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O julgamento do Recurso Extraordinário n. 635659/STF e a posse de maconha para uso pessoal como falta grave no âmbito da execução penal

Agenda 27/08/2024 às 18:04

No âmbito da execução penal, a falta grave disposta no art. 52 da Lei n. 7.210/1984, c/c o art. 28 da Lei n. 11.343/2006, não poderá mais surtir efeitos desde o julgamento do RE 635.659 pelo STF.

Segundo o art. 28. da Lei n. 11.343/2006, “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.

No âmbito da execução penal, sabe-se que “as faltas disciplinares classificam-se em leves, médias e graves” (art. 49, caput, da Lei n. 7.210/1984).

O art. 52, caput, da Lei n. 7.210/1984, ainda prevê que “a prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasionar subversão da ordem ou disciplina internas, sujeitará o preso provisório, ou condenado, nacional ou estrangeiro, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado”.

Todavia, no Recurso Extraordinário n. 635659. de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, e em sede de repercussão geral (Tema 506), o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu no dia 26/6/2024, por maioria, dar provimento ao recurso da Defensoria Pública do Estado de São Paulo para “declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28. da Lei 11.343/2006, de modo a afastar do referido dispositivo todo e qualquer efeito de natureza penal, ficando mantidas, no que couber, até o advento de legislação específica, as medidas ali previstas”, isso em relação à maconha (posse de até 40 gramas de entorpecente).

Significa que a conduta prevista no art. 28. da Lei n. 11.343/2006, ao menos em relação à cannabis sativa, deixou de ser uma infração penal, interpretação que, segundo a Corte Suprema, está mais adequada ao direito de intimidade e vida privada estabelecidos no art. 5º, X, da CF/19881.

Não se trata de mera mudança de jurisprudência, mas do nascimento de um precedente2 decorrente do overruling 3, já que faltas graves cometidas durante a execução da pena em razão do art. 52. da Lei n. 7.210/1984, c/c o art. 28. da Lei n. 11.343/2006, poderão ser revistas a partir de agora.

É que as normas jurídicas inferiores precisam guardar compatibilidade vertical com a CF/1988, em razão do princípio da supremacia da Constituição Federal. Se a lei ou algum dispositivo legal de lei for incompatível com as normas constitucionais a sua edição será inválida (nula).

Sobre esse assunto, colhe-se do texto abaixo:

A Constituição Federal é a norma jurídica fundamental do ordenamento jurídico brasileiro. É ela, portanto, quem dá fundamento de validade aos demais atos normativos, sendo esse o racional que deu origem à ideia de que a norma violadora da Constituição, formal ou materialmente, deve ser declarada nula desde a origem, como se nunca tivesse existido (eficácia retroativa natural da declaração de inconstitucionalidade). Sem dúvida, o sistema jurídico não pode conviver com qualquer lei que ofenda a sua norma fundamental superior (a Constituição) (Santos, André Henrique Azeredo. As lições da modulação de efeitos na declaração de inconstitucionalidade. Disponível em <https://www.migalhas.com.br/depeso/359037/modulacao-de-efeitos-na-declaracao-de-inconstitucionalidade>, acesso em 25/8/2024).

Dito de outro modo, o art. 28. da Lei n. 11.343/2006 nasceu com vício insanável.

Noutra quadra, é preciso mencionar que o Supremo Tribunal Federal não modulou os efeitos do alcance do acórdão proferido, ou seja, os efeitos operam ex tunc, permanecendo as regras gerais do art. 27. da Lei n. 9.868/19994 e do art. 927, § 3º, do Código de Processo Civil5, ainda que por analogia.

Ora, “partindo do pressuposto de que o vício de inconstitucionalidade é um vício de nulidade, afirma-se que, no silêncio, a eficácia é retroativa até a origem (ex tunc)” (Luiz Alberto David Araújo; Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de direito constitucional. 23. ed., rev. e atual. – Santana de Parnaíba/SP: Manole, 2021, p. 67).

