exterior. (GODOI, 2017)

Os estabelecimentos penais, por outro lado, impõem limites e regras a essas relações. Todos os estabelecimentos prisionais do Estado do Rio Grande do Sul estão sujeitos ao Regulamento Geral para Ingresso de Visitas e Materiais em Estabelecimentos Prisionais, instituído pela SUSEPE por meio da Portaria nº 160, em 29 de dezembro de 2014. Apesar disso, cada casa prisional tem a faculdade de adicionar normas próprias, conforme a peculiaridade de cada unidade penal.

São muitas as diretrizes que envolvem o trânsito de pessoas e de bens de fora para dentro da prisão. Essas orientações e determinações são produzidas em diferentes instâncias estatais, desde o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), passando pela SJSPS (Secretaria de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo) até as unidades penitenciárias.

A grande maioria das casas prisionais no Estado do Rio Grande do Sul se mantém por meio de doações de materiais (roupas, lençóis, toalhas, sabonetes, pasta dental, escova dental, sabão, esponja, xampu, condicionador, entre outros itens básicos), cuja origem é variada: entidades religiosas, organizações não governamentais, conselho da comunidade, entre outros órgãos públicos e privados, acarretando ao governo uma desoneração velada em cumprir a Lei de Execução Penal (LEP), ao não fornecer os itens essenciais para a manutenção da integridade física e da saúde dos presos.

Produtos mais elaborados – como, por exemplo: amaciante de roupas, açúcar, biscoito – são adquiridos apenas por meio das visitas ou da “cantina”. As cantinas são armazéns ambulantes que se instalam semanalmente, por determinado período do dia, dentro de alguns estabelecimentos prisionais, com a finalidade de comercializar produtos alimentícios, higiênicos, estéticos, recreativos, entre outros. Nessa senda, afora os presos que trabalham e recebem salários de empresas vinculadas ao sistema prisional, os demais encarcerados dependem de seus familiares para obter os recursos utilizados nas compras da cantina.

É comum as casas prisionais carecerem de itens básicos à subsistência dos apenados; é igualmente habitual o compartilhamento de materiais entre a população carcerária. Colchões, cobertores, copos, colheres, xícaras, pratos, pasta dental, papel higiênico, pacote de absorvente, sabão, esponja, sabonete, por exemplo, são utilizados por mais de um preso em uma mesma casa prisional, eventualmente, de forma simultânea, uma vez que são materiais escassos no ambiente prisional.

Muitos visitantes frustram-se por empregar muito tempo e dinheiro no preparo de alguma refeição que é impedida de entrar nas unidades prisionais. Durante a aplicação dos questionários, inúmeros foram os protestos dos visitantes quanto ao tratamento dispensado na revista dos materiais por parte dos agentes de segurança.

Despedaçar bolachas, abrir o invólucro do café, transpor o achocolatado para um saco plástico transparente, romper o lacre do refrigerante, desempacotar os absorventes, contabilizar as gramas do queijo, partir a barra de chocolate em pequenos pedaços são exemplos de atividades operadas na revista material da sacola. Os bolos são retalhados, as frutas devem ser descascadas e picadas, as carnes não podem conter ossos e devem ser igualmente picadas em pedaços pequenos, as massas são remexidas, os pães são esmagados, os mousses e flans são escavados, deixando os alimentos, muitas vezes, com má apresentação ou aspecto de “lavagem”.

O esmero dedicado à elaboração das comidas é desfeito. No entendimento de muitos familiares, esse comportamento significa uma humilhação efetuada pela instituição penal. A comida elaborada pelo familiar é considerada um elemento capaz de criar vínculo, manter os laços afetivos entre o preso e a visita, alimentando não apenas o corpo, mas também o relacionamento entre ambos. Além disso, o tempero caseiro repõe, em parte, “a ideia de um cotidiano doméstico que, atravessado pela prisão, reconfigura- se de outras formas.” (LAGO, 2019, p. 40)

Os trajes autorizados pela administração dos estabelecimentos penais são comumente chamados pelos próprios visitantes de “uniforme”. Os familiares praticamente utilizam sempre a mesma roupa para frequentar as unidades prisionais, como se fosse uma “segunda-pele”. Dornellas (2019) discorre que a restrição quanto às vestimentas sugere uma maneira de a instituição desnivelar os visitantes, demonstrando que, de certa forma, são vistos como inferiores, desprezados.

