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A formação de Municípios e a reserva do impossível

Agenda 22/04/2008 às 00:00

1. Introdução

O presente artigo versa sobre a evolução jurisprudencial nas decisões do Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade da criação, da incorporação, da fusão e do desmembramento de Municípios.

É cediço que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 18, §4º, com a nova redação dada pela Emenda Constitucional nº 15, de 12 de setembro de 1996, dispõe que:

"a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei".

Entretanto, diante da inexistência da Lei Complementar Federal, vários estados da Federação legislaram sobre o tema e diversos municípios foram efetivamente criados após a EC nº15/96, violando frontalmente a regra do dispositivo constitucional, razão pela qual foram interpostas várias Ações Diretas de Inconstitucionalidade1.


2. O Processo de Formação de Municípios

A redação original do artigo 18, §4º da CRFB estabelecia que:

"a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios preservarão a continuidade e a unidade histórico-cultural do ambiente urbano, far-se-ão por lei estadual, obedecidos os requisitos previstos em Lei Complementar estadual, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações diretamente interessadas."

Percebe-se que havia uma grande proliferação de municípios, tanto que foi preciso que o Congresso Nacional aprovasse, no ano de 1996, a Emenda Constitucional Nº 15, a fim de introduzir critérios mais rigorosos para a formação de municípios, entre eles a exigência de Lei Complementar Federal e a apresentação de Estudos de Viabilidade Municipal.

Portanto, atualmente, são necessários os seguintes requisitos para a formação de municípios:


3. A Controvérsia Constitucional

Até 09 de maio de 2007, o Supremo Tribunal Federal vinha declarando, em diversos julgados3, a nulidade de leis estaduais, posteriores à EC nº 15/96, instituidoras de novos municípios, por ausência da lei complementar federal prevista pelo artigo 18, §4º, da Constituição da República, uma vez que referido dispositivo é uma norma de eficácia limitada, dependente, portanto, da atuação legislativa pra produzir plenos efeitos.

Tais decisões restabeleceram o status quo anterior à instalação dos novos municípios, ocasionando, por conseguinte, o encerramento das atividades administrativas, a entrega da totalidade do patrimônio ao município-mãe, o fim de repasses de recursos federais e estaduais, a extinção de cargos, entre outras conseqüências.

Entretanto, no dia 09 de maio de 2007, após confirmar, na ADI 2395/DF, a constitucionalidade do artigo 18, §4º, da CRFB, a Suprema Corte brasileira reconheceu a mora do Congresso Nacional, na ADI 3682/MT, estabelecendo um prazo de 18 (dezoito) meses para que este adote todas as providências legislativas ao cumprimento da norma constitucional imposta pelo dispositivo supracitado.

No mesmo dia, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar as ADI n°s 2.240, 3.316, 3.489 e 3.689, declarou a inconstitucionalidade de leis estaduais posteriores à EC nº 15/96, no entanto, sem pronúncia de nulidade, mantendo a vigência dos atos impugnados pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses, com fulcro no artigo 27 da Lei 9.868/99, abaixo transcrito:

"Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado."

Como se percebe, a jurisprudência do STF acerca de leis estaduais que criaram municípios após a EC nº15/96 sofreu uma singela mudança. Ao invés de declarar a nulidade tout court, a Suprema Corte utilizou-se da técnica de nulidade prospectiva no controle concentrado.

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4. O Princípio da Reserva do Impossível

Na ADI 2240/BA, o Ministro Eros Grau (relator), opondo-se à declaração de nulidade, apontou a "reserva do impossível" entre os fundamentos utilizados para a preservação da nova entidade federativa.

Tal instituto não se confunde com o Princípio da Reserva do Possível, instituto da Ciência das Finanças, que traduz a idéia de que a atuação estatal está condicionada à existência de recursos públicos disponíveis.

A Reserva do Impossível, por sua vez, é a impossibilidade de se anular situação fática decorrente de decisão política de caráter institucional sem que ocorra uma agressão ao princípio federativo.

No caso da ADI supracitada, a situação fática é a existência de fato (e não de direito) do município que se derivou da criação do mesmo (decisão política de caráter institucional). Já a agressão ao princípio federativo ocorreria com a supressão da autonomia deste novo ente político.

Em seu voto, o Ministro Eros Grau assim explicitou o seu entendimento:

"Criado o Município, passou a existir e agir como ente da federação. Trata-se de um fato. Não se anulam fatos. Um ente da federação assumiu existência [plano da existência] e dessa existência resultaram efeitos jurídicos [plano da eficácia], tal como ocorre no casamento putativo e com as "sociedades em comum" [= sociedades de fato]. Impossível retornarmos no tempo, para anular essa existência, sem agressão à autonomia desse Município e, pois --- repito --- ao princípio federativo."

