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Uma análise dos reflexos da vulnerabilidade sobre a responsabilidade do consumidor

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Agenda 30/05/2008 às 00:00

Até que ponto não há, de uma certa forma, uma infantilização do homem ao não responsabilizá-los por suas escolhas e ações juridicamente relevantes?

sumário: Introdução. 1 Conexões conceituais. 1.1 Teoria da ação voluntária. 1.2 Vulnerabilidade e tutela do consumidor. 2 Aplicação dogmática. 2.1 A recepção jurídica da teoria da ação voluntária de Aristóteles: escolha e standards de normalidade. 2.2 Exame de alguns casos concretos: publicidade enganosa e tabagismo. Conclusão. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. JURISPRUDÊNCIA CONSULTADA


Introdução [01]

All deep thought begins and ends in the attempt to grasp whatever touches one most immediately. [02]

Em um recente acórdão [03] do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, versando sobre uma indenização pleiteada por morte decorrente de tabagismo, o Des. Adão Cassiano argumentou que:

Como já referido, no caso, não se perquire de culpa exclusiva ou concorrente da vítima porque desde sempre, na verdade, não há opção livre de fumar ou não fumar, em decorrência da dependência química e psíquica e diante da publicidade massiva, apelativa, cooptativa e aliciante, que sempre ocultou o perigo, os riscos, os malefícios e a própria causação da dependência. [04]

Considerações desse tipo geralmente giram em torno do princípio da vulnerabilidade. Seja com relação a cigarros como com relação à tutela geral do consumidor, categoria vulnerável por excelência, verifica-se, às vezes, que o caso é analisado sob o ponto de vista de que ele é tanto incapaz de fazer escolhas corretas, o que leva o juiz a fazê-las por ele, como não é responsável por suas escolhas erradas.

Não questiono que o indivíduo na sociedade atual está constantemente numa posição de fragilidade, especialmente quando assume determinados papéis sociais, como o de consumidor, e que muitas vezes sua autonomia e poder de autodeterminação encontram-se, por influência de diversos condicionamentos sociais, bastante reduzidos. Tal fato não só é correto como é também justificador de um regime legal de tutela para tais categorias, como o consumidor e o trabalhador. O que estará em jogo aqui, muito mais, é até que ponto, em alguns casos, não se foi longe demais nisso.

O problema que eu pretendo abordar, portanto, é exatamente esse: até que ponto não há, de uma certa forma, uma infantilização do homem ao não responsabilizá-los por suas escolhas e ações juridicamente relevantes? Até que ponto a tutela de categorias vulneráveis não atenta contra a própria dignidade da pessoa humana, ao tornar o homem um autômato? Até que ponto a vulnerabilidade não se tornou um escudo para a irresponsabilidade, levando, por exemplo, em alguns casos, o consumidor a uma situação de inimputabilidade?

Mais do que a ênfase na utilização explícita da vulnerabilidade, minha preocupação será questionar a idéia de homem vulnerável por trás de muitas decisões e de uma parte da doutrina. Essa visão muitas vezes é tratada pelo princípio da vulnerabilidade, mas também quando se questiona quão diligente, experiente ou atento deve ser o agente. Embora, nessas questões, muitas vezes não haja referência à vulnerabilidade de tal agente, ele é visto como um ser essencialmente vulnerável.

Essa ênfase na vulnerabilidade perpassou toda sociedade, não somente o Direito. São do psicanalista Renato Mezan as seguintes palavras:

O século XX trouxe formidáveis transformações ao modo de vida do homem ocidental – invenções tecnológicas, liberdades democráticas, mercadorias acessíveis a milhões de pessoas, descobertas na medicina –, mas esses avanços cobraram seu preço, fazendo surgir novos problemas. Um deles me parece particularmente importante, porque pervade praticamente todas as dimensões da vida contemporânea: a infantilização crescente das pessoas. Existe hoje uma perigosa tendência a evitar a responsabilidade individual, o que coloca em risco um dos valores que herdamos do Iluminismo: a autonomia. [05]

Também o filósofo Fernando Savater aborda essa questão:

Em nossa época, são abundantes as teorias que pretendem nos desculpar do peso responsável da liberdade quando nos é fastidioso: o mérito positivo de minhas ações é meu, mas minha culpa eu posso dividir com meus pais, com a genética, com a educação recebida, com a situação histórica, com o sistema econômico, com qualquer uma das circunstâncias que não está em minhas mãos controlar. Todos nós somos culpados de tudo, logo ninguém é principal culpado de nada. [06]

Ao tratar de temas como vulnerabilidade, liberdade, voluntariedade e responsabilidade, é não só inevitável como desejável o recurso à filosofia. Além do mais, estará se discutindo aqui conceitos em torno dos quais debate-se há séculos, e onde grassa uma enorme divergência dependendo da filosofia adotada. Isso pode nos levar a algumas ponderações bastante interessantes.