A SUSEPE justifica a seleção rigorosa das vestimentas como forma de evitar que os demais apenados ou mesmo os agentes de segurança olhem com concupiscência para as mulheres visitantes (situação que pode gerar sérios embates).

Dornellas (2019) sugere que o Estado, ao produzir normas demasiadamente rígidas e exigir extensa burocracia, está alastrando a punição aos familiares, de modo a desestimular as visitas. A autora pondera que essas regras podem ser criadas com a finalidade de desmotivar a visitação.

Esse tópico foi alvo de muitas reclamações durante a aplicação da ferramenta de pesquisa, especialmente por parte das mulheres, que se sentem ridicularizadas por terem sua feminilidade cerceada. Proibições fundamentadas em códigos morais simbolizam uma violência latente e emblemática por parte das instituições, cujo controle extrapola os limites da razoabilidade em nome da “segurança”.

Outrossim, a revista corporal denota outra forma de o Estado atravessar a fronteira prisional no corpo dos familiares visitantes. Uma vez proibida a revista íntima vexatória, a administração pública contornou esse obstáculo por meio dos scanners corporais, que nada mais são que outra forma de continuar sujeitando os corpos das pessoas ao poder do Estado.

Revista vexatória, considerada uma violação sexual institucionalizada pela ampla jurisprudência brasileira, consiste no procedimento de desnudamento total das vestes, agachamentos repetitivos, exames nas cavidades corporais e inspeção das genitálias, com a finalidade de verificar a existência de algum objeto ilícito introduzido. A aplicação da revista vexatória aos visitantes foi banida por meio da Lei Federal nº 13.271, de 15 de abril de 2016.

Até mesmo a “noção de família” é demarcada pela administração prisional, visto que o Regulamento Geral de Visitantes estabelece um rol taxativo de parentes que são autorizados a visitar o segregado. Padrasto e madrasta, por exemplo, não são considerados entes familiares de acordo com a Portaria nº 160/2014 – SUSEPE, necessitando requerer junto ao Poder Judiciário uma autorização para realizar a visita. Ademais, a administração penitenciária exige a comprovação do grau de parentesco por meio de documentos oficiais ou elaborados para tal fim.

A prisão acaba por influenciar, inclusive, os tipos de emprego que os visitantes podem exercer, porquanto seja necessário haver flexibilidade no horário de trabalho; isso porque há dias de visita que ocorrem durante a semana em certas unidades prisionais.

Nos dias anteriores à visita, é exigido do visitante tempo e dinheiro para a viagem e para a compra e o preparo dos alimentos que serão entregues ao apenado. Além disso, é preciso separar as vestimentas para o dia da visitação, planejar com quem deixará os filhos, separar o valor da passagem de trem, lotação, Uber ou/e ônibus até a unidade prisional, empacotar os itens da sacola, entre outros cuidados eventuais.

Os recursos envolvidos na compra de produtos e nos trajetos até a porta da penitenciária constituem possibilidades de ganhar a vida. Há uma economia em torno do cárcere (bares, “barraquinhas”, motoristas, entre outros), enredando outras pessoas sem vínculo direto com o encarceramento, contudo é a partir dele que se sustentam. Barraquinha é o termo utilizado para denominar o comércio informal itinerante instalado nos arredores dos presídios em dias de visita.

No estado de São Paulo existem várias empresas criadas especificamente com o intuito de montar kits com alimentos, produtos de higiene, produtos de limpeza, itens de tabacaria, itens de papelaria, calçados, roupas, e acessórios permitidos em presídios, entregues prontos na sacola/jumbo diretamente ao visitante.

Outro serviço prestado por essas empresas é o envio de carta registrada aos apenados. O site dessas lojas ainda é informa a lista de itens permitidos de acordo com a unidade penal onde o preso se encontra. É necessário que o visitante adicione foto ou imagem da carteirinha de visita, a fim de atestar o vínculo e identificar a unidade prisional, para viabilizar o envio da carta registrada. Os sites funcionam como os aplicativos de delivery, apresentando o produto e o valor de cada item, permitindo ao cliente adicionar ao carrinho, finalizar a compra e rastrear a entrega.

