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Uma análise dos reflexos da vulnerabilidade sobre a responsabilidade do consumidor

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30/05/2008 às 00:00
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1 Conexões conceituais

E se, nascido apenas para desventuras (...), vi-me diante de meu pai, fui obrigado a enfrentá-lo e o matei sem ter a mínima noção do que fazia e sem saber também quem era a minha vítima, como alguém poderia agora condenar-me por um ato sabidamente involuntário? [50]

Qual a utilidade de um conceito filosófico de voluntariedade? De que maneira a explicação desse conceito pode nos ajudar a entender ou resolver problemas especificamente jurídicos? E por que utilizar exatamente a teoria da ação voluntária de Aristóteles? Da resposta satisfatória dessas perguntas depende a utilidade desse trabalho, que está comprometido em resolver o problema da hipertrofia da vulnerabilidade no nosso ordenamento jurídico exatamente à luz da teoria da ação voluntária de Aristóteles.

Existem vários motivos para considerarmos a teoria da ação voluntária não só interessante como uma explicação mais profunda de vários conceitos e institutos jurídicos enraizados no nosso ordenamento, [51] mas também como necessária para podermos operar de forma mais correta com eles.

Em primeiro lugar, embora a teoria da ação voluntária aristotélica guarde talvez mais relações com o Direito Penal, onde é essencial a idéia de culpa, intenção, possibilidade de deliberação etc, creio ser possível analisar problemas também de Direito Privado à luz dessa teoria. Uma primeira ligação direta com o Direito Privado está no próprio conceito de ato jurídico, [52] que pressupõe uma ação voluntária, o que exclui os eventos da natureza e os atos praticados por coação absoluta.

No entanto, o principal reflexo de uma análise da voluntariedade é, evidentemente, sobre a responsabilidade, tanto moral quanto jurídica. É importante esclarecer esse ponto, já que um dos fatores de imputação de uma ação a um sujeito é que ela tenha sido voluntária. Sobre a ligação da voluntariedade com a responsabilidade e a evolução histórica dessa ligação, o seguinte longo trecho de Alberto Muñoz é esclarecedor:

Portanto, somente ações más merecem punição, e somente ações boas merecem recompensa. Mas seria possível tornar essa afirmação ainda mais forte e afirmar que ter praticado uma ação reprovável é condição suficiente da punibilidade (...) de um agente? As práticas morais e jurídicas gregas, anteriores ao Período Clássico, e as de algumas sociedades não-ocidentais, da Antigüidade aos dias de hoje, parecem ter respondido a essa questão com um sim muito simples, que nos soa à primeira vista até mesmo superficial e injusto. Não importa se as intenções de um indivíduo não eram más (...), nem se teria agido de outra forma caso tivesse sido capaz de prever as conseqüências do que fez ou de impedir a si próprio de praticar a ação que praticou. Nessas sociedades, basta que uma ação seja moralmente reprovável para que o agente seja, ipso facto, punível, independentemente de seu dolo ou sua culpa, no sentido jurídico preciso destes termos. (...)

Se fazer depender a punibilidade de um agente de uma única condição – o caráter reprovável de determinada ação – parece-nos hoje algo estranho, é porque a maioria dos sistemas jurídicos e morais contemporâneos introduziu uma condição suplementar. Esse pré-requisito suplementar e igualmente necessário da punibilidade, que o sistema jurídico ateniense incorporará pouco a pouco até sua plena explicitação nas práticas penais do Período Clássico, é o que eu chamarei, ao longo de todo este trabalho, o caráter voluntário de uma ação. Noutras palavras, um agente é punível somente se pelo menos duas condições são, ao mesmo tempo, satisfeitas: (i) sua ação é má e (ii) sua ação é voluntária. Se sua ação não for má, o agente poderá ser eventualmente passível de elogio ou não, mas certamente não de reprovação. Em contrapartida, se sua açaõ não for voluntária, ele não será punível. [53]

A ligação da voluntariedade com a responsabilidade moral fica clara ao constatarmos que somente as emoções e ações voluntárias são louvadas e censuradas, enquanto as involuntárias são perdoadas, e às vezes inspiram piedade. [54] Essa ligação também ocorre com a responsabilidade jurídica, já que para uma ação ser considerada injusta e ser punida é também necessário que ela seja voluntária. [55][56][57]

Como já deve ter ficado claro, Aristóteles está chamando a atenção para um conjunto de certezas admitidas na vida cotidiana (que há ações voluntárias, que ações de que não somos causa são perdoáveis, que excelência e vício são objeto de aprovação e censura etc.) que tentará "salvar". [58] Afinal, se seus opositores estiverem corretos, e não existirem ações voluntárias, não só não haveria mais sentido em falarmos de responsabilidade moral, em censurarmos ou louvarmos a atitude de alguém, como também muitas das nossas instituições jurídicas que se assentam na idéia de ação voluntária perderiam o sentido.