Outrossim, embora a questão não tenha sido discutida em sede de controle concentrado de constitucionalidade6, o Recurso Extraordinário n. 635659. teve a repercussão geral reconhecida, como dito anteriormente, razão pela qual, por força do Código de Processo Civil, aplicável por analogia ao Código de Processo Penal7, os juízes e tribunais deverão observar o entendimento da Corte Suprema:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

[...]

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

[...]

V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

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Trata-se do “efeito vinculante”, cujo objetivo é criar segurança jurídica, evitar decisões conflitantes sobre um mesmo tema e preservar o princípio da isonomia jurídica.

Aliás, à luz do Código de Processo Civil, seguem importantes considerações sobre o Recurso Extraordinário julgado sob o regime de repercussão geral:

[...] além dos casos de controle concentrado, é necessário tratar neste ensaio da aplicabilidade erga omnes e vinculante, oriunda do julgamento dos recursos extraordinários com repercussão geral (RG). Em regra, a RG provoca uma aproximação entre os sistemas de controle difuso e concentrado.

[...]

Pela análise sistemática do art. 1.035, do CPC, é possível afirmar que a RG é requisito de admissibilidade prévio aos demais requisitos de admissibilidade recursal. A análise da transcendência da matéria constitucional está ligada ao novo papel das decisões oriundas do STF e a própria objetivação de seus julgamentos, como instrumentos voltados a diminuição do tempo de duração dos processos e a ampliação do caráter vinculante de suas interpretações constitucionais.

De outra banda, a RG também é utilizada como estímulo ao cumprimento de Súmula e Jurisprudência Dominante da Corte Suprema. Esses instrumentos de vinculação vertical e de eficácia erga omnes atuam em claro processo de autoestimulação: quando a decisão recorrida por recurso extraordinário desatender súmula ou jurisprudência dominante, necessariamente há RG (art. 1.035, §3º, I, do CPC).

Não se deve esquecer que a RG faz parte do processo de reengenharia do papel constitucional do STF, eis que sua interpretação constitucional deve ser atendida pelos demais órgãos do Poder Judiciário, bem como sua atuação em matéria recursal excepcional é restrita às causas com Repercussão Geral, incluídas aquelas que desatendem Súmula (vinculante ou não) e jurisprudência dominante.

Nesse sentido, é possível falar em ampliação dos poderes para as causas repetitivas cuja questão constitucional já tenha sido apreciada no recurso paradigma.

[...]

Trata-se, vale repisar, de eficácia pan-processual à rejeição da RG, demonstrando que o controle realizado em determinado caso concreto terá eficácia vinculante.

A possibilidade de ampliação da decisão do RE para casos similares é um claro instrumento de objetivação do recurso extraordinário, tendo em vista que o recurso tende a controlar a ordem constitucional objetiva e não somente o caso concreto que está em julgamento. Portanto, nessa reengenharia, é remodelado o papel do RE como instrumento de controle da ordem constitucional objetiva.

[...]

Em derradeira análise: as decisões em RE também possuem caráter vinculante, quer pela análise da RG, quer pelo julgamento do mérito recursal. Há, portanto, a aproximação entre o controle de constitucionalidade concentrado e o difuso, nos aspectos ligados aos efeitos, à aplicabilidade prática, à modulação, intervenção de amicus curiae, alegação da inconstitucionalidade na norma, em ação rescisória ou impugnação ao cumprimento de sentença (art. 525, §§12 a 15 c.c art. 535, §§5º a 8º do CPC)14, etc.

Como conclusão, o controle de constitucionalidade subjetivo (caso concreto) pode se transformar em objetivo (objetivação do controle difuso), em caso de julgamento de recurso extraordinário com RG, com clara aproximação das consequências advindas das ações de constitucionalidade (Mouta, José Henrique. Recurso extraordinário com repercussão geral e aproximação dos sistemas de controle de constitucionalidade. Disponível em <https://www.migalhas.com.br/depeso/341672/recurso-extraordinario-com-repercussao-geral-e-aproximacao-dos-sistema>. Acesso em 25/8/2024).