Além disso, foi criado um aplicativo exclusivamente com a finalidade de entregar sacolas diretamente às casas penais. Nomeado “Picua”, o aplicativo foi criado com o propósito de facilitar a vida dos familiares que não podem/conseguem ir ao mercado, pegar filas, caminhar longos percursos com sacolas pesadas e, ainda, correr o risco de comprar algum item não aceito pelo estabelecimento prisional. O aplicativo apresenta o serviço como um método capaz de reduzir o tempo gasto nas filas de espera nos dias de visita, tornando a entrada dos visitantes mais ágil e tranquila, bem como oportunizar o envio de itens ao familiar que reside longe da penitenciária ou que não pode faltar ao serviço para entregar pessoalmente a sacola.

Conforme a LEP, as penitenciárias, diferentemente das cadeias públicas e dos presídios, devem ser construídas em locais afastados do perímetro urbano das cidades, a uma distância que não restrinja a visitação. Por isso, em dias de visita, “barraquinhas” de comerciantes informais são instaladas nos entornos desses estabelecimentos prisionais, a fim de prestar auxílio aos visitantes, principalmente àqueles de primeira viagem. Conversar com os demais visitantes e se informar sobre as normas estabelecidas pela casa prisional são maneiras de garantir que os produtos comprados cheguem ao detento. (BRASIL, 1984)

As barraquinhas prestam todo tipo de apoio: vendem refeições, lanches rápidos, produtos alimentícios e bebidas (tanto para o tempo de espera na fila de entrada, quanto para compor a sacola a ser entregue ao preso), alugam espaços para armazenamento de pertences dos visitantes (exemplos: carteiras, chaves de automóveis, guarda-chuvas, entre outros itens que não têm autorização para adentrar no interior da casa prisional), alugam ou vendem roupas (legging, camisetas, tops: peças escolhidas mediante as estritas normas prisionais para o vestuário de visitantes), fazem o traslado entre a unidade prisional e os pontos de ônibus ou de trem mais próximos ou mesmo até à residência dos visitantes. Outrossim, servem para os visitantes aguardarem a entrega da senha por parte dos agentes penitenciários, para se abrigarem da chuva ou do sol, para confraternizarem com outros visitantes enquanto a casa prisional não inicia o procedimento de entrada, ou mesmo para trocarem experiências. As barraquinhas foram o principal palco de aplicação do questionário utilizado nesta pesquisa.

Desde o primeiro dia de pesquisa foi perceptível, nas filas de espera das casas prisionais, a grande presença de visitantes do sexo feminino. Essa observação confirmou- se após a coleta dos dados: 87,1% dos respondentes da pesquisa (familiares de pessoas presas) foram mulheres, sendo que a maioria (aproximadamente 42%) estava visitando o companheiro, seguida do filho (19,4%) e do irmão (7,5%).

As informações obtidas junto ao INFOPEN (sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro) reiteraram essa informação, indicando que as companheiras correspondem a aproximadamente 45% no Presídio Estadual de Santa Vitória do Palmar e a cerca de 60% na Penitenciária Estadual de Porto Alegre, valor obtido no relatório de visitantes referente ao ano de 2019 (período de 01/01/2019 a 31/12/2019).

Na ocasião em que as perguntas se voltaram para o perfil do apenado, verificou- se um número expressivo de respostas afirmativas quanto à filiação, 68 (sessenta e oito) entrevistados referiram que o detento tem filhos. Quando perguntado sobre a convivência dos filhos menores com o genitor preso, 46% dos pesquisados responderam que os descendentes menores não realizam visita.

Os efeitos do encarceramento para crianças incluem depressão, rebeldia e isolamento. Durante a aplicação do questionário, houve várias narrações sobre o afastamento entre os filhos e os presos, e como esse distanciamento afetou os descendentes após a prisão. Seguem reproduções de respostas de entrevistados:

  1. “O filho da [presa] sofre muito, se isola e sente saudades da mãe.”

  2. "O [preso] sente falta do filho.”

  3. “Eu sofro muito. Tenho que ficar cuidando do filho da [presa], que está revoltado.”

O encarceramento de um ou de ambos os genitores influencia o comportamento, o rendimento escolar e, inclusive, a estrutura cognitiva das crianças, a partir da separação repentina da pessoa que lhes dedicava cuidados integralmente. Sem contar as mudanças que ocorrem no cotidiano desses filhos que ficam “órfãos”, pois em muitos casos, são obrigados a ir morar com avós ou com outros parentes distantes, podendo ser separados dos irmãos, ou até mesmo afastados do convívio familiar, passando à situação de abrigamento. (DORNELLAS, 2019)

Os descendentes menores de idade, cujos genitores estão aprisionados, são mais vulneráveis a abusos sexuais e à pobreza, e estão mais propensos ao envolvimento com a criminalidade, gerando um ciclo de abuso e negligência que perpassa gerações (BRAMAN, 2002, apud DORNELLAS, 2019).