Uma última colocação antes de entrarmos, propriamente, na análise da teoria da ação voluntária de Aristóteles. É preciso, antes de tudo, delimitar o objeto de meu estudo. Como é sabido, Aristóteles desenvolveu sua teoria da ação voluntária em diversas obras versando sobre temas diferentes. Considerações sobre ela estão presentes nas suas obras de ética, metafísica, biologia e retórica. Obviamente, não tratarei de todas essas contribuições aqui. Embora só possamos ter uma visão realmente completa da sua teoria quando vislumbrada por todos esses ângulos, creio que uma análise centrada nas suas obras de ética, com algumas considerações da sua "Metafísica" e "Retórica", será suficiente para o fim que aqui me proponho.

Aliás, como muito bem adverte Bernard Williams: "(...) grave problems arise for the notion of the voluntary when we seek to deepen it [59]". Como já me referi anteriormente, o Direito opera sob uma base de pressuposições que são aceitas, e muitas vezes aprofundá-las em demasia não necessariamente trará alguma utilidade jurídica. Não é necessário oferecermos uma análise das condições biológicas e fisiológicas da ação voluntária [60] se, com isso, queremos obter alguma utilidade juridicamente relevante. Até porque, como novamente Williams enfatiza: "(...) the idea of the voluntary is an essentially superficial notion, which works on condition that one does not try to deepen it [61]".

Feita essa breve introdução, podemos passar para a análise da teoria da ação voluntária, tal como exposta por Aristóteles na "Ética a Nicômacos" [62] e "Ética a Eudemos". [63]

Da mesma forma que Aristóteles faz na "Ética a Nicômacos", começo analisando as ações involuntárias, para depois passar para as voluntárias, já que estas ocorrem na ausência das condições que determinam a involuntariedade da ação.

Aristóteles propõe que consideremos duas causas para o ato involuntário: a força e a ignorância. Cada uma delas interfere em uma das condições do movimento voluntário. No capítulo 3 da EN III, Aristóteles estabelece essas como sendo as seguintes: i) o princípio reside no agente e ii) ele tem conhecimento das circunstâncias da ação. A força é um princípio externo de movimento que interfere com o princípio interno de movimento, assim como a ignorância impede o conhecimento das circunstâncias. [64] Nesse sentido, Tomás de Aquino:

Lo voluntario conlleva el movimiento de la potencia apetitiva, que, a su vez, presupone el conocimiento de la potencia aprehensiva, pues el bien aprehendido mueve a la potencia o fuerza apetitiva. Ahora bien, algo es involuntario de dos maneras. De una, porque se excluye el movimiento de la potencia apetitiva. Es lo involuntario por violencia. De otra, porque se deja afuera el conocimiento de la potencia aprehensiva. Es lo involuntario por ignorancia. [65]

Com relação ao involuntário por violência, ou por coação, Aristóteles comenta que um ato é forçado quando sua origem é externa ao agente, sendo tal a sua natureza que o agente não contribui de forma alguma para o ato, mas, ao contrário, é influenciado por ele – por exemplo, quando uma pessoa é arrastada pelo vento, ou por outra pessoa que a tem em seu poder. [66]

O involuntário por violência é reconhecido pela tristeza e dor com que o ato é praticado. Aristóteles aqui procura rebater aqueles que consideram que os atos praticados tendo em vista algo prazeroso ou nobilitante tem força compulsiva, compelindo o agente de dentro para fora. Em primeiro lugar, se assim fosse, todos atos seriam forçados, pois é por causa desses objetivos que todas as pessoas fazem tudo. [67] Em segundo lugar: "(...) é tão absurdo atribuir a culpa às circunstâncias exteriores, em vez de atribuí-la a nós mesmos, por sermos facilmente levados por atrativos desta espécie, quanto atribuir-nos o mérito por atos nobilitantes, mas atribuir a culpa por atos ignóbeis aos objetivos agradáveis [68]".

Embora o argumento utilizado por Aristóteles pareça requerer que todo o ato involuntário seja penoso, não é difícil encontrar um contra-exemplo para essa exigência. Se um vento muito forte leva um navio sem condição de interferência dos tripulantes para uma ilha paradisíaca, muito provavelmente eles não ficarão contrariados. Podemos, entretanto, compreender a dor não como uma condição do involuntário, mas como algo que o acompanha sempre, servindo, portanto, de critério para o reconhecimento do involuntário. Ainda assim, temos que mostrar a ligação entre involuntariedade e dor de modo que a última sempre esteja presente quando o involuntário ocorre. Em uma passagem da "Metafísica", Aristóteles estabelece essa conexão. Ele está explicando os diversos sentidos da palavra "necessidade". O terceiro sentido é o seguinte:

Constituyen también lo necesario la violencia y la fuerza, es decir, lo que nos impide y detiene, a pesar de nuestro deseo y nuestra voluntad. Porque la violencia se llama necesidad, y por consiguiente la necesidad es una cosa que aflige (...). La necesidad envuelve la idea de algo inevitable, y con razón, porque es lo opuesto al movimiento voluntario y reflexivo. [69]

O necessário é doloroso porque é forçado e o forçado é assim chamado porque interfere no desejo e na escolha deliberada, ao opor-se a eles. Assim, não se diz que o involuntário é doloroso com respeito às suas conseqüências (ou seja, o resultado de um ato involuntário não precisa ser necessariamente doloroso), mas com respeito à sua causa. Quando uma força externa interfere no desejo ou na escolha deliberada de alguém, ela causa dor ao impedir que o desejado ou escolhido se concretize. Certamente, se o que for produzido pela força se revelar agradável, a dor será extinta. Ainda assim, o involuntário traz consigo uma disputa entre a força externa e o princípio interno, na qual a força externa é vencedora. E isso, diz Aristóteles, é doloroso.

