O Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, no dia 12/09/2024, no julgamento, com repercussão geral, do RE 1.235.340/SC ser possível a execução imediata da pena para pessoas condenadas pelo Tribunal do Júri, tão logo seja prolatado o veredicto, ainda em primeiro grau.
A decisão é o coroamento de uma tese sustentada já há alguns anos pelo Ministro Luis Roberto Barroso, no sentido de que a condenação no Tribunal do Júri abala fortemente a presunção de inocência, em razão da previsão constitucional de soberania dos veredictos, a qual autoriza o imediato início do cumprimento da pena.
O centro da questão diz respeito ao conteúdo da letra c do inciso XXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal, o qual possui a seguinte redação:
XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Conforme o dispositivo destacado, efetivamente a soberania dos veredictos encontra importante previsão na Carta Constitucional, porém, está inscrito no seu artigo 5º, no título que trata dos direitos e garantias fundamentais, ou seja, faz parte da pauta mínima de proteção do cidadão contra o Estado, com finalidade de limitar o poder punitivo estatal, jamais ampliá-lo.
Nessa toada, quando o Pretório Excelso, utiliza da soberania dos veredictos para ampliar o poder punitivo estatal, nega validade à própria lógica constitucional, afastando seu sentido estrutural.
Ao proclamar ser possível o cumprimento de pena, no júri, desde a condenação em primeiro grau de jurisdição, independentemente de qualquer recurso do acusado, como decorrência da soberania dos veredictos, a Corte Constitucional utilizou um princípio que se insere na ótica dos direitos e garantias fundamentais, não para a salvaguardar o cidadão contra o poder do Estado, mas para ampliar a capacidade do Estado de intervir nas liberdades fundamentais, em desconexão com o próprio sentido teleológico da regra.
Afora isso, o entendimento a favor do cumprimento imediato da pena, com base na soberania dos veredictos, consolida contradição hermenêutica incompatível com a racionalidade do sistema de justiça.
Isso ocorre porque, o STF proclama que a acusação pode combater a absolvição, discutindo o próprio mérito do julgamento em recurso, sem que a soberania dos veredictos o impeça, ao mesmo tempo fixando que esse mesmo princípio de soberania dos veredictos impõe ao réu o imediato cumprimento da pena, tornando estável o julgamento de mérito, claramente gerando estrutura totalmente ilógica, impossível de ser sustentada.
Não bastasse, como destacado com precisão no voto divergente do Ministro Gilmar Mendes, há inconvencionalidade na solução adotada pela Corte Constitucional, na medida em que o Brasil é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a qual no seu artigo 8º, item 2, ao tratar das garantias judiciais fixa que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:...h) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.
A questão é ser garantia decorrente da própria condição humana, a de recorrer ao menos uma vez, ou seja, a execução de uma pena, já a partir da decisão de primeiro grau, constitui-se em verdadeiro ataque a aspecto essencial da pauta mínima dos direitos humanos, pois, implica em vedar por via indireta a possibilidade recursal, na medida em que retira qualquer eficácia real de eventual recurso da pessoa condenada.
A esse título, não se pode sequer cogitar que o cumprimento da pena a partir do primeiro grau não estaria em confronto com a CADH, por não impedir de forma direta o réu, se o desejar, de recorrer.
Isso porque, eventual recurso do réu seria mera ficção, pois, uma vez provido, seus efeitos são nulos, afinal, o tempo de pena cumprido é irreparável, não havendo como resgatar o tempo de vida indevidamente subtraído, o sofrimento havido, os danos colaterais para familiares, eventual perda de emprego, de patrimônio pela paralisação da atividade produtiva que garantia sua manutenção, entre outras tantas consequências.
Novamente parece ter sido o sistema jurídico penal vitimado pela devastadora e sempre perniciosa onda do populismo penal, pela qual é realizado um uso panfletário das medidas punitivas como se fossem uma panaceia capaz de resolver os problemas da sociedade, quando todos os estudos científicos da criminologia demonstram o contrário, a forte ação criminógena das prisionalizações.
É compreensível o empenho em equacionar o problema do desrespeito à vida existente no Brasil, com a prática homicida em escala bastante expressiva, porém, subverter a lógica constitucional dos direitos e garantias, incrementando às prisionalizações não parece ser, sequer remotamente, caminho capaz a reduzir os dados da violência, sendo previsível sua tendência em aumentá-lo, pelo grande quantitativo de pessoas que serão rapidamente encarceradas, sem prévia estruturação do sistema prisional e, o mais grave, com grande parte dessas pessoas, encarceradas por condenações em processos depois reconhecidos nulos em grau recursal.
Há uma certeza demonstrada pela história, toda vez que uma exceção é gerada nos direitos dos cidadãos, ela tende a se converter em regra. Ao abrir a exceção, convertendo o princípio da soberania dos veredictos, em amplificador do poder punitivo estatal, o Pretório Excelso corre risco de abrir a exceção a se converter em regra, pela qual, os direitos e garantias fundamentais não mais protegem às pessoas, e todo conteúdo constitucional pode sempre ser utilizado para amplificar o poder do Estado e reduzir as liberdades.
Vale lembrar que as tiranias modernas não foram construídas sem leis, sem Constituições, mas, ao contrário, fazendo elas serem seu principal veículo.