Quanto à questão financeira dos respondentes, do total de entrevistados, 42 (quarenta e dois) responderam que recebem algum tipo de benefício financeiro governamental, sendo que cerca da metade (20 respostas afirmativas) destes recebem, pelo menos, bolsa-família. Foram computadas apenas 05 (cinco) concessões de auxílio- reclusão. Ao serem indagados sobre o baixo número de beneficiados pelo auxílio- reclusão, os familiares informaram que há muita burocracia exigida pelo governo. Foi relatado pelas visitantes que a grande maioria das companheiras não têm como comprovar o vínculo com o detento, pois não possuem declaração de união estável assinada em cartório. Porém, destacou-se o relato de uma das respondentes que afirmou ter se formado no ensino superior utilizando o valor auferido com o auxílio-reclusão.

Essas condições de negligência e de indignidade, às quais os órgãos públicos submetem essas pessoas, não se tratam de necessidades burocráticas, mas sim de punições, propagando o castigo do preso aos seus familiares (COMFORT, 2008).

Esse descaso por parte do poder público pode ser uma das causas de muitos familiares de apenados envolverem-se com atividades ilícitas, pois é o que lhes resta, diante das dificuldades que se apresentam. Isso sugere que uma das possíveis consequências dos pouquíssimos benefícios concedidos a essas pessoas é o crescimento do crime organizado. As organizações criminosas se valem dessas circunstâncias para agregar integrantes, auxiliando a família nas despesas domésticas.

Quando inquiridos sobre se, atualmente, o detento auxilia nas despesas domésticas e/ou nas despesas com a visitação, a ampla maioria dos pesquisados (69,9%) negou. Não se entrou na celeuma sobre a procedência (lícita ou ilícita) dessa assistência.

No que tange aos gastos com a visita, foi solicitado aos entrevistados que ponderassem não só o valor da sacola, mas também o gasto com deslocamento e com preparação (fazer comida para o preso, pagar uma babá para deixar os filhos menores enquanto realizam a visitação, aquisição de roupas permitidas, valor despendido com aluguel de armário para guardar o telefone e outros pertences nas “barraquinhas”, refeições realizadas fora de casa, entre outras despesas). Considerando todos esses fatores, cerca da metade dos familiares respondeu que despende mais de R$ 151,00 (cento e cinquenta e um reais) para realizar uma visita. Muitos entrevistados referiram que desembolsam, aproximadamente, R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais) apenas com a sacola.

De acordo com a amostra realizada, os familiares que realizam uma visita por semana gastam, no mínimo, R$ 600,00 (seiscentos reais) mensalmente. Os familiares que visitam o segregado duas vezes por semana e, em ambas as vezes levam uma sacola farta, gastam cerca de R$1.200,00 (um mil e duzentos reais) por mês, ou seja, mais que um salário-mínimo somente para visitar o interno. Isso sugere que o cárcere também causa um impacto financeiro na vida dos familiares. Salienta-se que as principais ocupações declaradas pelos respondentes foram: faxineiro, auxiliar, atendente, cabelereiro(a), manicure e autônomo. Esse fato leva a crer que as sacolas são financiadas por organizações criminosas, já que os valores lucrados pelas profissões acima relacionadas não condizem com os gastos declarados.

Nesse contexto, o perfil encontrado para os visitantes, através dos relatórios oriundos do sistema INFOPEN e dos questionários aplicados, é de mulher, companheira, desempregada, com mais de um filho, na faixa etária entre 25 (vinte e cinco) e 29 (vinte e nove) anos e entre 40 (quarenta) e 49 (quarenta e nove) anos.