Quanto ao fato de que algumas das coisas que nos movem o desejo sejam externas, Aristóteles considera ridículo responsabilizar as coisas e não o sujeito, enquanto paciente, por elas. Se as coisas externas são más, deve-se ao sujeito, enquanto paciente, a facilidade com que é capturado por elas. Aquilo que alguém deseja é algo que ele apreende como bom. Ora, se ele apreende algo mau como bom, não podemos culpar a coisa apreendida por tal erro, mas a disposição de caráter do sujeito que o tornou disposto a sentir certas emoções mais fortemente do que deveria, e somos responsáveis pela disposição de caráter que adquirimos. Por ora, entretanto, basta que reconheçamos que não são os objetos que exercem um poder sobre nós, mas nós que os apreendemos conforme nossa disposição. [70]

Além do mais, geralmente se pretende responsabilizar o agente por ser capturado pelas coisas boas e não responsabilizá-lo quando ele é capturado por coisas más. E isso não faz o menor sentido. Uma vez que o mesmo homem é causa tanto das ações belas quanto das desonrosas, é absurdo dizer que ele é responsável somente pelas belas, mas que as desonrosas são resultado de algo externo que age sobre ele. [71]

A segunda causa da involuntariedade de uma ação é quando essa é feita ignorando. Aristóteles esclarece que a ignorância aqui não é referente nem às ações em que o agente ignora seus interesses, pois não é a ignorância na escolha de um objetivo que torna uma ação involuntária (ela torna os homens perversos), nem a ignorância em geral (isto é motivo de censura), mas a ignorância em particular, das circunstâncias da ação e dos objetivos contemplados. [72] Em seguida, Aristóteles arrola essas circunstâncias: uma pessoa talvez ignore quem ela é, o que ela está fazendo, o instrumento, o efeito e a maneira. [73] "Além disto, a execução de um ato qualificado de involuntário por causa de ignorância desta espécie deve ser penosa e deve provocar pesar [74]".

No entanto, é preciso também diferenciar aquelas ações praticadas por ignorância das praticadas na ignorância, pois somente as primeiras são consideradas involuntárias. Segundo Aristóteles:

Agir por ignorância parece também diferente de agir na ignorância, pois se considera que uma pessoa embriagada ou encolerizada age não por ignorância, mas por uma das causas mencionadas, sem saber o que está fazendo, e na ignorância. [75]

A diferença entre uma ação por ignorância de uma ação em ignorância diz respeito essencialmente a se a falha epistêmica foi, ela própria, involuntária ou não. O exemplo a seguir, de Muñoz, é esclarecedor:

Suponhamos que alguém, num momento t1, pratica uma ação cuja conseqüência será a ignorância das CCA [circunstâncias e conseqüências da ação] que praticará em t2 – por exemplo, em t1 o agente embriaga-se. Nesse caso, a ação praticada em t2 é voluntária, já que a causa da ignorância em que essa ação foi praticada é uma ação voluntária do próprio agente, e não estamos diante de uma ação por ignorância, mas de uma ação em ignorância. A causa de tais ações é, portanto, uma ação moralmente reprovável, que, por sua vez, decorre do caráter vicioso do agente.(...) O mesmo ocorre com a ignorantia legis, no caso da legislação de que se supunha que o agente devesse estar a par naquele instante e que não era difícil de ser conhecida, bem como no caso da negligência ou imprudência. Em todos esses casos, estava no poder do agente não carecer da informação relevante para a prática de seu ato, de modo que ele devia, em t1, ter-se suprido de informações relevantes e suficientes para a prática da ação realizada em t2. [76]

Uma ação por ignorância é, portanto, aquela em que o agente escolheria agir de outro modo se tivesse sido capaz de prever suas conseqüências e se tivesse podido apreender corretamente todas as particularidades relevantes de sua ação, desde que tal ignorância não seja, ela própria, resultado de uma ação voluntária dele. [77] Um exemplo famoso de ação por ignorância e, portanto, involuntária, é o de Édipo, que desconhecia e não podia conhecer uma das circunstâncias da ação, ou seja, que aquele homem era seu pai. No entanto, embora com relação ao parricídio sua ação fosse involuntária (e o fato de ter sido acompanhada de arrependimento é mais uma prova disso), a situação muda de feição caso a descrevamos como um homicídio: nesse caso, sua ação foi voluntária. No mesmo caso, se Édipo soubesse que aquele homem era seu pai, mas, por culpa sua, estivesse bêbado, sua ação seria voluntária, já que a causa da sua ignorância era, ela mesma, voluntária. Segundo Tomás de Aquino:

Sin embargo, si somos la causa de la ignorancia, ésta será una ignorancia voluntaria y, entonces, por ella seremos castigados. Pero el hombre puede ser causa de su ignorancia de dos modos. De uno, directamente haciendo algo: como se ve en los que se emborrachan y, por esto, se vuelven ignorantes. Estos son increpados de dos maneras. Primero, porque se emborracharon. Segundo, por alguna falta que a partir de su ebriedad cometieron. Pues, el principio de la ebriedad está en poder del hombre mismo porque es dueño de no embriagarse, en su poder está no hacerlo. La causa de su ignorancia es la ebriedad. De esta manera, el hombre es la causa de su ignorancia.

