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Juiz de garantias: debate sobre o sistema acusatório.

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Agenda 26/09/2024 às 16:55
  1. CRÍTICAS SOBRE A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 13.964/2019 E SUA EFETIVIDADE

    1. Obstáculos estruturais, financeiros e orçamentários.

É cediço que não basta o legislador criar leis para concretizar direitos fundamentais senão há um arcabouço de recursos e estruturas para concretizá-los. A questão não é a existência de lei, mas a necessidade de estrutura da Administração Pública e, como no caso em debate, sobretudo a estrutura da Administração da Justiça.

A incompatibilidade desse sistema possui um considerável obstáculo diante da realidade da maioria dos Tribunais Federais e Estaduais por questões práticas e orçamentárias. Levantamento feito pela Corregedoria Nacional de Justiça constatou que cerca de 40% das varas da Justiça Estadual no Brasil são comarcas únicas, ou seja, com apenas um magistrado encarregado da jurisdição61. Nesses locais, então, sempre que o juiz atuar no inquérito policial ficará automaticamente impedido de julgar na fase processual.

Outro dado que reforça essa problemática que o juiz de garantias foi criado sem prévia dotação orçamentário em violação ao art. 169. da CRFB/88. Porque não é possível realização quando ocorre aumento de gastos, como no caso em questão por depender da atuação de dois magistrados em fases diferentes62. Vencer esse obstáculo passa pelo inevitável aumento do quadro de juízes, que esbarra em questões orçamentárias 63no montante de no mínimo, R$ 2.574.000.000,00, dois bilhões, quinhentos e setenta e quatro milhões de reais. 26

Os críticos apontam e, com razão que o prazo de 30 dias para efetivar o juiz de garantias é exíguo. Com isso, dificulta a organização do Poder Judiciário para sua aplicação conforme a lei. Assim, ao revés de salvaguardar direitos individuais e preservar a imparcialidade do juiz, pode prejudicar a razoável duração do processo o que provocará injustiças irreparáveis.

Por isso, a suspensão da medida cautelar deferida sine die, ad referendum pelo Ministro Luiz Fux na condição de relator das ADI’s 6.298, 6299, 6300 e 6.305 será uma boa oportunidade para que a organização judiciária se adapte ao sistema de duplo juiz.

Outro ponto que causa indignação por parte da doutrina é a respeito na exigência de criação de sistema de rodízios de magistrados nas comarcas que funcionam apenas um juiz, ex vi art. 3-D parágrafo único.64 Para muitos essa solução é insuficiente, pois impactaria o orçamento público com abertura de concursos para aumento no quadro de juízes.

Por outro lado, há quem defende que o argumento sobre a inviabilidade do sistema de rodízios de magistrados é pueril. Nesse caso, a solução para a problemática é informatizar as comarcas e criar centrais de inquéritos que exercerão a função de juiz de garantias de forma integralmente virtual. A informatização da justiça é medida mais econômica do que o aumento do quadro de pessoal. Aliás, a reforma justifica a abertura de concursos de juízes que estão em déficit e são necessários para oxigenar o Poder Judiciário.

Destarte, o argumento sobre a inviabilidade do sistema de rodízios de magistrados não se sustenta. 65

Enfim, é evidente que há necessidade de adaptação da estrutura judiciária já existente em todo o país para que as funções do juiz da não recaiam sobre a mesma pessoa. Para isso, além da informatização das comarcas e de novos concursos para juiz, é necessária uma divisão funcional de competências já existentes para dar efetividade à norma de impedimento do art. 3-D do CPP.

(In) constitucionalidade da Lei 13964/2019

No tocante a (in) constitucionalidade há corrente que entende que a que a disposição prevista no art. 3º-B do CPP da Lei 13.964/2019 padece de vício formal de iniciativa. A AMB e a Ajufe apresentaram ADI com argumento principal que o projeto de lei deveria ser proposta do judiciário por repercutir na competência, conforme art. 93, d e art. 96, I, d e II, b e d da CRFB violando o princípio da independência harmônica entre os poderes, cláusula pétrea. Argumenta que não só padece de vício formal como não respeita os princípios da isonomia, ao não ser previsto no âmbito dos tribunais. Aliás, alegam ofensa ao princípio do juiz natural decorrente da inobservância una e indivisível.

