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A adequação do "custos iuris" ao novo perfil ministerial

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Agenda 03/05/2008 às 00:00

A intervenção processual, muitas vezes em feitos de pouca ou quase nenhuma relevância social, tornou-se tarefa que consome enorme tempo do membro ministerial e que, em algumas vezes, continua a existir por mera tradição, sem reflexão quanto à sua relevância ou adequação ao perfil institucional.

1. Síntese Dogmática

Apesar de compatível com a atual feição ministerial, a função interveniente merece ser revista, porque possui menor relevância social, limitando-se, quase sempre, aos interesses das partes, por isso o Ministério Público deverá priorizar sua atuação como agente promotor de medidas. Os dispositivos legais relativos à atividade do custos iuris devem ser interpretados em consonância com o perfil da instituição delineado pela Constituição Federal, portanto a manifestação ministerial quanto ao mérito em feito cível iniciado por terceiros só deverá ocorrer quando este envolver interesses individuais indisponíveis ou de grande abrangência coletiva.


2. Fundamentação

Ao traçar uma nova feição para o Ministério Público, a Constituição Federal considerou-o guardião da coletividade, determinando-lhe uma postura mais atuante, ao usar, nos quatro primeiros incisos do art. 129, o verbo promover. Isso modificou a feição desse relevante órgão, pois, até pouco tempo, ele atuava exclusivamente perante o Judiciário; hoje, seu trabalho passa a responsabilizá-lo pela intervenção direta na sociedade em busca de soluções - que nem sempre são processuais nem judiciais - inclusive por meio do inquérito civil, instrumento cujo poder e cuja relevância ainda se encontram pouco explorados.

Tradicionalmente, o Parquet ficou conhecido como encarregado de deflagrar a ação penal e de intervir, como custos iuris, em algumas causas cíveis de reduzida repercussão social iniciadas por terceiros, que, em tese, envolveriam interesse público Em que pese a relevância, para aquela época, das funções predominantes sob o regime anterior à Carta Cidadã de 1988, muito pouco restou daquele Ministério Público, que deixa o berço esplêndido, onde se encontrava acomodado, para assumir sua verdadeira vocação social, com novos e vastos atributos.

O Código de Processo Civil e a maioria das outras normas anteriores à nova ordem constitucional têm índole individualista, até porque, quando promulgados, quase não se debatia sobre a coletivização de demandas. Por sua vez, a Carta Magna, de cunho social-democrata, abordou essencialmente a questão dos direitos sociais, a ponto de constituir o Ministério Público como o guardião destes. Dada a hierarquia das normas, não se pode interpretar o papel do Parquet somente no âmbito do Código de Processo Civil, e sim conforme a Constituição Federal, que sequer menciona expressamente o papel interventivo, embora se possa enquadrá-lo entre as funções compatíveis (art. 129, caput, inciso IX). Há, pois, de se compatibilizarem as disposições legais que impõem a função de custos iuris do Ministério Público ao seu novo perfil constitucional, que enfatiza sua atuação como órgão agente e almeja a redução das hipóteses de intervenção passiva no processo civil.

A intervenção processual, muitas vezes em feitos de pouca ou quase nenhuma relevância social, tornou-se tarefa que consome enorme tempo do membro ministerial e que, em algumas vezes, continua a existir por mera tradição, sem reflexão quanto à sua relevância ou adequação ao perfil institucional. O seu preço tem sido muito alto, principalmente para a sociedade, dada a incidência intolerável de desrespeito a seus interesses mais básicos, que não estão sendo corretamente defendidos pelo Promotor de Justiça assoberbado por tantos processos. Exatamente por isso, defende-se a idéia de que, mesmo nas hipóteses legais de intervenção do Parquet, este precisa verificar se, no caso sob exame, existe, de fato, o interesse público que levou a norma a determinar sua manifestação.