De otro modo, el hombre es causa indirectamente de su ignorancia porque no hace lo que debe hacer. Esta ignorancia, de lo que debe saber y puede, es considerada voluntaria y, por ella, los hombres son castigados. A esto se refiere cuando dice que los legisladores castigan a los que ignoran lo que está establecido por la ley, que todos deben saber, por ejemplo, que no se debe robar, y no se trate de algo difícil por la minuciosidad de lo jurídico, que no todos logren saberlo porque no pudieran. Lo mismo ocurre en otros casos que los hombres parecen ignorar por negligencia, porque en su poder tenían el no ignorarlas. Pues son dueños de sí y tienen en su poder el ser diligentes y no negligentes. [78]

Assim, se temos poder sobre uma causa que nos fará ignorantes, a ação feita nessa ignorância é voluntária. Aristóteles, na "Ética a Eudemos", refina ainda mais o conceito de ação involuntária por ignorância:

Lo que se hace ignorando las personas, las cosas y los medios que se emplean, es involuntario, y lo contrario es voluntario. (...) Por lo contrario, todo lo que se hace ignorando lo que se hace, y por lo mismo que se ignora, debe considerarse como involuntario. Pero como el saber o el conocer puede entenderse en dos sentidos; en el de poseer la ciencia o en el de servirse actualmente de ella, el que posea la ciencia, pero que no la utiliza, puede en un sentido llamársele con razón ignorante, y en otro sentido no puede serlo fundadamente; por ejemplo, si por una negligencia culpable no se sirve de aquello que sabe. Recíprocamente también uno que no posee la ciencia, que no sabe, puede ser a veces reprendido con completa justicia, si por pereza, por abandonarse al placer o por temor a la pena, ha descuidado adquirir una ciencia, que le hubiera sido fácil y hasta necesario poseer. [79]

A primeira das distinções diz respeito à diferença entre ter conhecimento e usar conhecimento. A segunda refere-se a ter conhecimento e não o ter, mas poder tê-lo. Ambas distinções apontam para dois tipos de negligência: uma, a de não utilizar um conhecimento que possui (tinha-o potencialmente na memória, mas não fez uso dele), outra, a de não buscar um conhecimento que seria fácil obter. Em ambos os casos a ação é voluntária e passível de punição.

Poderia opor-se a Aristóteles que algumas pessoas são naturalmente negligentes, e que não estaria em poder delas serem diligentes. [80] Portanto, suas ações praticadas na ignorância seriam sempre involuntárias e o agente seria inimputável. Embora Aristóteles pudesse concordar que realmente muitas pessoas, pela prática repetida de certas ações, tenham se tornado intemperantes a ponto de não poderem praticamente controlar seus atos, o fato de ter estado em seu poder não ter se tornado intemperante, evitando praticar certas ações que o levariam a ter esse caráter, torna suas ações futuras igualmente voluntárias e passíveis de punição. Da mesma forma que anteriormente, a causa da sua intemperança é voluntária. Em sentido semelhante, Aquino fala que:

(...) los hombres que realizan obras injustas se vuelven injustos y los que cometen actos de lujuria se vuelven incontinentes. Luego, es irrazonable que alguien quiera realizar obras injustas y no quiera ser injusto, o quiera realizar actos licenciosos y no quiera ser incontinente. Empero, es claro que si, no ignorándolo, alguien obra voluntariamente, aquello de lo que se sigue que sea injusto, voluntariamente será injusto. [81]

Se, portanto, uma ação é involuntária quando o agente a pratica por coação ou ignorando, uma ação é voluntária quando essas duas condições são eliminadas. As condições da ação voluntária são, portanto, a origem interna do movimento — excluindo a primeira condição do involuntário — e o conhecimento das circunstâncias — excluindo a segunda condição do involuntário. Nas palavras de Aristóteles: "Sendo involuntária uma ação executada sob compulsão ou por ignorância, um ato voluntário é presumivelmente aquele cuja origem está no próprio agente, quando este conhece as circunstâncias particulares em que está agindo [82]".