A respeito da indagação acerca das dificuldades enfrentadas pelos familiares para realizar a visita, 31 (trinta e um) respondentes alegaram incomodarem-se com a limitação de tipos e de cores das vestes que as casas prisionais impõem; 30 (trinta) declararam encontrar dificuldade na aquisição dos itens autorizados; 21(vinte e um) acreditam que a carteirinha de visitante poderia ser confeccionada no mesmo dia da visita, evitando assim gastos dobrados com deslocamento e tempo; 19 (dezenove) referiram contratempos em reunir toda a documentação exigida para a elaboração da carteirinha de visitante; 10 (dez) relataram que o acesso ao estabelecimento penal é um obstáculo à visitação, por ter que caminhar longos trajetos em estradas de chão, faça chuva ou faça sol; e 13 (treze) informaram que nada os incomoda.

Acerca das adversidades suportadas pelos familiares visitantes durante a visitação, o tempo de espera na fila foi a opção que atingiu o maior índice de reprovação, seguido pela revista da sacola, por entenderem que o tempo gasto com a espera e com a inspeção dos itens poderia ser mais bem aproveitado se estivessem na presença do detento. A revista corporal foi apontada pelos pesquisados como o terceiro maior inconveniente durante a visita, tendo como subsequente a opção sobre as condições de higiene e instalações dentro do presídio. Em quinto lugar, oito respondentes indicaram a falta de trato pelos agentes da segurança como motivo de insatisfação.

A ausência de um mínimo conforto físico nos locais destinados aos familiares durante os dias de visita evidenciam que estes não são bem-vindos, são considerados pela administração penitenciária pessoas de menor valor, causando-lhes sentimentos de depreciação e humilhação (COMFORT, 2008).

Ponderando que o tempo médio de permanência dos visitantes dentro das instituições prisionais estudadas seja, em média, de 07 (sete) horas, conforme relatórios do sistema INFOPEN, as várias etapas de controle transformam o processo muito moroso e oneroso para o familiar, uma vez que gastam, no mínimo, 29% desse tempo com os procedimentos de ingresso e de saída. Nesse cenário, o visitante passa praticamente o dia envolvido com a visita, visto que há de se considerar o tempo de deslocamento de ida e de retorno ao lar, ou seja, um dia a menos de lazer, de trabalho e/ou de cuidado com os filhos.

Quanto às mudanças no relacionamento pré/pós prisão, aproximadamente 27% dos pesquisados declararam que nada mudou em sua relação após o encarceramento, das quais 16 (dezesseis) eram companheiras. Por outro lado, 64 (sessenta e quatro), isto é, quase 70% da amostra, acreditam que a prisão impactou seu relacionamento com o recluso de alguma forma.

Por se tratar de uma pergunta aberta, as respostas foram separadas em: positivas e negativas. Às respostas que exprimiram sentimentos angustiantes, tristes, sofridos, raivosos, ressentidos em relação aos efeitos do encarceramento em suas vidas e em seus relacionamentos foi dado o conceito negativo. As manifestações que demonstraram algum tipo de boa qualidade foram intituladas como positivas. As respostas também foram categorizadas de três formas: 1) os impactos do cárcere sobre a relação familiar; 2) os impactos do cárcere sobre o aprisionado pela visão da visita; e 3) os impactos do cárcere no membro familiar visitante.

Independente da classificação, foi possível constatar que os pontos negativos se sobressaem aos positivos na visão dos entrevistados. Os impactos do cárcere na relação entre o familiar e o recluso foram os mais destacados pelos entrevistados, seguidos pelas mudanças comportamentais no apenado e, por último, os impactos no próprio familiar.

Durante as entrevistas, um relato destacou-se. Tratava-se de uma idosa, avó de um detento, que expôs a seguinte situação:

“Sofro preconceito dos outros familiares e vizinhos, que acham que eu não deveria vir visitá-lo. Me sinto envergonhada em falar que tenho um neto preso. Às vezes escondo até do meu marido que estou aqui, os próprios pais do [preso] não aceitam.”

O relato acima é capaz de validar o poder de contágio do estigma que, ao se estender aos familiares, faz com que sintam a necessidade de esconder de pessoas próximas o contato com o mundo prisional, para se preservarem de mais críticas e ofensas.

Contudo, é preciso frisar que o estigma não é vivenciado de forma similar por todos aqueles que mantêm um vínculo com os indivíduos privados de liberdade. Vale mencionar, que as consequências em função da contaminação do estigma podem ser sentidas com maior ou menor intensidade, a depender de como a comunidade em que vivem lida com o confinamento penal.