O fato de o feito envolver interesse público não significa que o Ministério Público deva discutir direitos que não foram a causa de sua intervenção. A demanda sobre honorários advocatícios, mesmo numa ação de alimentos, a divisão de bens entre os cônjuges num divórcio são exemplos de matérias nas quais o Promotor nem deveria intervir, por fugirem à questão de estado que reclamou sua presença. "O campo da atuação do Ministério Público nessas causas é só esse: zelar para que não haja disponibilidade indevida do interesse; não é sua tarefa discutir outros aspectos periféricos" (MAZZILLI, 2003, p. 163). Há quem entenda indispensável oferecer parecer em todas as fases processuais, no entanto a ciência dos principais atos, com eventual manifestação facultativa se necessária, mostra-se suficiente para preservar o interesse público. "Somente o abandono de todas as atribuições sem relevância social e que não coadunam com o atual perfil constitucional tornará possível uma atuação eficiente na área criminal e dos direitos sociais, inclusive com remanejamento interno de Promotores e Procuradores de Justiça, ganhando-se o reconhecimento de toda sociedade" (BORGES, 2000, p. 34).

Apesar disso, o Ministério Público permanece intervindo em processos nos quais há evidente disponibilidade dos direitos envolvidos ou de pequena relevância social, como o mandado de segurança relativo a interesses econômicos, acidente de trabalho, separação e divórcio que não envolvem menores, habilitações de casamento, alvarás, inventários em que não há incapazes. Tais situações não podem continuar, pois, apesar da taxatividade das leis ordinárias quanto à intervenção ministerial, não haverá irregularidade alguma no ato do Promotor de Justiça que se escusa de manifestar-se nesses feitos, eis que tais normas precisam ser relidas em razão dos arts. 127 e 129 da Carta Magna: enquanto aquele traça o perfil institucional, este determina que somente se conferirão outras atribuições ao Ministério Público se compatíveis com sua finalidade, ou seja, desde que realmente presente o interesse público.

2.2. A Transfiguração das Leis Determinantes da Intervenção

A interpretação de uma lei deve ser feita em conformidade com a época de sua aplicação, ou seja, ela passa por uma mutação gradual de acordo com a estrutura normativa da legislação mais nova, de forma a oferecer-lhe um novo sentido dos objetivos teleológicos. Modificando-se o direito constitucional, necessariamente há de ser readequada a aplicação da norma inferior, sob pena de esta não ser recepcionada. Ocorre, aqui, o fenômeno da transfiguração, citado por Canotilho Gomes (1995, p. 138): "Essa transfiguração de um dispositivo legal pode verificar-se notadamente, em virtude do advento de outra Constituição, caso em que esta passa a ser o fundamento de validade das leis pretéritas, o que não raro, muda radicalmente o respectivo sentido". Todo exercício hermenêutico reclama uma atividade contínua de superação de entendimentos contrastantes, para que as leis "possam ser aplicadas em consonância com as exigências da sociedade em determinado momento e lugar" (REALE, 1987, p. 167). Essa exegese pode ser influenciada: (a) pelas mudanças na estrutura do ordenamento jurídico; (b) por uma clara tendência da legislação mais recente; (c) por uma nova compreensão da ratio legis ou dos critérios teleológico-objetivos e (d) por necessidade de adequação das normas anteriores à Constituição aos princípios constitucionais supervenientes. Tais fatores podem fazer que uma interpretação, que antes era correta, deixe de sê-lo. (CANOTILHO GOMES, 1995, p. 809). Por conta disso, há de se reler toda a atuação do Ministério Público como custos iuris, baseando-se-a no seu perfil constitucional.

2.2.1. Nas Habilitações de Casamento

Indaga-se qual seria a relevância da intervenção do Ministério Público nas habilitações de casamento. Nos termos do artigo 67 da Lei nº 6.015/73 [01], ela se fundamentava na necessidade de resguardar-se uma eventual nulidade do casamento, instituto à época tão relevante ao qual, inclusive, atribuía-se a indissolubilidade. Essa superproteção se tornou inócua ou dispensável, com a Lei nº 6.515/77 (do Divórcio). Associado a isso, vieram as Leis nº 9.278/96 (que regula a união estável), nº 10.352/01 (que modificou o artigo 475, inciso I, do CPC, não mais sujeitando as ações de anulação de casamento ao reexame necessário, o que demonstra a ausência de interesse público nesse instituto) e nº 10.406/02 (que instituiu o novo Código Civil e modificou o conceito de entidade familiar); tudo a ressaltar a disponibilidade dos direitos envolvidos na habilitação de casamento, que tem praticamente interesse de caráter patrimonial dos nubentes. Todos esses fatos, associados, levam à conclusão de que a manifestação do Ministério Público nessa área transformou-se em mera formalidade, sem fins protetivos.

