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O papel das descriminalizações no contexto atual do direito penal brasileiro

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Agenda 07/10/2024 às 17:54

DESCRIMINALIZAÇÕES NA CONSTITUCIONALIZAÇÃO

A constitucionalização do Direito Penal significa a adoção dos princípios constitucionais nos dispositivos do Código e na aplicação da norma. Estes princípios constitucionais possuem como base o respeito aos direitos fundamentais elegidos internacionalmente como inerentes ao homem e como obrigação dos Estados resguardar.

Por outro lado, é comum que as pessoas identifiquem o Direito Penal como método de castigo para os cidadãos desviantes, pois “bandido bom é bandido morto”. Esta é a frase que resume o pleito pela maximização do Direito Penal e que ao mesmo tempo revela a ausência de respeito à humanidade das pessoas encarceradas.

O encarceramento também é, de maneira errônea, visto como meio de retirar da sociedade condutas que atentem aos bons costumes, as quais são definidas pela moral (na maioria das vezes, a moral religiosa). A ideia de que cabe ao Direito Penal a punição por pecados cometidos com base nos preceitos bíblicos é comum na sociedade.

Em suma, da análise destes dois aspectos é possível identificar que o imaginário social identifica o Direito Penal como meio de controle social e de redução de insatisfações. Ao contrário disso, a função do Direito Penal, que é resguardada pela Constituição Federal, é a de ressocializar o indivíduo, devolvendo-o melhor para a sociedade. Por este motivo é um ramo que deve ser contido, pois é o único que pode dispor do direito fundamental à liberdade.

A contenção do Direito Penal significa que este só deve ser acionado em casos que não possam ser resguardados por outros meios. Apesar disso, o Direito Penal brasileiro possui, além do seu Código, diversas leis esparsas tipificando os mais distintos tipos penais.

Desta forma é possível inferir que para que haja a contração do Direito Penal nos limites das garantias constitucionais e dos princípios garantistas será necessário

extinguir alguns tipos penais, pelas justificativas acima apontadas: ausência de necessidade político-social de proteção de determinado bem jurídico, deturpação da função do Direito Penal e prejuízo da sanção penal.

Além disso, a constitucionalização deste ramo implica no fornecimento de condições dignas para os custodiados, o que não é possível atualmente em razão da superlotação gerada pelo denominado “encarceramento em massa”.

A revisão do sistema penal brasileiro prescinde de mudança de mentalidade na sociedade e no Poder Judiciário, de forma a identificar o custodiado como humano e detentor de direitos e garantias fundamentais. E esta mudança pode ser amparada pelos estudos e pelos dados estatísticos gerados, os quais, em geral, apontam prejuízos para a criminalização de determinadas condutas.

Ou seja, a análise espistemológica da sociedade é uma questão que deve ser tratada com seriedade no Direito, visto que sua ausência pode gerar uma análise tendenciosa baseada apenas em costumes e moral.

Esta análise visa a reflexão das questões sociais no Direito, de forma a promover uma correta adequação entre os fundamentos do Estado de Direito, os Direitos Humanos e a realidade social. Esta adequação é parte do fenômeno de constitucionalização.

Assim as descriminalizações fazem parte de um projeto de revisão do que é essencial para a sociedade e de meios eficientes e diferentes de resolução de conflitos, adequando suas disposições e aplicação aos direitos civis, sociais e políticos elencados na Constituição Federal brasileira.


DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO DE DROGAS E DO ABORTO

Algumas das pautas descriminalizantes mais discutidas e polêmicas na atualidade se referem à descriminalização do uso de drogas e do aborto.

Estes temas apresentam avanços e retrocessos em suas discussões que, em geral, se confundem com questões morais e religiosas. Ambos os temas estão em discussão nas Casas Legislativas com projetos de lei que maximizam suas penas e tipificações em prol de demandas amparadas pela moralidade, pelos bons constumes, pela civilização moderna, pela saúde pública e pelo Estado de Direito.

Tais justificativas se contropõem aos dados de órgãos oficiais que indicam a descriminalização como maneira de conter prejuízos à sociedade causados pelas

criminalizações destas condutas. Apesar disso, a força das questões morais e da religiosidade cristã na sociedade brasileira tornam as discussões epistemológicas uma ofensa aos costumes, o que dificulta a inserção da descriminalização como possibilidade.

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É possível observar, a partir dos dados e fundamentos expostos a seguir, que a descriminalização é essencial para a manutenção da paz social, mas que a maximização é a demanda corrente no Poder Legislativo na atualidade.