Uma delas foi formulada por Aleksander Peczenik. [07] Segundo ele, parece estranho que, apesar da imensa controvérsia filosófica que gira em torno de certos termos com reflexo jurídico, da sua dependência de uma avaliação moral e do fato do pluralismo moral, a doutrina e a jurisprudência podem reclamar objetividade mesmo assim. Para ele, isso ocorre porque a dogmática jurídica opera através de trivialidades ("platitudes") [08]. Além disso, o Direito operaria através de "middle range theories", teorias menos complexas que as filosóficas. Diz ele: "They may very well follow from one or another comprehensive and abstract philosophy [09]".

No entanto, apesar de no Direito várias serem as teorias utilizadas para explicar certos institutos, e várias teorias (das quais as principais, indubitavelmente, são a aristotélica, a kantiana e a utilitarista) se alçarem ao papel de explicações possíveis de alguns institutos e conceitos, é inegável que a mera existência de alguns institutos no Direito, como a responsabilidade civil, implica que toda uma filosofia não tem a menor validade aqui, por exemplo, a que prega o determinismo. Como muito bem diz Yvonne Lambert-Faivre: "Ce lien, (...), entre la liberté et la responsabilité, réfute tout déterminism: si le monde est né du hasard et de la nécessité et si le mal est génétique, il n’y a plus de fondement ni à la liberté, ni à la responsabilité, morale, social et juridique [10]".

A ligação entre filosofia e Direito também nos leva a uma outra questão bastante interessante, essa posta por Bernard Williams. Para Williams, não só o Direito deve aprender com a filosofia, mas também essa deve aprender com o Direito. Pois, nesse último, conceitos filosóficos são como que "postos à prova" sob certas condições de extrema pressão, quando uma resposta é necessária. [11] A filosofia, assim, poderia aprender algo sobre a própria natureza dos seus conceitos quando submetidos às condições do Direito. [12]

Poderia ser complementado que, pelo fato do Direito operar por trivialidades e essas poderem ser explicadas por diversas teorias filosóficas, bem como pelo fato do Direito ter que dar uma resposta e adotar uma dessas teorias, deveríamos adotar uma tese que conseguisse dar conta dessas duas questões na sua interpretação da natureza do Direito. Poderíamos aqui concordar com a chamada tese do caso especial de Robert Alexy, segundo a qual a argumentação jurídica é um caso especial da argumentação prática geral [13]. Sem entrar em detalhes quanto à sua formulação, tal teoria é o corolário de que tanto a argumentação jurídica deve estar aberta à argumentação prática geral, como submetida a condições (legislação, jurisprudência e dogmática) que a diferenciam da argumentação prática. Ou seja, embora essa última influencie o raciocínio jurídico, ele, pela necessidade de uma decisão, opera de forma diferente da argumentação prática, adotando uma visão ou outra. No entanto, uma interpretação pode sempre ser alterada no futuro, exatamente pelo fato de que questões jurídicas nunca estão cabalmente encerradas. [14]

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Feitas essas breves considerações, uma última questão, talvez a mais crucial, deve ser respondida. Afinal, por que tudo isso é importante? Qual a relevância de se analisar a vulnerabilidade e a responsabilidade?

Poderíamos levantar, como um primeiro argumento, uma questão bastante prática. Segundo reportagem da Revista Amanhã de setembro de 2004, um dos fatores que fomenta a cultura do descumprimento dos contratos e da insegurança jurídica é "a prática crescente dos juízes de ignorar os termos de um acordo para beneficiar a parte mais fraca [15]". Segundo a referida reportagem:

(...) no afã de proteger o lado mais frágil, a Justiça vem exagerando na dose. Segundo um levantamento do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) que ouviu 741 magistrados em 12 Estados, 79% deles decidiriam pela quebra de um contrato para favorecer pessoas de baixa renda. [16]