Em algumas comunidades, a violência – e, consequentemente, o encarceramento - estão inseridos tão profundamente que o estigma associado ao indivíduo que tem a sua liberdade cerceada não é sentido ou vivenciado tão pejorativamente quanto em outros grupos sociais, em que as pessoas não convivem com atividades criminosas de forma habitual. (CÚNICO et. al., 2020)

Ao indagar sobre sofrer preconceito por ser familiar de uma pessoa privada de liberdade, as respostas foram similares, 50,5% alegaram enfrentar discriminação tanto por parte dos próprios membros da família, quanto por parte de terceiros. Já 49,5% negaram sofrer rejeição, ou porque simplesmente não revelam a condição do familiar aprisionado, ou porque vivem em um meio em que essa circunstância não é reprovável.

Uma possível explicação para os entrevistados expressarem pontos positivos a partir do encarceramento é o empoderamento feminino. Culturalmente, na estrutura da família brasileira o homem figura como provedor e a mulher, como mantenedora. Quando o provedor é encarcerado, há alterações na dinâmica entre os membros da família. Pode ser que a mulher, ao passar ao papel de provedora do lar, sinta-se mais segura e confiante, demonstrando esses sentimentos nas respostas. Aquelas que eram agredidas física e verbalmente, enganadas e humilhadas pelos companheiros, têm a origem da violência afastada. Nesse cenário, foi possível encaixar a seguinte declaração de uma respondente: “Enquanto ele estiver preso, não vai me trair.”.

Outra assertiva que apareceu entre as respostas ao questionário foi a frase: “prefiro que ele fique preso, pois não pretende mudar de vida, então tenho medo de que seja morto na rua”. Isso sugere que o cárcere impacta na situação do apenado das mais diversas maneiras, isto é, se na rua ele estava ameaçado de morte, aprisionado está seguro, na ótica dos respondentes que assim expressaram. Pode ser que a cadeia seja uma salvação para esse indivíduo, que, ironicamente, está mais seguro dentro de uma prisão do que na rua, sob a perspectiva de seu familiar.

Considerações finais

O presente trabalho teve como escopo pessoas que não estão reclusas, mas têm sua vida profundamente afetada pela prisão. Existem muitos indivíduos enredados pelo cárcere além do próprio apenado: agentes de segurança, advogados, defensores públicos, juízes, professores, comerciantes, familiares e amigos de presos, fornecedores, prestadores de serviço, entre outros. Esta pesquisa teve como tema principal familiares que enfrentam inúmeras adversidades para conviver com seus parentes aprisionados, de que forma e em que medida as consequências do encarceramento se estendem para a vida de tais pessoas.

Através da pesquisa de campo que durou cerca de um ano, entre interrupções por causa da pandemia mundial em razão da doença COVID-19, causada pelo vírus Sars- Cov-2, e reformulações no projeto inicial, foi possível coletar respostas de 96 (noventa e seis) familiares de apenados ao questionário estruturado com perguntas abertas e fechadas, algumas de escolha simples, outras de múltipla escolha.

A partir da ferramenta de pesquisa e de dados oriundos do INFOPEN, foi possível analisar alguns pontos dos relacionamentos intermuros das prisões. Almejou-se evidenciar as condições derivadas da prisionização secundária, verificar se o cárcere seria capaz de deteriorar os relacionamentos familiares, romper os vínculos afetivos entre a família e o preso. Cabe enfatizar que não se pode afirmar se houve ou não rompimento de laços, pois a pesquisa envolveu apenas detentos que recebem visitas de seus familiares. Vale ressaltar que as autoras têm consciência de que, entrevistando somente pessoas que visitam seus familiares segregados, é possível apenas apresentar uma análise parcial de como o cárcere atinge as famílias, dado que a maior parte da população prisional não recebe visitas regulares.

Apurou-se que alguns relacionamentos tiveram os laços estreitados, em razão do sentimento de saudade pela ausência do familiar recluso, segundo manifestado por entrevistados. Os vínculos familiares e afetivos observados em razão da pesquisa são muito fortes, pois é a família quem mais provê para o detento e garante a sua sobrevivência no sistema prisional. Todavia, não deixa de ser um ônus, um encargo muito grande, em especial às mulheres, que jamais deveria ser repassado às famílias.

A dispersão das casas prisionais pelo interior do Rio Grande do Sul foi uma hipótese aventada como possível justificativa para o rompimento de laços. Essa circunstância não foi citada pelos entrevistados como empecilho para a realização da visita, mesmo porque os prisioneiros geralmente são alocados em casas penais próximas aos locais de suas residências, exceto no caso dos presídios exclusivamente femininos, já que existem poucas unidades no Rio Grande do Sul.

