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A legítima defesa da honra é incompatível com o Estatuto da Advocacia

Agenda 08/12/2024 às 23:40

A alegação da legítima defesa da honra se enquadra perfeitamente no tratamento constrangedor e humilhante da vítima enquanto mulher.

O Supremo Tribunal Federal corretamente decidiu na ADPF n. 779, por unanimidade que invocar em favor dos réus que agrediram ou ceifaram uma vida, que assim agiram motivados para defender a sua honra, é, sem sombra de dúvidas, inconstitucional. O Supremo assim decidiu:

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou integralmente procedente o pedido formulado na presente arguição de descumprimento de preceito fundamental para: (i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65. do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência, (iii) obstar à defesa , à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade

(STF, ADPF n. 779).

A decisão da Suprema Corte fez valer valores morais, cívicos, éticos e sociais caros para a sociedade moderna, não mais se pode admitir absolvições nos delitos de feminicídio com fulcro na legítima defesa da honra, tampouco se deve admitir lesões corporais visando defender a honra do causador da agressão ou de alguém próximo.

Como advogado, principalmente atuando em defesa das vítimas, me deparei com alguns colegas desatualizados que insistem em desqualificá-las, alegando que os seus constituintes a agrediram para defender a honra, o que é uma teratologia completa.

Com o devido respeito a esses colegas, mas as suas petições vão na contramão da dignidade da pessoa humana, do direito à vida e o profissional ao invocar teses dessa estirpe rasgam por completo o Estatuto da Advocacia, orientando-nos que “cabe ao advogado proceder de forma que o torne merecedor de respeito e contribua para o prestígio da classe (Art. 31. da lei 8.906/94)” (ROSSI, 2023).

De mais a mais, na própria OAB-BA, já temos um parecer atual no sentido de que o profissional de advocacia não pode ofender ou discriminar mulheres em peças defensivas, sob pena de responderem a Procedimento Ético punível no mínimo com suspensão de 30 dias, podendo, nos casos mais severos, ocorrer a exclusão do advogado, vejamos:

VIOLÊNCIA PROCESSUAL DE GÊNERO. INFRAÇÃO DISCIPLINAR. Constitui infração disciplinar, passível da pena de suspensão de 30 dias a 12 meses cumulada com multa, praticar discriminação, considerada esta a conduta comissiva ou omissiva que dispense tratamento constrangedor ou humilhante a pessoa ou grupo de pessoas, em razão de sua deficiência, pertença a determinada raça, cor ou sexo, procedência nacional ou regional, origem étnica, condição de gestante, lactante ou nutriz, faixa etária, religião ou outro fator. A infração corresponde a toda e qualquer forma de discriminação, independentemente da expressão utilizada pelo agressor. Poderá a OAB suspender preventivamente o(a) profissional infrator(a), na hipótese de repercussão prejudicial à dignidade da advocacia. É cabível a pena de exclusão quando configurada inidoneidade moral. O processo disciplinar será julgado conforme a análise das circunstâncias do caso concreto.

(OAB-BA, Processo Consulta n°: 932/2023 - grifei).

Entende o presente escrito que a alegação da legítima defesa da honra se enquadra perfeitamente no tratamento constrangedor e humilhante da vítima enquanto mulher, visto que, há anos, na doutrina, já se criticava a tese, pois a sua aceitação estaria vinculada ao “princípio de que a mulher é uma espécie de subordinada do homem e que, ao trair sua confiança, merece pagar com a vida”. (COTES, 2004, p. 30). Também devemos ter em mente que "a legítima defesa da honra, quando aduzida em juízo, submete a mulher a um processo barbárico de revitimização" (ABBOUD et al, 2021, p. 210).

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Não custa reforçar que o artigo 34 do mencionado Estatuto sofreu atualizações recentes com a inclusão do inciso XXX pela Lei nº 14.612, de 2023 dispondo que configura infração ética a prática de discriminação.

A mesma Lei entende por discriminação “a conduta comissiva ou omissiva que dispense tratamento constrangedor ou humilhante a pessoa ou grupo de pessoas, em razão de sua deficiência, pertença a determinada raça, cor ou sexo, procedência nacional ou regional, origem étnica, condição de gestante, lactante ou nutriz, faixa etária, religião ou outro fator” (art. 34, §2º, III do EOAB).

Destaca-se que a pena cabível ao profissional, conforme previsão expressa do art. 37, I do EOAB é a suspensão, caso o advogado seja suspenso três vezes, cabe exclusão nos termos do art. 38, I do EOAB.

De mais a mais, o processo administrativo não isentará o advogado ofensor de indenizar a vítima ou seus familiares pelas ofensas perpetradas em petição judicial, pouco importando o fato do processo tramitar em segredo de justiça, tais conclusões podem ser extraídas a partir da leitura do acórdão do STJ no REsp 1761369 / SP, DJe 22/06/2022, que corretamente condenou o advogado e seus clientes a indenizarem a vítima ofendida em petição por palavras de baixo calão em R$ 20.000,00 (vinte mil reais), precedente que o presente escrito apoia e reconhece como um importante avanço para uma advocacia humana e responsável.

Portanto não há dúvidas que a legítima defesa da honra promove discriminação contra as vítimas, em especial as mulheres, devendo o advogado que lançar essa tese em defesa de seu constituinte ser punido nos termos do Estatuto da OAB, caso insista em advogar com tal tese em novos atos processuais, ser excluído.


REFERÊNCIAS

ABBOUD, Georges; SANTOS, Maira Bianca Scavuzzi de Albuquerque; KROSCHINSKY, Matthäus. Entre a coisa e o homo sacer – A legítima defesa da honra e a condição feminina. Revista dos Tribunais, v. 1032, p. 205-223, out. 2021.

BRASIL. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Seção do Estado da Bahia. Órgão Consultivo Tribunal de Ética e Disciplina – triênio 2019-2021. Processo Consulta n°: 932/2023. Assunto: Violência Processual de Gênero. Consulentes: Carolina Stagliorio Dumet Faria, OAB/BA 76.057; Lize Borges Galvão, OAB/BA 42.994. Relator: Eurípedes Brito Cunha Junior, OAB/BA 11.433.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n 779. Rel: Min. Dias Toffoli. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690. Acesso em: 1 dez. 2024.

COTES, Paloma. Defesa ilegítima. Época, Rio de Janeiro, n. 299, p. 30-31, 9 fev. 2004.

ROSSI, João Vitor. O advogado que praticar violência doméstica pode ser excluído da OAB. IBDFAM, 19 nov. 2023. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/2069/O+advogado+que+praticar+viol%C3%AAncia+dom%C3%A9stica+pode+ser+exclu%C3%ADdo+da+OAB . Acesso em: 6 nov. 2024.

Sobre o autor
João Vitor Rossi

Advogado especializado em Direito Tributário e Imobiliário, com registro na OAB-SP nº 425.279. Possui MBA Executivo em Direito, Negócios e Operações Imobiliárias, especialização em Direito Imobiliário e Direito Processual Civil, que lhe proporciona uma visão ampla e estratégica para a resolução de problemas complexos e a liderança de equipes jurídicas de alta performance. Com experiência reconhecida no setor . Autor de diversas publicações em revistas jurídicas renomadas e responsável por casos de destaque na mídia, João Vitor Rossi está à frente de seu escritório, comprometido com a entrega de soluções inovadoras e eficazes para os seus clientes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSSI, João Vitor. A legítima defesa da honra é incompatível com o Estatuto da Advocacia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7830, 8 dez. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/112033. Acesso em: 22 dez. 2024.

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