Um dos efeitos disso é que no Rio Grande do Sul, onde é grande o número de ações revisionais de contrato, estima-se que os juros cobrados nos financiamentos sejam de um a dois pontos percentuais maiores do que no resto do país. [17]

No entanto, sem negar a importância dessas considerações, a hipertrofia da vulnerabilidade pode vir a ter reflexos ainda maiores e mais relevantes em alguns dos princípios mais caros do Direito Privado. Refiro-me, principalmente, à autonomia privada e à auto-responsabilidade. Com efeito, o dogma de que o agente deve ser responsável por suas ações (e omissões), sejam elas vantajosas ou desvantajosas, no tráfego negocial é característica essencial de todo regime de Direito Privado.

Obviamente, a liberdade (ou a autonomia individual) não se confunde com a autonomia privada, e é necessário demarcar nitidamente o campo específico de cada uma. É preciso um conceito jurídico de autonomia privada. Se esta começa com uma definição social ou natural, não só o conceito se torna inútil, como tudo se torna autonomia privada. Autonomia privada não é sinônimo de autonomia individual, como guiar a vida de um jeito e não de outro. Essa é a posição de Luigi Ferri:

Está claro que, partiendo de una concepción naturalista o incluso social, pero en todo caso no jurídica, de la autonomía privada, no se puede llegar a ningún resultado constructivo. En efecto, no hay actividad humana voluntaria que no pueda incluirse en tal concepción de la autonomía privada (...). [18]

Assim, segundo Ana Prata, "autonomia privada não designa toda a liberdade, nem toda a liberdade privada, nem sequer toda a liberdade jurídica privada, mas apenas um aspecto desta última: a liberdade negocial [19]".

No entanto, mesmo endossando essa afirmação, é igualmente inegável o nexo entre a liberdade negocial e a liberdade, digamos, natural. Na verdade, esta última como que se institucionaliza ao passar para um plano especificamente jurídico, de onde retira contornos próprios. A liberdade natural é institucionalizada, num primeiro plano, em liberdade jurídica (de maneira bastante genérica, ordenar juridicamente seus interesses), posteriormente em autonomia privada (que se confunde, na verdade, com autonomia negocial) [20] e, depois, por exemplo, em liberdade de testar e contratar. Poderíamos ainda subdividir essa última em três: a liberdade de celebração (é à iniciativa privada que pertence a decisão de realizar ou não o contrato); a liberdade de seleção do tipo contratual (a ela cabe a escolha do contrato a celebrar, tipificado na lei ou não); e a liberdade de estipulação (às partes compete modelar, de acordo com os seus interesses, o conteúdo concreto da espécie negocial eleita). [21] Embora haja limitações cada vez maiores em cada plano, derivadas da inserção em um sistema específico, que opera como que um "filtro", selecionando o que pode e o que não pode entrar, [22] a ligação com a origem permanece.

Essa ligação também fica clara com a observação bastante trivial de que o Direito Civil é o ordenamento jurídico dos particulares,

(...) fundado no princípio da igualdade de poder perante a lei e construído com base no reconhecimento de uma esfera de soberania individual, cujas mais evidentes manifestações são o princípio da liberdade, com referência à pessoa, a propriedade, com referência à relação pessoa e bens da vida, e o contrato, com referência à atividade livre e discricionária dos indivíduos. [23]

Tais institutos seriam a expressão das três liberdades fundamentais do Direito Civil, a liberdade de contratar, a liberdade de ser proprietário e a liberdade de testar. [24] A autonomia privada constitui-se, portanto, em uma esfera de atuação do sujeito no âmbito do Direto Privado, mais propriamente em um espaço que lhe é concedido para exercer a sua atividade jurídica. Ainda seguindo Amaral:

(...) a autonomia privada constitui-se em um dos princípios fundamentais do sistema de direito privado num reconhecimento da existência de um âmbito particular de atuação com eficácia normativa. Trata-se da projeção, no direito, do personalismo ético, concepção axiológica da pessoa como centro e destinatário da ordem jurídica privada, sem o que a pessoa humana, embora formalmente revestida de titularidade jurídica, nada mais seria do que mero instrumento a serviço da sociedade. [25]