A adoção do juiz de garantias viola também o princípio do juiz natural, na medida em que dispõe que dois juízes ficarão responsáveis por um mesmo processo em fases distintas. A situação é agravada pelo fato de que o denominado juiz de garantia ficará responsável não só pela prática de atos na fase investigatória, como também irá analisar, em determinados casos, o mérito das imputações contra o acusado, invadindo a esfera do juiz responsável constitucionalmente pelo processual. Como exemplo, poderá absolver sumariamente o acusado ou receber a denúncia, e decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou de colaboração premiada66.

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O Ministro relator das ADI’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 asseverou do deferimento da medida cautelar para suspender os artigos do instituto:

“[...] a criação do juiz das garantias não apenas reforma, mas refunda o processo penal brasileiro e altera direta e estruturalmente o funcionamento de qualquer unidade judiciária criminal do país. Nesse ponto, os dispositivos questionados têm natureza materialmente híbrida sendo simultaneamente norma geral processual e norma de organização judiciária, a reclamar a restrição do art. 96. da Constituição.”

Com todo o respeito, mais os argumentos de inconstitucionalidade não devem prosperar já que o instituto do juiz de garantias é matéria de natureza processual penal de competência privativa da União Federal, nos termos do art. 22, I da CRFB/88. O pacote anticrime, portanto, não trata de matéria de auto-organização dos Tribunais e, muito menos da organização e da divisão judiciárias.

Neste diapasão, José Frederico Marques ensina sobre a diferença entre leis de organização judiciária e leis de processo:

“[...] as leis de organização judiciária cuidam da administração da justiça e as leis de processo da atuação da justiça. [...] As leis processuais, portanto, regulamentam a tutela jurisdicional, enquanto que as de organização judiciária disciplinam a administração dos órgãos investidos da função jurisdicional.”67

O próprio relator Ministro Luiz Fux no julgamento da ADI nº 4.414 (STF, Pleno. Rel. Min. Luiz Fux, j. 31/05/2012. Dje 114 em 14/06/2013) consignou que a cisão funcional de competência não se insere na esfera legislativa dos estados-membros, sendo matéria de direito processual penal, de competência privativa da União, art. 22, I da CRFB/88.

Entretanto, o parágrafo único do art. 3-D do CPP contraria os argumentos anteriores por violar o poder de auto-organização dos tribunais ao impor o sistema de rodízios que funciona apenas um juiz. Logo, por ter natureza de norma de organização judiciária em contradição ao art. 96, I “d” da CRFB/8868 o parágrafo único deste artigo deve ser considerado inconstitucional.69

Conquanto, trata-se de uma opção legítima do Congresso Nacional de instituir uma nova espécie de competência funcional por fase do processo, afastando o magistrado que atua na fase investigativa de decidir na fase instrutória. 70


CONCLUSÃO

O Código de Processo Penal ainda contém resquícios do sistema inquisitorial que violam tanto a ordem Constitucional vigente quanto a Convenção Americana de Direitos Humanos no tocante a imparcialidade do julgador. Assim, busca-se superar definitivamente o sistema inquisitorial e adaptar o processo penal à nova ordem constitucional do sistema acusatório.

Para isso, é necessário demarcar efetivamente a separação das funções de acusar, defender e julgar como bem expressa Luigi Ferrajoli:

“A separação entre as funções de acusar, defender e julgar é o signo essencial do sistema acusatório de processo penal, porquanto a atuação do judiciário na fase pré-processual somente é admissível com o propósito de proteger as garantias fundamentais do investigado”71

Nesse contexto, é louvável o advento do instituto do juiz de garantias que possui o mister de promover a separação das funções de acusar e julgar. É dizer, é inequívoco que o magistrado só deve atuar na fase pré-processual assumindo a função de juiz de garantias com o propósito de ser o responsável pelo controle de legalidade da investigação criminal e, salvaguardar os direitos individuais do investigado.