Todavia, o Ministro Gilmar Mendes, refutando o voto do Ministro Eros Grau, que julgara improcedente a ADI, resolveu por mitigar o Princípio da Reserva do Impossível, conforme se deduz nos trechos de seu voto a seguir delineado:

"A solução para o problema, a meu ver, não pode advir da simples decisão de improcedência da ação. Seria como se o Tribunal, focando toda sua atenção na necessidade de se assegurar realidades concretas que não podem mais ser desfeitas e, portanto, reconhecendo plena aplicabilidade ao princípio da segurança jurídica, deixasse de contemplar, na devida medida, o princípio da nulidade da lei inconstitucional.

(...)

É certo, outrossim, que, muitas vezes, a aplicação continuada de uma lei por diversos anos torna quase impossível a declaração de sua nulidade, recomendando a adoção de alguma técnica alternativa, com base no próprio princípio constitucional da segurança jurídica. Aqui, o princípio da nulidade deixaria de ser aplicado com fundamento no princípio da segurança jurídica.

(...)

Com efeito, a falta de um instituto que permita estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade acaba por obrigar os Tribunais, muitas vezes, a se abster de emitir um juízo de censura, declarando a constitucionalidade de leis manifestamente inconstitucionais.

O perigo de uma tal atitude desmesurada de self restraint (ou greater restraint) pelas Cortes Constitucionais ocorre justamente nos casos em que, como o presente, a nulidade da lei inconstitucional pode causar uma verdadeira catástrofe – para utilizar a expressão de Otto Bachof – do ponto de vista político, econômico e social.

(...)

Não há dúvida, portanto, - e todos os Ministros que aqui se encontram parecem ter plena consciência disso – de que o Tribunal deve adotar uma fórmula que reconhecendo a inconstitucionalidade da lei impugnada – diante da vasta e consolidada jurisprudência sobre o tema -, resguarde na maior medida possível os efeitos por ela produzidos.

Assim sendo, voto no sentido de, aplicando o art. 27. da Lei nº 9.868/99, declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade da lei impugnada, mantendo sua vigência pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses..."

O Ministro Eros Grau, convencido da tese do Ministro Gilmar Mendes, decidiu retificar o seu voto e acompanhar este ilustre Ministro, no sentido de declarar a inconstitucionalidade da lei estadual, mas não a nulidade, pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses.

Esse foi o entendimento que prevaleceu no julgamento da ADI 2240/BA, cuja ementa transcrevemos abaixo:

"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 7.619/00, DO ESTADO DA BAHIA, QUE CRIOU O MUNICÍPIO DE LUÍS EDUARDO MAGALHÃES. INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI ESTADUAL POSTERIOR À EC 15/96. AUSÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR FEDERAL PREVISTA NO TEXTO CONSTITUCIONAL. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 18, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. OMISSÃO DO PODER LEGISLATIVO. EXISTÊNCIA DE FATO. SITUAÇÃO CONSOLIDADA. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA DA JURÍDICA. SITUAÇÃO DE EXCEÇÃO, ESTADO DE EXCEÇÃO. A EXCEÇÃO NÃO SE SUBTRAI À NORMA, MAS ESTA, SUSPENDENDO-SE, DÁ LUGAR À EXCEÇÃO --- APENAS ASSIM ELA SE CONSTITUI COMO REGRA, MANTENDO-SE EM RELAÇÃO COM A EXCEÇÃO. 1. O Município foi efetivamente criado e assumiu existência de fato, há mais de seis anos, como ente federativo. 2. Existência de fato do Município, decorrente da decisão política que importou na sua instalação como ente federativo dotado de autonomia. Situação excepcional consolidada, de caráter institucional, político. Hipótese que consubstancia reconhecimento e acolhimento da força normativa dos fatos. 3. Esta Corte não pode limitar-se à prática de mero exercício de subsunção. A situação de exceção, situação consolidada --- embora ainda não jurídica --- não pode ser desconsiderada. 4. A exceção resulta de omissão do Poder Legislativo, visto que o impedimento de criação, incorporação, fusão e desmembramento de Municípios, desde a promulgação da Emenda Constitucional n. 15, em 12 de setembro de 1.996, deve-se à ausência de lei complementar federal. 5. Omissão do Congresso Nacional que inviabiliza o que a Constituição autoriza: a criação de Município. A não edição da lei complementar dentro de um prazo razoável consubstancia autêntica violação da ordem constitucional. 6. A criação do Município de Luís Eduardo Magalhães importa, tal como se deu, uma situação excepcional não prevista pelo direito positivo. 7. O estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos e o estado da normalidade. Não é a exceção que se subtrai à norma, mas a norma que, suspendendo-se, dá lugar à exceção --- apenas desse modo ela se constitui como regra, mantendo-se em relação com a exceção. 8. Ao Supremo Tribunal Federal incumbe decidir regulando também essas situações de exceção. Não se afasta do ordenamento, ao fazê-lo, eis que aplica a norma à exceção desaplicando-a, isto é, retirando-a da exceção. 9. Cumpre verificar o que menos compromete a força normativa futura da Constituição e sua função de estabilização. No aparente conflito de inconstitucionalidades impor-se-ia o reconhecimento da existência válida do Município, a fim de que se afaste a agressão à federação. 10. O princípio da segurança jurídica prospera em benefício da preservação do Município. 11. Princípio da continuidade do Estado. 12. Julgamento no qual foi considerada a decisão desta Corte no MI n. 725, quando determinado que o Congresso Nacional, no prazo de dezoito meses, ao editar a lei complementar federal referida no § 4º do artigo 18 da Constituição do Brasil, considere, reconhecendo-a, a existência consolidada do Município de Luís Eduardo Magalhães. Declaração de inconstitucionalidade da lei estadual sem pronúncia de sua nulidade 13. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade, mas não pronunciar a nulidade pelo prazo de 24 meses, da Lei n. 7.619, de 30 de março de 2000, do Estado da Bahia."