A infraestrutura dos estabelecimentos penais, a variabilidade das normas que cada unidade prisional adota e os procedimentos constrangedores de revista corporal foram situações avaliadas como presumidamente capazes de reduzir a frequência da visitação por parte dos familiares. A pesquisa demonstrou que nenhuma das razões citadas acima são capazes de reduzir a periodicidade com que os familiares visitam os detentos. Muito pelo contrário, os respondentes exteriorizaram que não apenas ultrapassam as barreiras impostas pelo Estado para encontrar seu familiar aprisionado, como também desejam aumentar a frequência de dias de visita.

Segundo averiguado por meio da pesquisa de campo, foi possível observar um considerável impacto financeiro a partir do aprisionamento do membro familiar. As companheiras assumem dois trabalhos, submetem-se a jornadas extras ou encarregam-se das atividades do detento no mundo externo. As famílias reestruturam-se, reorganizam-se para suprir a falta do ente encarcerado, mas dificilmente atingem a mesma condição econômica pré-encarceramento.

A partir dos resultados provenientes dos questionários aplicados, foi possível inferir que há considerável quebras nas relações entre pais e filhos, pois as crianças são, em grande parte, afastadas de seu genitor preso. Em contrapartida, as mães dos apenados não os abandonam, mesmo se vendo obrigadas a passar por situações constrangedoras, como a revista corporal, aguardar muitas horas na fila para ingressar nos estabelecimentos penais, enfrentar frio, chuva e calor para encontrar seus filhos.

A pesquisa identificou elementos da prisionização secundária nos entrevistados, estigmatizados por vizinhos, comerciantes, patrões, amigos e/ou mesmo pelos próprios familiares por conviverem com a prisão e manterem relações com detentos. O cárcere reestrutura a vida de muitos indivíduos, não apenas dos que se encontram segregados. Famílias inteiras mudam-se de bairro ou mesmo de cidade para ficarem mais próximas do ente aprisionado. Pessoas passam dias inteiros dedicados a visitar seu parente preso, gastam horas deslocando-se até as unidades penais, onde permanecem mais horas no aguardo da abertura dos portões. Gastam valores exorbitantes com mantimentos, os quais são intencionalmente remexidos ou mesmo destroçados. Sentem-se ridicularizadas e humilhadas perante as circunstâncias que se obrigam a enfrentar. Colocam seus corpos à disposição do Estado, expostos a estranhos que analisam cada costura d e suas vestimentas.

Os deveres do Estado descumpridos geram relações conflituosas entre servidores e visitantes. Caso a LEP fosse cumprida à risca, não haveria necessidade de os familiares levarem alimentos, produtos higiênicos nem roupas para dentro das casas prisionais. A revista material seria, então, eliminada do procedimento de entrada; extinguindo, assim, as práticas de desmantelamento e/ou rejeição da comida que tanto desagradam os visitantes. Se as condições dos familiares de pessoas aprisionadas já eram críticas antes da pandemia, a situação atual reforça a importância do suporte do Estado para garantia da sobrevivência dessas famílias.

A partir da pesquisa desenvolvida, do contato profissional com o meio prisional e dos dados oriundos da SUSEPE, foram pensadas três políticas públicas de fácil e rápida aplicação, visando facilitar a vida dos visitantes, diretamente afetados pelas políticas criminais e pelo encarceramento.

Primeiramente, objetivando reduzir a quantidade de idas aos presídios e de comidas jogadas fora ou de visitas malsucedidas por enganos com as roupas permitidas, seria fundamental padronizar os itens de entrada e as roupas aceitas pela instituição e divulgar ao público essas informações no site oficial da SUSEPE, discriminando as peculiaridades de cada casa prisional.

Ademais, a imposição de especificidades para as roupas permitidas dentro dos estabelecimentos penais leva a crer que se trata de uma questão sexual, uma forma de opressão em especial sobre as mulheres, objetivando assexualizá-las. Não parece haver uma justificativa plausível relacionada à segurança do estabelecimento penal ao impedir que as visitantes usem trajes justos. Nessa senda, repensar o processo de entrada dos visitantes mostra-se oportuno e profícuo, principalmente no que diz respeito às vestes. Autorizar a livre entrada de roupas é uma forma de humanizar a relação entre a instituição e os visitantes.