Nota-se uma nítida tendência da doutrina e da jurisprudência em conferir eficácia ultra-autos à decisão de mérito proferida pelo STF declarando a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade de determinada norma legal, substituindo a outrora vigente teoria da subjetivação do Recurso Extraordinário pela teoria da objetivação desse recurso, buscando a antecipação do efeito vinculante de suas decisões em matéria de controle de constitucionalidade pelo sistema de controle difuso. Afinal, não há diferença de ordem substancial entre a decisão que declara a inconstitucionalidade de uma norma pelo sistema de controle concentrado e abstrato, e aquela que resulta da declaração incidentum tantum, salvo o procedimento que difere n’um e n’outro caso.

[...]

Entendemos que o efeito erga omnes deva ser antecipado nas declarações de inconstitucionalidade pronunciada no Recurso Extraordinário com reconhecimento de Repercussão Geral do tema constitucional ventilado, por questões de praticidade e de economia processual e, também, para conferir efetividade na prestação jurisdicional do Estado (Harada. Kiyoshi. Efeitos do Recurso Extraordinário com Reconhecimento de Repercussão Geral. Disponível em https://haradaadvogados.com.br/efeitos-do-recurso-extraordinario-com-reconhecimento-de-repercussao-geral/, acesso em 25/8/2024).

O art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868/19998, ainda dispõe que “a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal”.

Em reforço à argumentação aqui delineada, o art. 493, caput, do Código de Processo Civil9, c/c o art. 3º do Código de Processo Penal, estabelece que, “se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão”.

Por todo o exposto, fica claro que, no âmbito da execução penal, a falta grave disposta no art. 52. da Lei n. 7.210/1984, c/c o art. 28. da Lei n. 11.343/2006, não poderá mais permanecer, abrindo espaço para a correção da data-base, a alteração do comportamento do apenado, bem como a restituição dos dias remidos que foram declarados perdidos.

Indo mais além, procedimentos investigatórios e ações penais envolvendo o crime de posse de maconha para uso pessoal poderão ser objeto de discussão por conta da atipicidade da conduta.


Notas

  1. CF/1988: Art. 5º. [...]; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

  2. Segundo Francisco Monteiro Rocha Júnior, o precedente “é fruto da deliberação de um julgamento que vincula juízos futuros sobre a mesma questão (como ocorre na repercussão geral e nos representativos de controvérsia)”. A jurisprudência é elemento de persuasão e “diz respeito ao entendimento de determinado tribunal sobre um tema” (Recurso especial e recurso extraordinário criminais. 3. edição. – Florianópolis/SC: Emais, 2020, p. 43).

  3. Mudança de entendimento de um tribunal acerca de tema jurídico anteriormente pacificado. Essa alteração jurisprudencial pode-se dar por alteração no ordenamento jurídico ou evolução fática histórica (disponível em <https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/tesauro/pesquisa.asp?pesquisaLivre=OVERRULING>. Acesso em 23/8/2024).

  4. Lei n. 9.868/1999: Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

  5. Código de processo civil: Art. 927. [...]. § 3º. Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

  6. ADIN – Ação direta de inconstitucionalidade; ADC - Ação declaratória de constitucionalidade; ADPF – Ação de descumprimento de preceito fundamental.

  7. Código de processo penal: Art. 3º. A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

  8. Lei n. 9.868/1999: Art. 28. [...]. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.

  9. Código de processo penal: Art. 493. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão.

Sobre o autor
Fabiano Leniesky

Autor: Fabiano Leniesky, OAB/SC 54888. Formado na Unoesc. Advogado Criminalista. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal. Pós-graduado em Advocacia Criminal. Pós-graduado em Ciências Criminais. Pós-graduado em Direito Probatório do Processo Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LENIESKY, Fabiano. O julgamento do Recurso Extraordinário n. 635659/STF e a posse de maconha para uso pessoal como falta grave no âmbito da execução penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7727, 27 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110688. Acesso em: 21 set. 2024.

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