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Com o novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002), tornou-se mais pífia a participação ministerial. Pela topografia dos dispositivos pertinentes, observa-se que o Promotor de Justiça hoje se constitui em mero conferente da documentação acostada pelos nubentes, já que o procedimento ser-lhe-á remetido antes mesmo da publicação do edital, e não mais depois do prazo de manifestação de terceiros quanto aos impedimentos.

Ora, não há qualquer interesse público ou mesmo utilidade prática em tal função, pois o Oficial do Cartório do Registro Civil pode muito bem exercer essa atividade, como, de fato, já o vem fazendo. Alegar que o Ministério Público está, nesse caso, agindo como fiscal da lei é atribuir demasiada importância a essa vistoria, principalmente quando inexiste qualquer valor social nessa atividade, enquanto atribuições mais relevantes estão a exigir o zelo dessa instituição. Considerar que estaria atuando como fiscal dos registros públicos não justifica esse absurdo, pois o exame dos documentos não existe nos pedidos de assento de nascimento, óbito, emancipação ou outros atos cartorários do registro civil, tão ou mais relevantes que a habilitação de casamento. Além de desmerecer até mesmo a inteligência do serventuário, ao determinar que o Promotor de Justiça verifique se este recebeu e juntou a documentação do art. 1.525 do Código Civil, esta norma impõe dupla fiscalização, eis que o juiz, ao realizar a homologação (também despicienda), irá examinar os mesmos requisitos.

Por mais que se tente extrair a razão dessa intervenção ministerial, não há como se deduzir a relevância social, os interesses sociais ou indisponíveis envolvidos. Ressalte-se que essa atuação afronta a Carta Magna, que, no art. 98, II, incumbiu-a a outro órgão, ao determinar que os Estados criem "a justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificar, de ofício ou em face de impugnação apresentada, o processo de habilitação (...)" (grifos nossos). Ademais, o art. 30 do ADCT manteve os atuais juízes de paz, conferindo-lhe os mesmos direitos e atribuições dos que virão a ser eleitos, por isso eles é que deverão conferir as habilitações de casamento, assim "deve o Ministério Público imediatamente deixar de se manifestar em processos de habilitação, entregando referido mister aos atuais juízes de paz" (BORGES, 2000, p. 36). Evidentemente, onde não existe essa Justiça especial nem os juízes de paz anteriores à Constituição, deverá o Estado desincumbir-se de criá-la, e não o Ministério Público continuar a usurpar essa função pública que pertence àquela, sob pena de nunca ela vir a ser instituída por comodidade dos governantes. Mostra-se evidente a opção da Lei Superior pela racionalização da atuação do Judiciário e do Ministério Público ao retirar-lhes essas atividades, que pouca importância social possuem, e atribuírem-nas a leigos, entretanto a norma ordinária, numa evidente incoerência, insiste em amesquinhar a função ministerial e exigir a sua manifestação.

Deve, pois, o Parquet deixar de se manifestar em habilitações de casamento regulares que envolvam simples conferência de documentos, passando a fazê-lo somente em casos excepcionais, tais como oposição de impedimento (Lei nº 6.015/73, artigo 67, § 5º), justificação de fato necessário à habilitação (artigo 68) e pedido de dispensa de proclamas (artigo 69), na esteira do que já recomendaram os Colégios de Procuradores de alguns Estados, como São Paulo. [02]