Além disso, a implementação de uma carteirinha de visitantes virtual mostra-se iminente. Atualmente os documentos de identificação oficiais são aceitos por meio de aplicativos do governo. Semelhantemente a isso, a instituição é capaz de implantar um aplicativo que receba os documentos necessários à confecção das carteirinhas de forma digitalizada, verifique a autenticidade dos mesmos e disponibilize um documento virtual aos interessados em visitar as unidades penais. Assim, eliminaria a quantidade de papéis produzidos e armazenados, eliminaria o retrabalho dos servidores em confeccionar um novo documento a cada transferência ou ingresso de preso em uma unidade prisional e não haveria a necessidade de o visitante comparecer em diferentes datas no estabelecimento penal apenas para a confecção do documento. As digitais dos visitantes poderiam ser coletadas no dia de visita, sem maiores demandas, ou mesmo captadas pelo próprio aplicativo no aparelho telefônico, da mesma forma que os equipamentos identificam os usuários pela sua digital, como forma de substituir senhas numéricas/alfabéticas.

Por fim, reforça-se que, caso a LEP fosse cumprida à risca, não se estimularia a proliferação de um comércio que lucra com a prisão e os familiares não seriam penalizados para promover o bem-estar do interno. Essa incumbência pertence ao Estado, responsável pela garantia dos direitos dos indivíduos sob sua custódia a sua integralidade.

Referências

BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 14 mar. 2021.

COMFORT, M. L. Doing time together: love and family in the shadow of the prison. Chicago: The University of Chicago Press, 2008.

COMFORT, M. L. In the tube at San Quentin: The ‘secondary prisonization’ of women visiting inmates. Journal of Contemporary Ethnography, Pennsylvania, v. 32, n. 1, p. 77- 107, Feb. 2003. Disponível em: <https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.884.6954&rep=rep1&type=pdf> Acesso em: 03 mar. 2021.

CÚNICO, S. D., PIZZINATO, A., STREY, M. N., & COSTA, A., B. Estigma e

Construção do Território de Pessoas Privadas de Liberdade e seus Familiares . Revista Subjetividades, 20(Especial 1. Relações Intergrupais: Preconceito e Exclusão Social), e8776, 2020. Disponível em:

<http://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20iEsp1.e8776>. Acesso em: 10 nov. 2021. DORNELLAS, M. P. Os efeitos do encarceramento feminino para a família da mulher presa: aspectos da transcendência da pena. Antropolítica - Revista Contemporânea De Antropologia, (46), 2019. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/antropolitica/article/view/41915>. Acesso em: 10 nov. 2021.

GODOI, R. Fluxos em cadeia: As prisões em São Paulo na virada dos tempos. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

GOFFMAN, E. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª edição. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

LAGO, N. B. Jornadas de visita e de luta: tensões, relações e movimentos de familiares nos arredores da prisão. 2019. 231 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/T.8.2019.tde-20122019-174339>. Acesso em: 02 mar. 2021.

RIO GRANDE DO SUL, Superintendência dos Serviços Penitenciários - SUSEPE. Mapa prisional. Porto Alegre, [2021]. Disponível em: <http://www.susepe.rs.gov.br/capa.php>. Acesso em: 30 mar. 2021.

RIO GRANDE DO SUL. Superintendente dos Serviços Penitenciários. Portaria nº 160/2014-GAB/SUP. Aprova o Regulamento Geral para Ingresso de Visitas e Materiais em Estabelecimentos Prisionais da Superintendência dos Serviços Penitenciários. Porto Alegre, 29 de dezembro de 2014. Disponível em: <http://www.susepe.rs.gov.br/upload/1461590367_Portaria%20de%20Visitas%20SUS EPE%202014%20V13.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2021.

Sobre as autoras
Vanessa Lima Ferrari

Policial penal no Estado do RS. Bacharela em Administração pela UFPEL. Bacharela em Direito pela UFPEL. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UNISINOS. Mestre em Segurança Cidadã pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Cidadã da UFRGS.

Melissa de Mattos Pimenta

Doutora em Sociologia e professora associada do Departamento de Sociologia da UFRGS. Membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Segurança Cidadã da UFRGS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERRARI, Vanessa Lima; PIMENTA, Melissa Mattos. Economia do cárcere. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7705, 5 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110410. Acesso em: 22 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!