A autonomia privada, dessa forma, parece ter dois fundamentos: a idéia de liberdade negativa [26] e o princípio da subsidiariedade. Pelo primeiro, é dado aos particulares o poder de auto-regular seus interesses sem interferência de ninguém. Pelo segundo, compreende-se que, em se tratando de interesses particulares, ninguém melhor para conhecê-los e regulá-los da melhor maneira que os próprios particulares. [27] O ordenamento jurídico, assim, reconhece uma esfera em que o particular é soberano para regular juridicamente seus interesses. Mais do que isso, a autonomia privada é uma verdadeira força dinamizadora do Direito. [28] Segundo Ferri:

Hay que dar por supuesto que donde existe un poder hay una posibilidad de hacer algo que no está completamente predeterminado por normas jurídicas. El concepto de poder como fuerza creadora de derecho implica que de cualquier acto de ejercicio del poder nazca un quid novi, es decir un quid que no puede estar del todo descrito o previsto por normas. Sólo los actos meramente ejecutivos, esto es, que no tienen carácter normativo, no contienen elementos de novedad jurídica. Si los actos fueran todos de este tipo, el ordenamiento sería estático y el derecho objetivo inmutable. [29]

Embora haja divergências em pontos mais específicos, a definição básica de autonomia privada tem permanecido essa: o poder dos particulares de se darem um ordenamento, um regulamento direto, individual, concreto, de determinados interesses pessoais, efetivado pelos próprios particulares. [30]

Como ressalta Amaral, no entanto, "tal poder não é, porém, originário e ilimitado. Deriva do ordenamento jurídico estatal, que o reconhece, e exerce-se nos limites que esse fixa, limites esses crescentes (...) [31]". A autonomia privada convive com limites tanto internos quanto externos. Entre os limites externos, estão principalmente os bons costumes e a ordem pública. Os limites internos são derivados da constatação anterior, de que a autonomia privada não se confunde com autonomia individual. Assim, por exemplo, no caso de um contrato, ele deve estar adequado a uma certa forma e submetido a disposições cogentes relativas a ele, já dispostas no Código Civil. Às partes não é dado o poder de alterar certas características do contrato. [32] Daí o absurdo de se afirmar que a única situação em que a autonomia privada se manifesta verdadeiramente é na celebração de contratos inominados, [33] como se ela só fosse digna desse nome quando fosse total, criando um contrato que, excetuando as disposições gerais, [34] não possui disposições imperativas na lei, ou seja, não se submete de forma nenhuma a uma vontade que não seja a dos particulares. Isso obviamente é impossível, pois do fato de não ser um contrato nominado, em que certos requisitos devem ser observados, não quer dizer que não haja mediatização da lei. Ela acontece não apenas de forma negativa, por exemplo, proibindo objeto ilícito, mas também porque o negócio jurídico é acionado, só é válido, porque o ordenamento jurídico o permite. [35]

Assim, o problema da autonomia é antes de tudo um problema de limites, e de limites que são sempre o reflexo de normas jurídicas. [36] Efetivamente, é impensável cogitar em conceder tais poderes aos privados, para que possam contratar em termos totalmente opostos às normas vigentes. Como muito bem assinala Betti, "o direito não concede a sua sanção ao mero arbítrio, ao capricho individual, (...) mas apenas a concede a funções que considera socialmente relevantes e úteis para a comunidade que disciplina e em que se desenvolve [37]".

Fiz estas breves referências para marcar de que forma a transição da liberdade individual para a liberdade negocial impregna essa última de características e funções próprias. Reitero, no entanto, que o nexo entre as duas não é rompido. Isso pode ficar mais evidente pela mera existência de algumas categorias jurídicas, da qual o caso mais exemplar é, com certeza, o negócio jurídico.

A mera existência da categoria negócio jurídico, de não se admitir que o Estado contrate pelo particular, é uma prova de que deve haver um campo de livre escolha e responsabilidade do particular. Tudo isso são comprovações de que o Direito dos Contratos não deve ser pautado pelo paternalismo. Se assim fosse, não precisaria haver negócio jurídico, e, ou o Estado contrataria pelo particular, ou o juiz interviria em todo e qualquer contrato a fim de conformá-lo a seu ideal de justiça. Aliás, é interessante a observação de Orlando Gomes sobre isso:

De fato, onde não existem esferas particulares de interesse, a autonomia privada está ausente. Limitada se acha, outrossim, nos ordenamentos jurídicos como o da União Soviética, que somente admitem poucos negócios jurídicos, taxativamente determinados. Onde, porém, se reconhece ao indivíduo o poder de auto-regular seus interesses particulares, seu exercício constitui dado incomovível da realidade social. Tem a ordem jurídica, no reconhecimento da autonomia privada, sua pedra angular. Outra não é a razão por que o negócio jurídico, principal instrumento dessa autonomia, se coloca no centro do sistema de Direito Privado. [38]

Também o que foi dito anteriormente sobre a ligação entre liberdade e autonomia privada vale para o negócio jurídico (já que esse é o meio pelo qual ela se expressa). Também no negócio jurídico há um primeiro momento em que o particular decide atuar de uma certa maneira, e quer que a esta atuação sejam dados efeitos jurídicos (decide, por exemplo, contratar). No entanto, para isso acontecer, é necessário que o Direito reconheça essa sua manifestação como juridicamente válida, [39] o que é feito no plano da validade (requisitos de validade) [40] e da eficácia (fatores de eficácia). Nas palavras de Antônio Junqueira de Azevedo:

(...) feita a primeira verificação, isto é, a de que o negócio (...) é o que socialmente se vê como manifestação de vontade dirigida à produção de efeitos jurídicos, o direito, depois, assume plenos poderes e será dele, exclusivamente, que dependerão a validade e a eficácia do negócio.

Portanto, se, no plano da existência, é indispensável fazer referência aos padrões culturais que vêem como jurídicos certos atos, o direito, nos planos subseqüentes, age soberanamente sobre o dado que lhe foi fornecido, dando, ou negando, validade e eficácia. [41]

Outra distinção categorial que corrobora a existência de uma esfera de soberania individual em que os particulares operam sem influência (direta) do Estado é a existente entre negócio jurídico e ato jurídico em sentido estrito. Como é sabido, ambos fazem parte da categoria mais geral de atos jurídicos (ou fatos voluntários). No entanto, enquanto no ato jurídico em sentido estrito os efeitos já estão estabelecidos na lei, no negócio jurídico as declarações de vontade são destinadas a produzir determinados efeitos, permitidos em lei e desejados pelo agente, isto é, contêm determinada intenção. Não é por outra razão que somente o negócio jurídico é considerado instrumento da autonomia privada, poder que os particulares têm de criar as regras de seu próprio comportamento para a realização de seus interesses jurídicos.

Se houve essa separação, é porque se acreditou que certos atos devem ser praticados sem intromissão do Estado pelo particular, que, além do mais, conhece melhor seus interesses. Caso não fosse assim, e fosse possível prever o melhor para todos, [42] não haveria razão de ser do negócio jurídico.

Entretanto, seja pela nova teoria contratual, seja pelo excesso de paternalismo no Direito Contratual contemporâneo, a autonomia privada é um dos princípios mais atacados atualmente. De uma parte, ela ganhou contornos distintos na nova teoria contratual, onde se apresenta funcionalizada. Veja-se, nessa linha, o posicionamento de Teresa Negreiros: "O poder jurígeno reconhecido à vontade individual não é, pois, originário e autônomo, mas derivado e funcionalizado a finalidades heterônomas [43]".

O tom do discurso de crítica à autonomia privada parece ter invertido a situação: antes a autonomia privada era uma prerrogativa do indivíduo, à qual o Estado colocava limites externos e impunha a necessidade de se adequar a uma certa forma. Hoje ela não só se apresenta funcionalizada, à disposição do Estado e dos fins sociais que este estabelece, como também é vista como uma concessão do Estado ao indivíduo. [44]

Não pretendo, no entanto, me debruçar sobre esse ponto. Como o trabalho versa sobre os efeitos da vulnerabilidade sobre a responsabilidade, gostaria de analisar de que forma isso tem conseqüências para a autonomia privada.

O reflexo mais imediato é o paternalismo, a superproteção do contratante vulnerável a tal ponto que ele não faz mais as escolhas [45] por si mesmo. É essa, por exemplo, tanto a opinião de Stiglitz ("quedó demostrado que el individuo no es quien mejor protege sus propios intereses" [46]), como é o que está claro no trecho do seguinte acórdão, [47] no voto da Desa. Marilene Bonzanini Bernardi, versando igualmente sobre tabagismo: "O homem precisa ser protegido de si mesmo, mormente porque lidamos com produtos que podem minar a capacidade de autodeterminação [48]".