É importante para concretizar o sistema acusatório a vedação da iniciativa acusatória do juiz de garantias e da iniciativa probatória do juiz do processo. É notório que o juiz não deve substituir as partes do ônus de produção das provas. Por isso, o magistrado independente da fase que atue, quer seja pré-processual quer seja a fase processual jamais pode atuar de ofício.

O objetivo é proteger o vínculo psicológico do juiz com a causa quando tiver contato direto com as peças de informação do inquérito. Portanto, o juiz de garantias não deve decidir sobre o recebimento da denúncia quanto ter que proferir decisões cautelares, absolvição sumária ou quaisquer decisões sobre o mérito. Nesse caso, deve remeter a denúncia ou a queixa para que o juiz do processo faça o juízo de prelibação sobre a peça acusatória.

Por outro lado, é vedada a iniciativa acusatória do juiz na persecução penal, isto é, a substituição da atuação probatória do órgão da acusação e da defesa. Logo, operou-se revogação tácita dos artigos 156, I e II do CPP. Destarte, não cabe ao juiz das garantias e o juiz do processo substituir as partes.

Então, a regra prevista na Lei 13.924/2019 é a irrestrita separação entre a atividade jurisdicional, sendo o recebimento da denúncia o marco divisório entre as duas fases da persecução penal.

Ademais a aplicação nos procedimentos processuais é bem delimitada, mas com algumas controvérsias. Na competência originária dos Tribunais o instituto também é cabível dado que o devido processo não relativiza a garantia da imparcialidade. Portanto, nas Comarcas ou Turmas recursais basta promover o rodízio e convocar desembargadores ou, juízes de primeiro grau substituir o juiz de garantias que estiver impedido. Prática corriqueira nos tribunais com respaldo do STF72.

No tribunal do júri o instituto aplica-se na fase de admissibilidade e pronúncia, bem como no plenário do tribunal do júri com o juiz presidente. Afinal, na primeira fase e no plenário do júri há decisões como as descritas no item II.3.2 que podem comprometer a originalidade cognitiva dos magistrados.

Já na lei de proteção contra a violência doméstica e familiar contra a mulher é aplicável o instituto para evitar pré-juízos e preservar a originalidade cognitiva. Aliás, a cisão no sistema de duplo juiz é favorável a Lei, pois serve para amenizar a carga emocional característica desses crimes.

No procedimento do JECRIM por ser um procedimento encurtado e célere a originalidade cognitiva do magistrado não é prejudicada, portanto o juiz não é contaminado na primeira fase. Já na Turma Recursal a informatização, os rodízios dos magistrados e convocação de juízes são medidas que não impedem a aplicação do juiz de garantias.

Porém, a aplicação da sistemática de duplo juiz esbarra em obstáculos de ordem estrutural, orçamentária, financeira e, mormente jurídica. Esses obstáculos podem ser contornados com a aceleração da informatização das comarcas, a criação de centrais de inquéritos que exercerão a função de juiz de garantias por meio integralmente virtual.

São medidas mais econômicas do que o aumento do quadro de pessoal por concurso, que não deixa de ser necessário. Aliás, porque há um evidente déficit de juízes no Brasil.

Quanto ao aspecto jurídico os argumentos de inconstitucionalidade por vício de iniciativa não devem prosperar porque o instituto tem natureza processual penal de competência privativa da União, art. 22, I da CRFB/88. Porém, o art. 3-D parágrafo único que trata sobre o rodízio de juízes é matéria de auto-organização dos tribunais e de organização judiciária. Por isso, deve ser declarado inconstitucional por violar o art. 96, I, “d” da CRFB/88.

Apesar disso, trata-se de opção legítima do Congresso Nacional de instituir uma espécie de competência funcional por fase do processo.

Diante o exposto e para finalizar o debate sobre o juiz de garantias são funções reservadas ao juiz de garantias que possuem maior impacto ao sistema acusatório.