2.2.2. No Direito de Família e de Sucessões

Necessário também rever a intervenção do Ministério Público nas ações de separação judicial e divórcio. Antes considerado instituição sagrada e indissolúvel, o casamento transformou-se em mero contrato passível de ser desfeito pela vontade das próprias partes. Além disso, a união estável, pela própria Constituição Federal, passou a ser equiparada ao casamento. Por que, então, permanecer interferindo necessariamente nos feitos que envolvem este se não há a mesma obrigatoriedade quanto aos referentes àquela? Não bastasse isso, com a banalização das separações e divórcios, fruto de modificação social, não é exigido mais aquele rigor em insistir-se em manter o vínculo matrimonial; o esforço dos Promotores deve passar a recair somente nos interesses dos incapazes envolvidos, não mais em relação a aspectos patrimoniais e conjugais apenas, que não possuem qualquer relevância social, idéia que, a cada dia, vem alcançando maior número de defensores:

Mas, não havendo motivos para duvidar do equilíbrio das disposições ajustadas harmonicamente entre cônjuges maiores e capazes, não haveria por que intervir o Ministério Público, até porque, no dia-a-dia, são esses mesmos cônjuges que dispõem de seu patrimônio, cuidam dos filhos e sustentam o lar (MAZZILLI, 2003, p. 169).

O Ministério Público não pode mais atuar como guardião do vínculo conjugal ou societário. A Carta Magna consagrou a dissolubilidade do casamento e reconheceu, como entidade familiar, qualquer dos pais e seus descendentes, prescindindo daquele vínculo conjugal, portanto não se pode falar mais que a indissolubilidade do casamento equivale à preservação da família e que aquela seria, em tese, interesse social.

O mesmo se diga quanto à ação de meação e justificativa de concubinato proposta entre partes capazes que buscam a declaração da união estável e conseqüente divisão dos bens, sem qualquer pedido concernente a filhos incapazes, ação que não apresenta os requisitos do art. 82, do CPC, uma vez que a hipótese não envolve questão de estado e o interesse material é disponível, não importando que o feito tramite pela Vara de Família, como, inclusive, já reconheceu a jurisprudência:

Concubinato – Ação a ele relativa – Descabimento da intervenção do Ministério Público – Sociedade de fato que, embora com maior proteção conferida pela CF (art. 226, § 3º), não erigiu à condição símile do casamento – Hipótese, portanto, não prevista no art. 82 do CPC (AI 157.601-1 – 7ª Câm. Cív. – TJ-SP – j. 23.10.91, Rel. Des. Sousa Lima – RT 674:120).

O Ministério Público não precisa fiscalizar ações de separação de corpos entre capazes, sem pedido relativo a filhos menores. O descumprimento do dever conjugal de coabitação não extrapola os limites dos interesses individuais de cada cônjuge, nada podendo o Promotor de Justiça fazer, em caso de descumprimento de um deles caso o outro se resigne e não o acione, o que explicita a disponibilidade de tal direito.

Não há também por que o Parquet intervir nas cautelares de arrolamento de bens, preparatórias ou incidentais de separação judicial entre capazes, pois, nesses casos, a discussão refere-se à titularidade dos cônjuges sobre bens patrimoniais, portanto interesses individuais disponíveis.

Em qualquer dessas ações supracitadas que envolvam cônjuges ou companheiros, o Promotor de Justiça deve manifestar-se somente quando elas envolverem interesses de incapazes, por força do inciso I do art. 82 do CPC, e não mais para "preservar o vínculo matrimonial", tarefa que há muito deixou de constituir interesse público. Abraçando essa tese, a Procuradoria-Geral de Justiça e a Corregedoria-Geral do Ministério Público de São Paulo editaram recomendação facultando a intervenção ministerial na maioria dessas hipóteses. [03] Trata-se de entendimento moderno, a ser seguido pelo legislador processual civil, o qual deve espelhar-se no Código de Processo Civil português, cujos arts. 1407 e 1408, ao cuidarem do divórcio e da separação judicial, nada mencionam acerca da intervenção ministerial. Com isso, a intervenção se justificaria não pela natureza da lide, que hoje não mais engloba interesse público, mas pela presença de incapazes, quando existentes.

