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Questão errada anula questão certa.

A verdade e a boa-fé em jogo nos concursos públicos

Agenda 21/05/2008 às 00:00

Como é de reiterado conhecimento dos milhares de candidatos a cargos e empregos públicos que prestam os respectivos concursos, existem provas, como aquelas aplicadas pelo Centro de Seleção e de Promoção de Eventos Universidade de Brasília (CESPE/UNB), onde há a previsão de que cada questão assinalada erroneamente pelo candidato lhe subtrai o ponto conquistado em uma questão assinalada de forma correta. Tal critério, segundo o próprio CESPE/UNB, é medida justa para "descartar a possibilidade de acerto ao acaso. O procedimento é justificável em um processo que visa selecionar o candidato que sabe analisar, interpretar e responder a partir do que aprendeu, descartando o "chute". A anulação de um item correto para cada resposta incorreta é, portanto, uma segurança a mais de que a classificação no processo se deve ao desempenho individual do candidato e não à sorte" (http://www.cespe.unb.br/perguntasFrequentes/).

Contudo, passaremos a tecer algumas considerações acerca do malfadado critério de avaliação, as quais levarão à conclusão de que tal se revela totalmente divorciado do Direito, bem como do próprio conceito de verdade.

Diz o Dicionário Michaelis sobre o vocábulo verdade:

verdade

ver.da.de

sf (lat veritate) 1 Aquilo que é ou existe iniludivelmente. 2 Conformidade das coisas com o conceito que a mente forma delas. 3 Concepção clara de uma realidade. 4 Realidade, exatidão. 5 Sinceridade, boa-fé. 6 Princípio certo e verdadeiro; axioma. 7 Juízo ou proposição que não se pode negar racionalmente. 8 Conformidade do que se diz com o que se sente ou se pensa. 9 Máxima, sentença. 10 Cópia ou imitação fiel. 11 Representação fiel de alguma coisa existente na natureza. 12 Caráter próprio. Antôn (acepção 8): mentira. sf pl Princípios fundamentais de uma doutrina; dogmas de uma religião. Meia verdade: afirmação parcialmente verdadeira ou parcialmente urdida, de modo a iludir pessoas ou escapar a críticas. V. verdade: a verdade primeiro que tudo; diga-se a verdade, salve-se a verdade. Dizer a verdade nua e crua: falar sem ambages, sem disfarce, sem rodeios. Dizer as verdades a alguém: a) expor abertamente o que se sabe ou se julga de alguém; b) criticar sem medo; c) manifestar os defeitos ou as faltas de alguém. Ser a pura verdade: ser a verdade clara e positiva, ser a verdade incontestável. Ser a verdade em pessoa: nunca mentir. Tirar a verdade a limpo: averiguá-la. Valha a verdade: diga-se a verdade. Verdade é que: na realidade

(http://michaelis.uol.com.br).

Estabelecido tal conceito, e agora passando à realidade fática de uma avaliação, seja em qualquer esfera do conhecimento humano, seja em um concurso público, que é o nosso foco neste texto, no momento em que o candidato julga como certa uma assertiva disposta em uma prova de concurso, e aquela é de fato confirmada como tal no momento da correção, torna-se, então, no contexto fático, imutável, conforme os conceitos acima dispostos. Ou seja, no momento em que uma questão é dada como certa, passa a ser expressão da realidade, exata, coexiste com a boa-fé, não podendo ser negada racionalmente...

A partir de tal construção, conclui-se que o critério dispondo que uma questão errada anula uma questão certa se encontra totalmente divorciado da própria lógica, pois, no momento em que o candidato é apenado com a perda do ponto conquistado na marcação de uma questão certa, simplesmente porque errou no julgamento de outra assertiva, a organizadora do certame está a mudar uma verdade, sem qualquer substrato racional e objetivo. Ora, sem pretender ser redundante, o que é certo é certo, e o que é errado é errado! É simplesmente bizarra e inaceitável a justificativa no sentido de que, assim, evita-se o acerto ao acaso.

Qual é o meio hígido de que dispõe a organizadora do concurso para se certificar de que determinada questão em uma prova objetiva foi assinalada com plena convicção do candidato ou mediante mero palpite?!