5. Considerações Finais

Como vimos, a jurisprudência do STF, em tese, evoluiu, no sentido de não se declarar de imediato a nulidade das leis estaduais que criaram os novos municípios, evitando-se, assim, um "caos jurídico".

Entretanto, na prática, não se verificará diferença alguma entre o novo e o antigo posicionamento da Suprema Corte. Isto porque o Congresso Nacional, a mais de 11 anos, nem sequer demonstra o intuito de sanar a mora legislativa no caso em tela.

Não podemos negar que o instituto da Reserva do Impossível, apesar de ser bastante interessante sob o ponto de vista jurídico, poderia servir de estímulo à criação de novos municípios, justamente o fenômeno que se quis evitar com a promulgação da EC nº 45/96.

Diante do exposto, a conclusão que podemos chegar é que, em breve, salvo se acontecer um "milagre político", as novas entidades federativas deverão ser extintas.


6. Notas

1 Entre elas: ADI-MC nº 2.381/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.12.2001; ADI nº 3.149/SC, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 1.1.2005; ADI nº 2.702/PR, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 6.2.2004; ADI nº 2.967/BA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19.3.2004; ADI nº 2.632/BA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 12.3.2004; ADI nº 2.240/BA, Rel. Min. Eros Grau, DJ 3.8.2007; ADI nº 3.316/MT, Rel. Min. Eros Grau, DJ 29.6.2007; ADI nº 3.489/SC, Rel. Min. Eros Grau, DJ 3.8.2007; e ADI nº 3.689/PA, Rel. Min. Eros Grau, DJ 29.6.2007.

2 O Tribunal Superior Eleitoral possuía jurisprudência pacífica, no sentido de que somente estariam aptos a votar os eleitores inscritos no distrito emancipado, e não de todo o Município. Entrementes, o artigo 7º da Lei nº 9.709, de 18 de setembro de 1998, estabeleceu, por definitivo, que estende-se por população diretamente interessada tanto a do território que se pretende desmembrar, quanto a do que sofrerá desmembramento.

3 Entre os julgados estão: ADI-MC nº 2.381/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.12.2001; ADI nº 3.149/SC, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 1.1.2005; ADI nº 2.702/PR, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 6.2.2004; ADI nº 2.967/BA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19.3.2004; e ADI nº 2.632/BA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 12.3.2004.


7. Bibliografia

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 11ª edição. São Paulo: Editora Método, 2007.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17ª edição. São Paulo: Atlas, 2005.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003.

_____________________. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003.

www.stf.gov.br

Sobre o autor
Victor Galeno Rodrigues Lima

Procurador da Fazenda Nacional. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pós-Graduando em Direito Tributário pela UNISUL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Victor Galeno Rodrigues. A formação de Municípios e a reserva do impossível. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1756, 22 abr. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11181. Acesso em: 21 nov. 2024.

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