Da mesma forma, nos inventários cujos herdeiros são capazes, mesmo havendo disposição de última vontade, o Ministério Público deve deixar de intervir, afinal o objeto da ação é renunciável e, portanto, disponível. Há de acabar o ranço do passado em que se buscava preservar a vontade do de cujus, a qual já foi perfeitamente exposta em ato público, geralmente lavrado perante serventuário da justiça, cabendo ao magistrado fazê-la valer. Não se vislumbra qualquer interesse indisponível, seja pela qualidade da parte, que era capaz, seja pela natureza da lide, na qual não existe indisponibilidade.

Nas ações de alimentos, entre partes maiores e capazes, não há interesse público social ou individual indisponível, apenas hipossuficiência financeira, a qual, por si só, não exige a intervenção ministerial. O pedido, em tais hipóteses, não extrapola os limites dos interesses individuais dos ascendentes e descendentes ou dos ex-esposos. Em tais casos, qualquer dos interessados pode renunciar ou nem os demandar, hipóteses em que o Ministério Público não possui legitimidade para eventual substituição processual. Mais uma vez demonstrando ter avançado na racionalização, no art. 3º, IV, do ato supracitado, a Procuradoria-Geral de Justiça e a Corregedoria-Geral em São Paulo facultaram a intervenção em tais hipóteses. [04]

2.2.3. Nos Mandados de Segurança

Matéria que merece profunda releitura é a interferência ministerial no mandado de segurança. A Lei nº 1.533/1951 estabelece a imperativa remessa dos autos ao representante ministerial após as informações da autoridade coatora, independentemente de a ação versar sobre interesses indisponíveis ou disponíveis. Essa oitiva vem sendo considerada como obrigatória manifestação quanto ao mérito. Tal posição poderia até ser aceita antes do atual texto constitucional, porque, na época da edição daquela lei, imperava a noção de que cabia ao Parquet a representação judicial da União, contudo essa função deixou de pertencer-lhe, pois o art. 129, caput, IV, da Constituição Federal proibiu-lhe a representação judicial dos interesses de pessoas jurídicas de direito público.

Tornou-se regra, atendendo-se apenas ao rito, os Promotores de Justiça emitirem pronunciamento em torno do mérito de todos os mandados de segurança. Essa forma de atuar gera uma situação paradoxal e insustentável juridicamente: pretensões idênticas podem ser, ou não, analisadas pelo Ministério Público, a depender de o advogado escolher recorrer ao mandamus ou a uma ação de conhecimento ou a uma cautelar. Imagine-se um funcionário público que tenha sido despedido e entenda que esse ato ocorreu em contrariedade ao direito. Essa pessoa terá a seu dispor dois caminhos – ambos, conduzindo à satisfação de seu direito: o mandado de segurança e o procedimento ordinário. Se optar por aquele, haveria exigência do pronunciamento do Promotor de Justiça, por se entender que há interesse público exigido pela espécie da lide; se, não obstante, preferir o procedimento ordinário, a manifestação ministerial tornar-se-ia dispensável – como se o interesse público desaparecesse com a troca de ritos. A interpretação literal da norma leva ao absurdo de a intervenção do Ministério Público ficar ao alvedrio do autor, que tem a liberdade de escolher o rito. Tal exegese, além de conduzir aos paradoxos apontados, torna-se verdadeiro obstáculo a uma atuação mais efetiva do Ministério Público na defesa do interesse público qualificado, devido ao tempo desperdiçado para tratar de questões menores, sem qualquer alcance social, apenas por estarem sendo defendidas por uma ação de rito especial.

Faz-se necessário rever a forma de manifestação ministerial em ações dessa espécie. O art. 10 da Lei nº 1.533/51 não exige manifestação sobre o mérito, mas oitiva da instituição. O ideal seria seguir o modelo adotado pelo México, onde, em relação ao amparo (instituto similar ao nosso mandamus), segundo Sérgio Neves Coelho (2001, p. 580), "é obrigatória a vista dos autos em todos os feitos atinentes ao amparo, todavia a manifestação de mérito do Ministério Público só ocorre quando houver interesse público.". Espera-se que essa renovação legislativa ocorra em breve no Brasil, pois, no Congresso Nacional, tramita, nesse sentido, o Projeto de Lei n° 72/2003, de autoria do Deputado Federal Dimas Ramalho. [05]