O alerta de tal paternalismo foi feito por Rodotà:

L’evocazione dei pericoli in largo senso politici di un ricorso ampio alle clausole generali si ritrova non solo tra coloro i quali hanno messo l’accento sul rischio di un "sopravvento dell’interventismo dei giudici", di un "decisionismo giudiziale" che comprometterebbe "la certezza delle relazioni giuridiche", ma anche tra quelli che piuttosto si mostrano preoccupati del paternalismo di cui esse si farebbero portatrici, con ingerenze indebite in ambiti che dovrebbero essere integralmente lasciati alla libera determinazione dei privati. [49]

Sinteticamente, são esses os reflexos que a idéia de vulnerabilidade (ou homem vulnerável) pode ter quando utilizada desarrazoadamente. Voltarei a tratar de alguns desses temas ao longo do trabalho.

Com relação à estrutura do trabalho, ele é dividido em duas partes. Na primeira, trato das relações conceituais entre vulnerabilidade e responsabilidade. Num primeiro momento, tratarei da teoria da ação voluntária de Aristóteles. Para o propósito desse trabalho, será impossível dar um tratamento completo para uma questão tão complexa como essa, que envolve não somente os escritos de ética de Aristóteles, mas também os de metafísica, física e os tratados de biologia. Deterei-me mais especificamente nas suas obras de ética, especialmente na "Ética a Nicômacos". Minha intenção, nesse capítulo, é demonstrar a utilidade dessa teoria para uma análise de alguns institutos dogmáticos de Direito Privado. Na segunda parte, analiso a questão da vulnerabilidade. O foco aqui estará em refinar o conceito, demonstrar que tipo de vulnerabilidade interessa ao Direito e quais são os seus reflexos na área da responsabilidade. Como já ressaltei anteriormente, não só a vulnerabilidade como princípio será analisada, mas também (e, talvez, principalmente) a idéia de homem vulnerável por trás de algumas decisões e parte da doutrina.

Na segunda parte, analiso a aplicação dogmática da teoria da ação voluntária e das influências da vulnerabilidade sobre ela. A análise será restrita ao Direito Privado (embora pudesse se estender facilmente ao Direito Penal), mais especificamente, numa área que se erigiu em torno de uma categoria especialmente vulnerável: o consumidor. Antes de entrar na análise da relação vulnerabilidade-responsabilidade em alguns casos práticos no Direito do Consumidor, abordarei a idéia de standards de normalidade, que guiarão a aplicação dogmática da teoria da ação voluntária. Nessa parte, desenvolverei de maneira exemplificativa como esse padrão faz parte do Direito e de que forma ele pode ser aplicado às relações consumeristas e quais as distinções que ele deve ter ali. Na segunda parte, analiso alguns casos em que a idéia de vulnerabilidade e irresponsabilidade parece estar mais presente, como os versando sobre tabagismo e publicidade enganosa.

O trabalho terá um duplo aspecto: de um lado, oferecer um fundamento aristotélico para práticas e instituições jurídicas, clarificando-as. De outro, criticar essa ênfase na vulnerabilidade e demonstrar de que maneira a teoria da ação voluntária pode ser útil para mitigá-la.

Como nada seria menos aristotélico do que simplesmente definir conceitos para depois aplicá-los a uma gama infinita de casos, procurei estabelecer uma dialética entre os universais e particulares, para que ambos nessa interação sejam mais bem compreendidos. Assim, não só a análise da vulnerabilidade e responsabilidade será feita também à luz de casos concretos, de onde se procurará ver quais são os reflexos concretos de uma sobre a outra para a partir daí construir conceitos mais refinados, como também esses conceitos, uma vez mais desenvolvidos, serão posteriormente aplicados a situações particulares. Embora na primeira parte seja feita uma análise mais conceitual, na segunda parte ela será contraposta a uma análise dogmática, de institutos e casos concretos, a fim de que seja adequada a termos especificamente jurídicos. O trabalho terá conseguido atingir seu objetivo se dessa dialética resultar um conceito mais refinado de vulnerabilidade e de seus reflexos sobre a responsabilidade, que tenha relevância prática e que deixe espaço tanto para a solidariedade como para a auto-responsabilidade.

Sobre o autor
Eduardo Augusto Pohlmann

Advogado em Porto Alegre (RS). Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POHLMANN, Eduardo Augusto. Uma análise dos reflexos da vulnerabilidade sobre a responsabilidade do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1794, 30 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11321. Acesso em: 23 dez. 2024.

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