  1. Descriminalização do uso de drogas

Na atualidade o uso de drogas é punido com advertência e prestação de serviços comunitários pelo art. 28 da Lei nº 11.343/2006. Entretanto, a aplicação desta lei se encontra deturpada, visto que muitos usuários são punidos como traficantes. Com base em dados obtidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), 49% das pessoas presas e processas por tráfico de drogas se admitia na condição de usuário e 30% informaram que as drogas que portavam eram destinadas ao consumo pessoal.

Então a discussão sobre a descriminalização do uso de drogas perpassa também a delimitação dos tipos penais de maneira a impossibilitar prisões arbitrárias e condenações sem base legal, já que não existe delimitação entre o que se enquadra como porte para consumo e tráfico no ordenamento jurídico brasileiro.

A questão da descriminalização do porte de drogas para consumo próprio se encontra sendo discutida no Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 635.659/SP. O recurso se baseia na violação dos princípios constitucionais da vida privada e da intimidade na manutenção da penalização da conduta aqui discutida.

A partir de uma análise teórica, além da violação da vida privada e da intimidade, a criminalização do uso de drogas representa um paternalismo exagerado do Estado que procura penalizar uma conduta autolesiva, as quais não são de competência do Direito Penal.

De acordo com Roxin (2008, p. 45), é possível entender que o Estado regule e penalize o porte e consumo de drogas muito pesadas, porém, no caso de drogas leves esta atuação é desnecessária. Desta forma, o Direito Penal está sendo maximizado e

utilizado para tutela de condutas autolesivas com base na moral e nos “bons constumes”.

Apesar destas considerações, foi aprovada no Senado Federal a PEC nº 45/2023, a qual visa a criminalização de porte e consumo de qualquer substância considerada ilícita, em contraponto à discussão pela descriminalização pelo RE nº 635.659/SP.

A PEC nº 45/2023 surge como resposta à aparente declaração de inconstitucionalidade no Recurso Extraordinário que tramita no STF, a fim de promover respaldo legislativo à continuidade da criminalização. Entretanto, a justificativa da PEC se baseia na importância do tema para a sociedade e do impacto das drogas na saúde da população, dois pontos que não se enquadram à função do Direito Penal.

O Direito Penal não cuida de todos os temas que interessam à sociedade, mas sim, trata de condutas capazes de prejudicar bens jurídicos de grande relevância em face de condutas graves que não possam ser coibidas por outros meios. Dentre estas condutas não se enquadram aquelas consideradas autolesivas, em razão da percepção pelo próprio agente de todas as consequências que provenham do ato praticado.

Dentre estas condutas autolesivas se enquadra o uso de drogas, que se trata de uma ação individual de absorção indivisa das consequências. Além disso, cumpre citar que drogas lícitas tendem a afetar a saúde da população brasileira, inclusive de maneira indireta, como o uso de cigarro, por exemplo, mas são autorizadas pela legislação e comercializadas livremente.

Destarte, é possível destacar a fragilidade das justificativas e o pleito pela maximização do Direito Penal exposto nas mesmas. Considerando a ausência de necessidade na criminalização de condutas autolesivas e na autorização de substâncias outras que comprometem sobremaneira a saúde da população, não se justifica a aprovação da PEC nº 45/2023 assim como a manutenção da criminalização do porte de drogas para consumo próprio.

A repressão policial gerada pela criminalização do uso de drogas gera a chamada “guerra às drogas” que, anualmente, ceifa a vida de milhares de pessoas. De acordo com Daniel Cerqueira (2024, p. 28), a proibição do uso e a repressão policial violenta ao tráfico de drogas reduz a expectativa de vida dos brasileiros em

até 4,2 meses. Dados do mesmo estudo revelam que, das mortes intencionais e violentas no país, 34,3% são relacionadas à criminalização das drogas.

Desta forma, é possível inferir que a manutenção da paz social, função do Direito Penal, não está sendo possível com a criminalização ao uso de drogas, mas sim prejudicada. Junto a esta reflexão, o direito à vida está sendo violado paulatinamente, visto os números associados às mortes violentas associadas a esta proibição.

Além disso, a saúde pública, uma das maiores justificativas para a criminalização, resta prejudicada em razão do caos e insegurança gerados na sociedade pelas ações policiais violentas e pelo altíssimo número de homicídios.

A revisão destas proibições é extremamente necessária e deve ser amparada pelos dados gerados por órgãos oficiais, visto que a criminalização ceifa liberdades, vidas e a saúde da população. O impacto social da criminalização faz parte da análise de viabilidade e essencialidade, que deve ser inerente ao processo de criação e aplicação do Direito Penal, e, no caso estudado, resta demonstrado o imenso impacto negativo gerado pela tipificação desta conduta.