A intervenção do Parquet em ação mandamental é obrigatória para que este verifique, em cada feito daquela espécie, se há interesses sociais e individuais indisponíveis que legitimem a sua manifestação no mérito, contudo deve-se adentrar no mérito apenas quando, de acordo com o entendimento formulado pelo seu membro, caracterizar-se, no caso concreto, interesse jurídico passível de tutela, posição que a jurisprudência vem confirmando:

Quer o Legislador que o Ministério Público tome conhecimento do pedido de Segurança e verifique se há necessidade de algum pronunciamento. No entanto, em nenhum momento, a Lei diz que deste conhecimento deve resultar manifestação expressa do Fiscal da Lei. (Revista do E. STJ, Brasília, ano 4, v. 29; 283-561, jan.-1992, p.p 446-447, voto de Vista do Ministro Gomes de Barros no Resp nº 9.279)

Um critério fundamental para preservar a coerência do ordenamento jurídico e o respeito aos fins constitucionais da instituição passa a ser este: a manifestação do Ministério Público no mérito da controvérsia deduzida em mandado de segurança só é exigível nos casos em que ela também ocorreria, se o mesmo conflito fosse deduzido em uma demanda pelo rito ordinário. Os determinantes da intervenção são o pedido e a causa de pedir, e não o rito. O art. 10 da Lei nº 1.533/51 tem que necessariamente ser interpretado em conjunto e harmonicamente com a Constituição, pois não é a condição relativa ao rito adotado, que reclama a intervenção, mas sim a natureza jurídica da demanda deduzida, envolvendo a defesa do regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis.

Tratando-se de mandado de segurança, configura-se o interesse público secundário (da pessoa jurídica de direito público), contudo nem sempre se faz presente o primário (da coletividade), no qual é imperativa a criteriosa apreciação do órgão ministerial. Há quem afirme que, dentre os objetivos buscados pela Lei nº 1.533/1951, quando esta estabeleceu a oitiva do Ministério Público, independente do interesse público primário, estaria o de possibilitar a análise da eventual prática de ato de improbidade ou de abuso de autoridade, no entanto isso não justifica a intervenção desnecessária em tantos feitos, principalmente porque, verificando-se indícios daquelas situações, o juiz poderá utilizar-se do disposto no art. 40 do Código de Processo Penal. [06]

2.2.4. Nos Procedimentos de Jurisdição Voluntária

Intervenção que vem sendo muito discutida pelos doutrinadores e Tribunais refere-se aos procedimentos de jurisdição voluntária, questão que não precisaria demandar muita discussão por se tratar apenas de leitura do art. 1.105 do Código de Processo Civil conforme a Constituição Federal, sob pena de se considerá-lo como não-recepcionado. Em primeiro lugar, há de se entender por que, não havendo lide, a lei entendeu por bem colocar sob a guarida do juiz aquelas situações chamadas de jurisdição voluntária.

O legislador exige a intervenção estatal para a validade de diversas situações de interesse aparentemente particular porque, nelas, existe a possibilidade de virem a ocorrer conflitos que atentarão contra o interesse público ou porque seu resultado poderá ultrapassar o mero interesse dos envolvidos. Assim, para a aquisição de imóveis, a lei exige a escritura pública feita pelo tabelião de notas; já a habilitação de casamento deve ser providenciada perante o oficial do registro civil. Em outras situações, contudo, a lei entendeu necessário que o juiz interfira não porque existem interesses conflituosos e atividades parciais dos interessados, a serem substituídas pela sua, imparcial, mas porque a lei considerou indispensável a vigilância judicial sobre os valores envolvidos nesses processos que poderiam vir a ser feridos, em prejuízo da sociedade (DINAMARCO, 1980, p. 34). São os casos de jurisdição voluntária, que se regem pelas regras dos arts. 1.103 e seguintes do Código de Processo Civil.