  1. Art. 3-B, VI. Reforça o direito ao contraditório e a cultura da audiência pública e oral em decisões para prorrogar, revogar ou substituir prisão provisória ou outra medida cautelar.

  2. Art. 3-B, VII. Este inciso edifica a regra que veda quaisquer decisões de ofício pelo juiz no tocante a produção antecipada de provas. Porquanto, deve para isso assegurar o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral. Ratifica a revogação tácita dos artigos 156, I e II do CPP. É válido nas duas fases da persecução penal.

  3. VIII. Nesta hipótese o legislador acertou em adotar o sistema de prazo com sanção com prorrogação uma única vez por 15 dias de inquérito com investigado preso. É válido na justiça comum Federal e Estadual.

  4. IX. Importante inovação que prever a possibilidade do juiz de garantias trancar o inquérito em situações excepcionais quando provado de plano, inépcia de denúncia, atipicidade e causa extintiva da punibilidade. Entretanto, ao contrário do previsto pelo inciso, entendemos que nessa hipótese o magistrado não pode decidir de ofício. Deve ser provocado a se manifestar, sob pena de desrespeitar a finalidade do instituto. Isso porque, seu objetivo não é ser um super juiz com poderes superiores ao juiz da etapa processual. Caso contrário, poderá proferir decisões de revogação de prisão provisória ou preventiva e conceder habeas corpus de ofício.

Outra forma é interpretar essa decisão como habeas corpus de ofício, desafiando recurso em sentido estrito. Através de uma interpretação sistêmica, lógica e teleológica conclui-se que o juiz jamais pode decidir de ofício para não macular o sistema acusatório.

  1. XVII. Decidirá sobre a homologação do ANPP ou a de colaboração premiada. Se o juiz entender que não é o caso, devolverá os autos ao MP para analise e, posterior complementação. Mas se o MP insistir na homologação a solução é utilizar o art. 28. do CPP por analogia, conforme a Súmula 696 do STJ. Caso contrário, a regra é inconstitucional por violar o sistema acusatório, por usurpar a atribuição do parquet ou da autoridade policial, esta no caso da colaboração premiada.

  2. XIV. Para dar efetividade ao sistema de duplo juiz e preservar a originalidade cognitiva, o juiz de garantias ao término das suas funções deverá remeter a peça acusatória ao juiz do processo. Haja vista, estar mais capacitado para exercer o juízo de prelibação já que não teve nenhum contato com a fase investigativa e, não proferiu quaisquer decisões. Assim, ficará mais demarcada a função de cada juiz na persecução penal.

  3. Os parágrafos 3º e 4º tratam da exclusão física dos autos do inquérito da fase processual. Os autos ficarão acautelados com o juiz de garantias e outras peças como a denúncia ou queixa que serão remetidas ao juiz da instrução. Importante técnica que evita a contaminação do magistrado pelos elementos obtidos no inquérito sem observância do contraditório.

  4. Art. 3-D. Data vênia, o legislador cometeu um equívoco. Afinal, tanto o juiz de garantias quanto o juiz de instrução podem ter sua imparcialidade comprometida por ter contato com as provas produzidas no inquérito. Destarte, para preservar a originalidade cognitiva o juiz da instrução deve receber ou não a peça acusatória. Com isso, não só reforçará o sistema do doble juez, como, sobretudo o sistema acusatório.

Em conclusão, o instituto do juiz de garantias é de suma importância para concretizar definitivamente o sistema acusatório brasileiro, nos termos do art.129, I do CPP. Malgrado, as observações e críticas, o instituto é capaz de devolver totalmente a gestão da prova às partes, vedar a iniciativa acusatória do juiz e, preservar a originalidade cognitiva do julgador. Principalmente com a capacidade de promover o controle de legalidade da investigação e, salvaguardar os direitos individuais dos investigados. Afinal, serve como um verdadeiro filtro de redução de arbitrariedade e de contaminação do julgador, potencializando a proteção de sua imparcialidade.

Sobre o autor
Gabriel Peon Diniz Pires

Especialista em Advocacia Criminal.

Informações sobre o texto

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