O que significa, no entanto, que o princípio é interno ao agente? E o que significa conhecer as circunstâncias particulares em que está agindo? Ora, segundo Aristóteles, também animais e crianças agem voluntariamente [83] e, sendo assim, devem tanto possuir esse princípio como gozar desse conhecimento. O fato é que, apesar do significado de voluntário ser diferente em cada situação, a voluntariedade permanece uma e a mesma para homens e animais não racionais, uma vez que é definida pelas mesmas condições para ambos, a saber, o princípio é interno e eles têm conhecimento das circunstâncias. No entanto, o tipo de princípio interno e o tipo de conhecimento das circunstâncias em cada caso é distinto. O princípio interno nos homens é uma potência racional, na medida em que envolve conhecimento racional. O mesmo não ocorre para os animais, pois eles dispõem, na determinação de seus movimentos, somente de uma potência não racional. Assim, se as condições da voluntariedade são as mesmas, elas diferem em cada caso, na medida em que envolvem capacidades distintas para animais e homens. Isso é assim ainda que encontremos desejos nos homens do mesmo tipo que os desejos que encontramos em animais. Está na capacidade cognitiva, na sua potência racional, o que os diferencia dos animais. O princípio interno do movimento envolve ambas as capacidades, a cognitiva e a desiderativa. Tanto que é possível para o homem determinar-se a agir tanto por deliberação quanto a partir de desejos não deliberados. No primeiro caso, age-se devido a razões e a partir de um raciocínio. O objeto de busca ou evasão, isto é, o objeto do desejo, é julgado como bom. No segundo caso, aquilo que afeta o sujeito como bom é tomado como o objeto do desejo, mas ele não delibera sobre as razões para considerá-lo, de fato, bom. Isso não significa que não poderia tê-lo feito. Tendo a capacidade racional, tal sujeito poderia ter deliberado a partir de seu desejo e poderia, nesse caso, ter abandonado, se encontrasse razões para fazê-lo, tal busca ou evasão. Assim, aquele que age a partir dos desejos apetitivos e impulsivos não é totalmente impotente com respeito a eles. Se o fosse, estaria fora do domínio moral, pois teria uma disposição bestial. Assim, a responsabilidade que temos sobre as ações resultantes do apetite e do impulso repousa na capacidade que temos para controlar tais desejos.

Se, então, negamos que as ações resultantes somente do apetite e do impulso sejam voluntárias, sob a alegação de que não envolvem deliberação, deveríamos negar igualmente que os animais e as crianças ajam voluntariamente, uma vez que esses agem meramente devido a tais desejos. Se não aceitamos essa conclusão, então devemos admitir que tais ações são voluntárias. Porém, do fato de que não está ao alcance de animais e crianças abandonar tais desejos ou controlar as ações deles resultantes, não se segue que o mesmo seja válido para os homens. Esses, dispondo da capacidade racional, podem agir ou não de acordo com tais desejos. Portanto, um homem que está plenamente desenvolvido na sua capacidade racional é moralmente responsável por agir devido a esses desejos.

Aceitando, entretanto, que os atos apetitivos e impulsivos sejam involuntários, que sentido haveria em deixar de responsabilizar os homens por tais atos? Existem coisas que é correto desejar por serem boas, ainda que esse desejo seja um apetite ou impulso. Porém, se tanto as ações boas quanto as más são provenientes do mesmo tipo de desejo, não é possível dizer que das más não somos responsáveis, porque são provenientes do apetite e do impulso, mas que das boas somos, pois essas são igualmente provenientes do apetite e do impulso. Assim, se queremos responsabilizar os atos bons feitos devido a esses desejos, temos que poder responsabilizar também os atos maus devidos a eles. [84]

Com relação ao conhecimento das circunstâncias, é necessário não confundi-lo com deliberação ou conhecimento racional. Esses dois só estão presentes nos homens, mas as crianças e animais não racionais agem de forma voluntária porque o tipo de conhecimento nesses casos é diferente. Enquanto os homens realizam suas ações reconhecendo, judicativamente, que o que estão fazendo é bom, ou seja, realizam ações por serem boas, reconhecendo-as proposicionalmente como tais, os animais e as crianças não desejam algo por ser bom, mas porque o apreendem desse modo. [85] O conhecimento, neles, é perceptivo. [86] É por isso que somente os homens são capazes de responder moralmente por suas ações. Somente eles têm o conhecimento judicativo da ação e do fim. Com efeito, responsabilizamos os seres humanos não apenas pelas ações que efetivamente realizam, mas pelos juízos que as determinam. Ora, é justamente nesses juízos que reside a intencionalidade das ações humanas.

Resta esclarecer quando uma ação voluntária será também responsável, já que o voluntário não é necessariamente sinônimo do responsável, tanto assim que, como já foi dito, também animais e crianças agem voluntariamente, mas não responsavelmente. Que elemento distintivo está presente nos homens adultos que os tornam passíveis de responsabilização? A capacidade de deliberação. [87] Segundo Aristóteles:

Llamo capaz de deliberar a aquella facultad, respecto de la que la deliberación es el principio y la causa, y que hace que se desee una cosa, porque se ha deliberado sobre ella. Esto nos explica por qué la intención acompañada de la preferencia no se encuentra en los demás animales, y por qué el hombre mismo no la tiene en todas las edades ni en todas las circunstancias. [88][89]

Segundo a explicação de Inara Zanuzzi, [90] a responsabilidade moral sustenta-se sobre dois eixos peculiares ao agir dos animais: a capacidade para determinar um movimento a partir de uma tendência interna e o conhecimento — ou capacidade discriminativa — envolvido nessa determinação. Assim, em primeiro lugar, é preciso que se deseje ou escolha fazer uma ação para que se possa ser apropriadamente dito autor dela. Em segundo lugar, é preciso que a ação realizada corresponda à representação — judicativa, no caso dos homens, e sensitiva, no caso dos animais não racionais e crianças — que dela faz o agente, pois cada um será responsável pela ação que saiba estar fazendo.