Como é o interesse público que preside a escolha dos casos a serem submetidos à jurisdição voluntária e como cabe ao Ministério Público a defesa natural daquele, uma corrente de estudiosos, inclusive Nélson Nery Junior (1986), entende ser imprescindível a presença desse órgão em todos aqueles. Por conta disso, defendem a interpretação declarativa do art. 1.105 do Código de Processo Civil, segundo o qual "serão citados, sob pena de nulidade, todos os interessados, bem como o Ministério Público." (grifo nosso).

Essa, todavia, não se constitui na melhor exegese. Em face da crescente ingerência do Estado na vida privada, tem-se estendido o âmbito de atuação dessa administração judicial dos interesses privados, casos em que a atividade judicial assume caráter fiscalizatório, tanto quanto o desenvolvido pelo Ministério Público. Por conta disso, afirmar que este deve intervir, indiscriminadamente, em todos os processos de jurisdição voluntária significa "uma superfetação, ou seja, o juiz já entra como fiscal da regularidade daqueles atos que podiam ser realizados sem sua presença, de forma que acrescer o Ministério Público em todos os casos de jurisdição voluntária é colocar um fiscal para o fiscal" (DINAMARCO, 1986, p. 316).

A lei poderia prever essa superproteção, mas não o fez, pois há necessidade de uma interpretação sistemática, segundo a qual o Parquet só intervém quando existem interesses indisponíveis em jogo, ou, como diz Mazzilli (1991, p. 420), "uma categoria especial de interesse público correlata à sua destinação institucional". Há casos do Título II do Livro IV do CPC que tratam de direitos tipicamente individuais e disponíveis, o que não justifica "a participação do Ministério Público, como alienação de coisa comum, administração ou locação de coisa comum, alienação de quinhão em coisa comum e especialização de hipoteca legal" (BEDAQUE, 1989, p. 56). Mais adequada, portanto, é a exegese restritiva, transpondo, para a jurisdição graciosa, a norma contida no art. 82 do Código de Processo Civil, que dá legitimidade ao Ministério Público quando existente um interesse indisponível. Esse é o entendimento abraçado pela Procuradoria-Geral de Justiça e a Corregedoria-Geral em São Paulo, que, no inciso IV do art. 3º da multicitada recomendação, facultou a intervenção ministerial no "procedimento de jurisdição voluntária em que inexistir interesse de incapazes ou não envolver matéria alusiva aos registros públicos". [07]

O art. 1.105 supracitado integra a legislação processual para estender aos procedimentos de jurisdição voluntária o princípio da necessária intervenção quando houver interesse público. Esse dispositivo deve ser lido com a expressão final se for o caso, que se encontra implícita, como demonstra sua interpretação sistemática, isso porque a lei poderá cometer outras atribuições ao Ministério Público, desde que compatíveis com sua finalidade (MILARÉ, 1984, p. 143), como já tem decidido a linha majoritária da jurisprudência:

Intervenção do MP. É dispensável a intervenção do Ministério Público nos procedimentos de jurisdição voluntária onde não haja interesse de incapaz ou interesse público, pois o CPC 1105 deve ser entendido em consonância com o disposto no CPC 82. O CPC 1105, portanto, deve ser lido com a expressão final ‘se for o caso’ implícita como demonstra sua interpretação sistemática (2º TACivSP, 5ª Câm., Ap 36339, rel. Kazuo Watanabe, v.u., j. 26.8.1976).

(No mesmo sentido: 1ª Câmara Cível – TJ-RS – Ap. nº 39.469 – Santa Maria, rel. Túlio Medina Martins, RJTJRGS, ano 17, n. 90, 1982, p. 405; Apelação Cível nº 145921999 - Ac nº 0382572002 - Ação Originária - Alvará Judicial - 4ª Câmara Cível do TJMA, Buriti, Rel. Jamil de Miranda Gedeon Neto, j. 25.02.2002, Publ. 23.04.2002; Apelação Cível nº 143.308-7, 8ª Câmara Cível do TJPR, União da Vitória, Rel. Des. Celso Rotoli de Macedo. j. 03.12.2003; Apelação Cível nº 99.005511-6, 1ª Câmara Civil do TJSC, Chapecó, Rel. Des. José Volpato de Souza. j. 09.04.2002; STJ – Recurso Especial – Proc. 199400107498-RJ – 4ª Turma – 18.02.1997 – DJ 17.03.1997 p. 7505 – Rel. Sálvio de Figueiredo Teixeira – RePro 58/288)