Retrocedendo ao ano 2000, o então Deputado Alceu Collares propôs a abolição deste critério de avaliação em concursos públicos, através do Projeto de Lei nº. 3.719/00, argumentando que "por esse critério, um candidato que acerta 50% da prova e erra os outros 50% tem zero como nota final, igualando-se à nota daquele que deixou a prova toda em branco. Vê-se claramente que o resultado final de provas dessa natureza não corresponde à realidade, não verificando verdadeiramente os conhecimentos do candidato". Infelizmente, o Relator do Projeto, à época Deputado Luiz Antônio Fleury, votou pela rejeição do mesmo, argumentando singelamente que "a eficácia do procedimento de se descontar pontos do candidato em virtude dos erros que o mesmo incorreu é estatisticamente comprovada. Improcede, portanto, a interdição de tal critério" (http://www2.camara.gov.br/proposicoes).

Na mesma esteira de pensamento utilizada pelo Deputado Alceu Collares, o professor de Direito Constitucional - Vicente Paulo – faz algumas ponderações, dispensando especial atenção ao concurso realizado pela Polícia Federal no ano de 2005, discorrendo sobre uma situação ocorrida de fato, conforme se lê abaixo:

"No concurso de Perito da Polícia Federal, a anulação de um número exagerado de questões mudou completamente o resultado preliminar do concurso, anteriormente divulgado pelo Cespe. Para se ter uma idéia, na prova de Perito – Área Contábil, foram anuladas 11 questões, o que, em prova do tipo Cespe/Unb, em que uma questão errada anula uma certa, implica a atribuição de 22 pontos a todos os candidatos. Imagine se você, nesse concurso, houvesse acertado inicialmente as 11 questões, e um outro candidato, ao contrário, houvesse errado essas 11 questões; com a anulação, vocês seriam igualados, em razão da atribuição dos pontos das questões anuladas a todos os candidatos. Em Brasília, conheço candidato que, com essas anulações, passou da 5ª colocação (portanto, aprovadíssimo) para a condição de reprovado...".

Também é verdade que essas situações são desestimuladoras numa preparação, desrespeitam, jogam por água abaixo anos de preparação, dinheiro e tempo investidos em estudo e mais estudo" (http://www.pontodosconcursos.com.br/professor.asp?menu=professores&busca=&prof=3&art=1964&idpag=12).

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Os registros acima respondem à indagação feita linhas acima, isto é, simplesmente inexiste, em uma avaliação objetiva (não discursiva), a possibilidade de se saber quais questões foram assinaladas pelo candidato se valendo de sua convicção, ou simplesmente de um palpite, motivo pelo qual a organizadora atribui ponto a todos.

É necessário, então, que se promova uma mudança no sistema utilizado principalmente pela CESPE/UNB na avaliação dos candidatos a cargos e funções públicas, quando da prestação de provas objetivas em concursos públicos, pois, como visto, a anulação de uma questão certa, justificada no erro do candidato na marcação de outra questão, indubitavelmente resulta em prejuízos àqueles que sacrificam grande parcela de seu tempo se preparando para concursos, além de atentar contra a boa-fé e contra a própria Justiça.

Por fim, é imperioso registrar que, já que o Poder Legislativo se omitiu na mudança desta triste realidade, caberia, então, ao Ministério Público, na condição de protetor dos direitos coletivos e difusos, ajuizar a correspondente ação para promover tal alteração, pois não pairam dúvidas sobre a relevância pública do tema, o que reclama a intercessão do órgão ministerial, nos termos da Constituição Federal.

Sobre o autor
Vitor Guglinski

Advogado. Professor de Direito do Consumidor do curso de pós-graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (RJ). Professor do curso de pós-graduação em Direito do Consumidor na Era Digital do Meu Curso (SP). Professor do Curso de pós-graduação em Direito do Consumidor da Escola Superior da Advocacia da OAB. Especialista em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Ex-assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Autor colaborador da obra Código de Defesa do Consumidor - Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional (Juspodivn). Coautor da obra Temas Actuales de Derecho del Consumidor (Normas Jurídicas - Peru). Coautor da obra Dano Temporal: O Tempo como Valor Jurídico (Empório do Direito). Coautor da obra Direito do Consumidor Contemporâneo (D'Plácido). Coautor de obras voltadas à preparação para concursos públicos (Juspodivn). Colaborador de diversos periódicos jurídicos. Colunista da Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal. Palestrante. Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4246450P6

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUGLINSKI, Vitor. Questão errada anula questão certa.: A verdade e a boa-fé em jogo nos concursos públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1785, 21 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11286. Acesso em: 22 dez. 2024.

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