A promoção de políticas públicas, de ferramentas educacionais e mecanismos de regulação, como ocorreu com os cigarros, devem ser prioridades no tratamento desta questão. Além dos prejuízos à expectativa de vida e a saúde dos brasileiros, a criminalização encarece o valor dos entorpecentes e gera a monopolização do mercado, o que incentiva a manutenção da venda, gerando um efeito diferente do que deveria.

Destarte, a descriminalização representa a constitucionalização da questão, em razão do respeito aos direitos violados pela tipificação, como a vida, a liberdade, a dignidade, a integridade física e a saúde dos indivíduos.

  1. Descriminalização do aborto

No Brasil o aborto é crime, exceto em três situações: quando for o único meio de salvar a vida da gestante, quando a gestação resultar de estupro, nos termos do art. 149 do Código Penal, e no caso de anencefalia do feto, nos termos da ADPF nº 54 e da Resolução CFM nº 1989/2012.

Apesar da permissão legal, a prática do aborto legal é dificultada pelo tabu que esta prática representa para a sociedade brasileira e pela ausência de instrumentalização legal que regule este tema.

De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 45% de todos os abortos praticados no mundo são inseguros, o que causa a morte de milhares de mulheres todos os anos. Em razão disso, este órgão recomenda sua descriminalização total.

Para a OMS o aborto representa uma forma de manutenção ou ampliação das desigualdades sociais, visto que os prejuízos do aborto acomete sobremaneira mulheres pobres. Mulheres que possuem condições sócio-econômicas elevadas conseguem realizar o aborto de maneira segura, mediante o pagamento de somas elevadas de dinheiro, enquanto mulheres pobres recorrem a clandestinidade e a procedimentos totalmente inseguros para sua realização.

Apesar destas considerações, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 1904/2024 que equipara a pena do crime de aborto ao crime de homicídio, inclusive quando praticado nas hipóteses legais de permissão.

Sob a alegação de manutenção da civilização moderna e dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, o referido Projeto de Lei faz com que mulheres abusadas sexualmente tenham penas maiores que a de seus estupradores e restringe ainda mais a possibilidade de abortamento legal. Além disso, representa um retrocesso quanto às discussões realizadas a respeito do tema.

Elaborado por homens, o Projeto de Lei prevê penas mais duras e mais hipóteses de criminalização para mulheres que abortarem gestações, e nenhuma responsabilização para os genitores e/ou estupradores.

A pauta também se confunde com questões religiosas, uma vez que o aborto é muitas vezes tratado como pecado e ofensa às disposições divinas e que, portanto, deve ser criminalizado. Estas justificativas se apresentam, inclusive, nas discussões parlamentares sobre o assunto.

Novamente o Direito Penal é tratado sobre o manto da religião, fundamento que não faz parte da função social deste ramo, e permeia discussões sensíveis para um grupo social oprimido socialmente: mulheres.

Cumpre destacar que, de acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto 2016, uma em cada cinco mulheres brasileiras realizaram aborto no referido ano. Este dado

demonstra a ausência de efetividade na criminalização desta conduta, que “no frigir dos ovos” representa um mecanismo de controle do Estado sobre corpos femininos.

De acordo com a OMS,

As evidências indicaram que a criminalização não teve impacto na decisão de fazer um aborto, nem impediu as mulheres de praticarem o aborto, nem impediu as mulheres de procurarem informações e de serem encaminhadas para serviços no estrangeiro onde pudessem ter acesso ao aborto. Em vez disso, a criminalização limita o acesso ao aborto seguro e legal e aumenta o recurso ao aborto ilegal e inseguro. (2022, p. 24)

Os defensores da pauta pela criminalização do aborto, além de defender os mandamentos religiosos, associam a questão à defesa pelo direito a vida. Entretanto, de acordo com o Guia de Vigilância Epidemiológica do Óbito Materno do Ministério da Saúde, dentre as principais causas de mortes de gestantes está o aborto (2009, p. 8), ou seja, as vidas de muitas mulheres estão sendo ceifadas pela ausência de amparo do Estado para suas demandas.

O Direito Penal possui a função de, se adequando às demandas sociais, tutelar os direitos mais importantes dos indivíduos. Desta forma, cumpre destacar que cabe ao Direito Penal a proteção às vidas de mulheres, as quais, de acordo com os dados aqui apresentados, correm diversos riscos em razão da criminalização de uma prática que cada vez mais se torna comum.

Neste caso, as descriminalizações representam uma maneira de proteger a vida de mulheres que praticam o aborto, de adequar o Direito Penal às demandas sociais, de mitigar a opressão ao gênero feminino por parte do Estado e de levar ao ramo os direitos fundamentais a vida, a liberdade e a dignidade das mulheres brasileiras.

Sobre a autora
Vanessa de Jesus Gomes

Especialista em Direito Penal e Processual Penal

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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