2.2.5. Nos Recursos interpostos por Terceiros

Tema que também merece reflexão é a reiteração de pareceres num mesmo feito. Nos processos cíveis, os Promotores de Justiça, como fiscais da lei, participam de todas as fases e, ao final da instrução, exaram seu parecer. Mesmo assim, havendo recurso, alguns opinam outra vez, a despeito de já terem exposto seu ponto de vista nos memoriais. Remetidos os autos ao Tribunal, o Parquet emite outra opinião, desta vez por um Procurador de Justiça. Assim, enquanto o Poder Judiciário, órgão incumbido de decidir a lide, manifesta-se em duas oportunidades (sentença e acórdão), o Ministério Público o faz três vezes. O argumento que se levanta em defesa dessa manifestação do Promotor de Justiça pós-sentença diz respeito ao regular processamento do recurso, o que não se deve levar em consideração, pois não possui efeito preclusivo o juízo de admissibilidade proferido pelo julgador a quo, fazendo-se necessário que o Tribunal volte a examiná-lo de ofício, o que torna despiciendo que o seja em primeiro grau. Assim, analogicamente, é o Procurador de Justiça quem deverá analisar a existência dos pressupostos de admissibilidade do recurso, ou, caso se entenda necessária essa atuação pelo Promotor de Justiça, dispensável deve ser a manifestação quanto ao mérito.

Diante da sobrecarga de trabalho, essa constante sobreposição de opiniões se mostra desnecessária e irracional. Pode-se até mesmo dizer que "a situação está em descompasso com o princípio da unidade do Parquet, posto que existem manifestações em várias fases de um mesmo processo, por órgãos ministeriais distintos, como se pertencessem a instituições diversas, uma opinando após a outra" sobre a mesma matéria (SCIORILLI, 2000, p. 31). O ideal, portanto, encontra-se na seguinte solução: quando intervém como custos iuris, ao invés de se manifestar em grau de recurso sobre as razões e contra-razões das partes, o Promotor de Justiça deverá consignar que se limita a examinar os pressupostos de admissibilidade do recurso porque, quanto ao mérito, o Procurador de Justiça se pronunciará. Essa, aliás, foi a recomendação expedida em ato conjunto da Procuradoria-Geral de Justiça, do Colégio de Procuradores e da Corregedoria-Geral de São Paulo. [08] Também a jurisprudência em vários Estados, já propugna essa idéia, da qual se extrai o acórdão abaixo:

Data venia, improcede o pedido de diligência. O Ministério Público é uno e indivisível, cabendo às Promotorias de Justiça atuarem no processo como custos legis até o esgotamento da jurisdição de primeira instância e à Procuradoria de Justiça exercer as mesmas funções em segundo grau. In casu, ao prolatar a sentença, o órgão judicante de primeiro grau esgotou a sua jurisdição, quanto ao poder a ele inerente de conhecer, prover, recolher os elementos de prova e decidir. Com a interposição do recurso, restou-lhe o poder de processar o recurso e remetê-lo ao órgão de devolução. Com a sentença, outrossim, esgotou-se a função da Promotoria de Justiça de primeira instância, cabendo à Procuradoria de Justiça fiscalizar todos os atos praticados a partir do açulamento da jurisdição de segundo grau com a petição recursal. Em sendo assim, o parecer recursal do Promotor de Justiça é desnecessário na espécie, sendo suprido pelo parecer da Douta Procuradoria de Justiça, já emitido. Rejeito, pois, a preliminar de conversão do julgamento em diligência suscitada pela douta Procuradoria de Justiça (TJMG, Ac 2.972/8).

Sobre o autor
Millen Castro Medeiros de Moura

Promotor de Justiça em Valente (BA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA, Millen Castro Medeiros. A adequação do "custos iuris" ao novo perfil ministerial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1767, 3 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11242. Acesso em: 22 dez. 2024.

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