Tais condições, entretanto, devem ser qualificadas para que efetivamente gerem ações moralmente responsáveis. Com efeito, somente se qualificadas, as poderemos distinguir dos movimentos moralmente não responsáveis efetuados pelos animais não racionais e pelas crianças. Ora, o que distingue animais de homens é a capacidade racional desses últimos. Será, pois, essa capacidade que fará dos homens seres moralmente responsáveis. Todavia, ela não é uma condição ulterior que é acrescentada às condições acima, mas sim o modo peculiar como essas condições são atualizadas nas ações humanas.

Devemos determinar, entretanto, o que exatamente falta aos animais para que os consideremos responsáveis. Em primeiro lugar, ainda que o movimento dos animais tenha origem em seu desejo, que é um princípio interno, eles não podem agir senão segundo esse desejo. Em outras palavras, os animais não são livres para não buscar algo que desejem. Os homens, então, devem dispor tanto da capacidade de abandonar um desejo quanto da capacidade para agir em busca da sua realização. Em segundo lugar, não podemos responsabilizar moralmente os animais, pois eles não se determinam a agir segundo um juízo de acordo com o qual algo é considerado bom. E eles não o fazem porque são incapazes de compreender o que bom e mau significam e, portanto, tampouco são capazes de agir bem ou agir mal. Com efeito, é preciso julgar racionalmente o valor das ações e ser capaz de agir segundo esse juízo — ou seja, agir intencionalmente — para que a própria ação seja considerada boa ou má.

É dessa forma, pois, que a capacidade racional torna os homens moralmente responsáveis. Por um lado, a capacidade racional é uma potência para os contrários. Assim, quando os homens apreendem racionalmente o objeto de seu desejo, eles podem tanto buscá-lo quanto abandoná-lo. Os animais, ao contrário, apreendem o bem ou o mal nos seus desejos em virtude de uma potência natural, a sensação. Eles não podem, por isso, senão buscar o que desejam. Por outro lado, é a capacidade racional que permite aos homens agir intencionalmente, ou seja, agir por ser a ação boa.

Ora, é na deliberação que a capacidade racional prática é exercida. É nesse procedimento de investigação racional que um objeto desejado como fim da ação é, eventualmente, descoberto não ser bom — por exemplo, se toda ação feita para obtê-lo é uma má ação. Ao escolher a partir do que é descoberto na deliberação, o homem pode tanto determinar-se a fazer a ação em vista do fim quanto a abandoná-la, pois ambas as alternativas estavam abertas para ele. Além do mais, é também na deliberação que as razões da bondade ou da maldade dos objetos é investigada. Ao agir a partir da escolha deliberada — isto é, o desejo que segue a deliberação —, os homens agem devido a razões. Portanto, a escolha deliberada é o princípio das ações propriamente livres e propriamente intencionais.

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Um agente, portanto, é responsável por sua ação somente se (i) o princípio da ação estava nele, (ii) conhecia as circunstâncias e conseqüências da ação e (iii) era capaz de deliberar sobre ela (mesmo se, de fato, não o fez). Se isso é certo, então "estar em poder do agente agir ou não agir" é logicamente equivalente a "ser capaz de deliberar [91]". É a presença, no agente, da possibilidade de ter deliberado que determina sua responsabilidade perante uma ação e uma disposição voluntárias. O que distingue, portanto, animais e crianças de adultos não é tanto ter um determinado conhecimento, mas poder ter e adquirir estados de caráter. A diferença não está necessariamente na atualidade, mas na potência: um animal e uma criança não podem deliberar como um adulto, que pode deliberar e adquirir um certo caráter (ele sabe que se repetir uma má ação ela irá gerar, no final, uma disposição de caráter que tornará quase automática sua repetição e da qual será difícil se desvencilhar mais tarde. Essa presença de uma capacidade de prever as conseqüências da ação, inclusive com respeito à formação do caráter, é que torna esse agente responsável ou não). [92]

Esse ponto é muito interessante em Aristóteles. Segundo ele, o agente só delibera bem se possui uma boa disposição de caráter. A sua escolha refletirá o seu caráter. [93] Esse é adquirido pela repetição de certas ações: se forem más, gerarão um caráter vicioso; se forem boas, gerarão um caráter virtuoso. Esse aprendizado moral ocorre ao longo do desenvolvimento do agente: quando criança, quando ele ainda não possui uma capacidade racional para considerar uma ação como sendo boa ou má, deve ser elogiado ao praticar aquelas e censurado ao praticar estas. Isso gera nele uma motivação emocional para agir nesse sentido. Aqui, as ações são feitas sem reflexão ou deliberação, embora voluntariamente. À medida que sua faculdade cognitiva é desenvolvida, ele pode dar razões para agir desta ou daquela maneira. Ele é, então, senhor de seus hábitos, pois suas emoções e sentimentos deverão submeter-se às suas melhores razões para agir. Como as emoções têm um aspecto cognitivo, elas preparam o caminho para as boas razões. No homem bem formado e que dispõe de sabedoria prática, as razões passam a ter primazia sobre as emoções. São essas que, agora, conformam-se àquelas. Assim, com a sua evolução, ele passa a ser capaz de abandonar hábitos e vícios.

O agente é propriamente responsável por sua virtude quando passa a escolher deliberadamente em vista de sua concepção, formulada racionalmente, do que é agir bem. Nesse momento, a cada ação escolhida, ele admite ser o tipo de pessoa para a qual aqueles valores são importantes. Ele não pode ser considerado irresponsável pelos maus valores que assume, ainda que já não seja possível para ele agir de modo diferente. Entretanto, uma má disposição sempre pode ser modificada, embora isso seja difícil. Não é impossível, porque o agente compreende racionalmente sua ação e pode escolher tanto fazê-la quanto deixar de fazê-la. [94] Assim, segundo Inara Zanuzzi:

Certamente, se o agente não tem uma boa concepção da felicidade, ele não irá deliberar bem. A boa deliberação, entretanto, deve ser acompanhada da boa disposição de caráter para que a escolha seja feita conforme à deliberação. Uma vez, porém, que nossas disposições de caráter, adquiridas pelo hábito, podem também determinar nossas ações, nem sempre haverá duas opções abertas, de fato, para o agente, pois ele poderá estar já psicologicamente determinado a agir antes de um modo do que do outro.

Se nos perguntarmos, então, em que medida o agente é responsável pela sua concepção da felicidade, teremos que ele o é de duas maneiras. De um lado, o agente é responsável pelo seu conhecimento. Segundo Aristóteles, ninguém é desculpado pela ignorância de algo que deveria saber. Assim, se ignora que certos fins são valiosos por eles mesmos, ou se ignora que certo modo de realizar seus fins é errado, ele será considerado responsável por tal ignorância. Por outro lado, o agente é responsável, ao menos parcialmente, pela sua disposição de caráter. É a disposição de caráter que faz com que ele seja negligente com esse tipo de conhecimento. Porém, a sua disposição de caráter também faz com que ele procure fins menos valiosos ou os realize de modo incorreto, na medida em que as nossas emoções estão envolvidas nessas buscas e as escolhas e as disposições de caráter dizem respeito tanto às ações quanto às emoções. Ora, o agente é responsável pela sua disposição de caráter, pois essa é adquirida e ele realiza voluntariamente as ações que constituem tal aquisição. E, num estágio em que ele seja capaz de compreender racionalmente sua ação, será responsável pelo aperfeiçoamento ou correção de um hábito adquirido. Os hábitos são difíceis de mudar, o que não significa que seja impossível fazê-lo. O agente capaz de reconhecer que age incorretamente não será desculpado por permanecer agindo assim. Todavia, se ele continua agindo erradamente, sabendo o que faz, então seria irracional dizer que ele não deseja ser alguém dessa qualidade moral. Logo, ele é responsável, ao menos parcialmente, por sua disposição de caráter [95].

Por fim, falta analisar um último tipo de ação, que não é nem totalmente voluntária, nem totalmente involuntária: a ação mista. Aristóteles dá como exemplo as ações praticadas em conseqüência do medo de males maiores ou com vistas a algum objetivo elevado [96] (por exemplo, se um tirano, tendo em seu poder os pais e filhos de uma pessoa, desse ordem a ela para praticar uma ação ignóbil, condicionando a vida dos reféns a essa prática, ou o capitão de um navio que, para salvar sua vida e da tripulação, deve lançar toda a carga do navio ao mar). Embora essas ações sejam mistas, elas se assemelham mais às voluntárias, pois são objeto de uma escolha no momento em que são praticadas.

Com efeito, nos atos em questão a pessoa age voluntariamente, pois a origem do movimento das partes instrumentais do corpo em tais ações está no agente, e quando a origem de uma ação está numa pessoa, está no poder desta pessoa praticá-la ou não; estas ações, portanto, são voluntárias, embora talvez sejam involuntárias se consideradas de maneira global, pois ninguém escolheria qualquer destes atos por si mesmos. [97]

Em que medida podemos dizer que um agente contribui para o princípio de uma ação que é ela mesma indesejável, mas que é feita tendo em vista evitar males maiores ou buscar bens superiores? Parece que tal ação não depende do agente para ocorrer, pois o fim não é a ação mesma e ela não é desejada. A necessidade de fazer tais ações é derivada do objetivo almejado: evitar um mal maior ou alcançar um bem. Assim, o agente não contribuiria para o princípio da ação, visto que não a deseja. Podemos, então, alegar que a ação não é determinada pelo próprio agente, mas é imposta a ele.

Essas ações, não sendo desejadas por elas mesmas e, mais do que isso, sendo indesejadas por elas mesmas, são dependentes do desejo do fim pelo qual são feitas. Elas poderiam, então, ser consideradas mistas, pois são, nelas mesmas, indesejadas e são, tendo em vista o fim, desejadas.

Por outro lado, há algo que faz com que devamos considerá-las sobretudo como voluntárias. Em primeiro lugar, elas são escolhidas. Ainda que, se alguém pretende alcançar o fim, não lhe reste alternativa senão realizar a ação, está aberta para uma tal pessoa a possibilidade de não fazer a ação, desde que esteja disposta a abandonar o fim. Assim, se tal pessoa age, ela o faz tendo escolhido essa alternativa ao invés daquela que propunha a não realização do fim.

Permanece, ainda assim, o fato de que a ação não é desejada como um fim em si mesma. No entanto, isso não serve como razão para considerá-la involuntária, pois toda a ação é feita com vistas ao fim quer esse seja idêntico a ela, quer seja diferente. Ora, o fim é determinado de acordo com as circunstâncias em que se encontra o sujeito. Por isso, não podemos considerar a ação voluntária ou involuntária senão na sua relação com a situação em que ocorre. E não podemos tampouco objetar que, no caso das ações mistas, não provém do sujeito a necessidade de realizar o fim, que é algo externo apresentado pela situação em que se encontra. Pois, sendo o fim de toda ação adequado ao momento em que ela deve ocorrer, a necessidade de realizá-lo sempre depende de algum modo da situação em que se encontra o sujeito.

Sendo assim, é no momento em que a ação é feita que ela pode ser dita voluntária ou involuntária, e não sem outras considerações. Pois é somente de acordo com as circunstâncias que é possível determinar o fim da ação e, portanto, qual é a contribuição do agente para o fim e, conseqüentemente, para a própria ação. [98]

Se o desejo do fim é determinado pelo momento oportuno e se a ação que permite alcançar esse fim é escolhida tendo em vista ele, então o movimento do corpo que constitui tais ações depende tanto do desejo do fim quanto da ação escolhida e, portanto, depende do agente. Assim, o princípio do movimento "reside no próprio agente", não sendo externo a ele. Tal ação é, portanto, voluntária.

Para julgar corretamente a voluntariedade ou a involuntariedade das ações devemos, portanto, sempre levar em conta o fim em vista do qual são feitas numa determinada situação, ao invés de tomá-las nelas mesmas. Se nos detivermos somente na ação, isto é, desconsiderando o seu fim, teremos a impressão de que as ações mistas são realizadas involuntariamente. Com efeito, tais ações são, consideradas nelas mesmas, involuntárias, pois não são escolhidas por si mesmas; com respeito ao fim, porém, que é o que deve ser considerado, elas são voluntárias. [99]

Em um trecho da Ética a Eudemos, Aristóteles fala do mesmo assunto com um pouco mais de refinamento. Segundo ele:

Siempre que se trata de cosas que depende de nosotros el hacerlas o no hacerlas, desde el momento que se hacen, aunque sea no queriéndolas, se hacen libremente y no por fuerza. Respecto a las cosas que, por lo contrario, no dependen de nosotros, puede decirse que hay una coacción, si bien no una coacción absoluta, puesto que el ser mismo no escoge lo que hace precisamente, sino que sólo escoge el fin en cuya vista obra como obra. [100]

Assim, é possível dizer que, toda vez que alguém é obrigado a praticar uma ação que jamais seria praticada por ela mesma, mas apenas tendo em vista a finalidade que decorre de sua prática (bem ou mal menor), esse alguém age por, como conceitua Muñoz, [101] coação "moral". Para que Aristóteles possa introduzir a distinção entre coação pura e simples e coação moral, é preciso que uma semelhança e uma diferença estejam presentes entre ambas as classes de ação por coação. Segundo Muñoz:

A semelhança reside no fato de que o agente, tanto no caso das ações por coação pura e simples quanto naquelas por coação moral, não tem em seu poder agir diferentemente: num caso, por uma causa externa que impede que sua ação seja diferente, no outro, por uma necessidade hipotética que impede que, tendo sido feita a escolha por esta ou aquela finalidade, a ação a praticar seja diferente. Assim, no caso da ação por coação moral, a escolha existe ainda ("é-lhes possível não fazer, mas padecer aquele sofrimento") e pesa sobre a finalidade da ação ("não escolhe aquilo que faz, mas a finalidade"). Uma vez essa finalidade estabelecida, não há mais escolha para o agente e não está mais em seu poder agir de outro modo. Uma necessidade hipotética forte estabelece-se entre a finalidade e a conduta a ser seguida, de modo que não há cursos alternativos de conduta a serem escolhidos, que causem um mal menor. Tanto o agente coagido simplesmente quanto o coagido moralmente sofrerão, nesse momento, a impossibilidade de agir diferentemente, e não estará em seu poder fazer de outro modo. A diferença está apenas no fato de que, no caso da ação coagida simplesmente, ela (e sua finalidade) é causada por um princípio exterior, ao passo que, na ação por coação moral, a finalidade é determinada pelo próprio agente. Nos dois casos, contudo, a conduta não pode ser alterada. [102]

A exposição da teoria da ação voluntária de Aristóteles foi breve, e não conseguiu abarcar toda a complexidade da mesma que, como já referi, pressupõe uma análise detalhada também das suas obras de biologia e metafísica. Para os propósitos desse trabalho, no entanto, creio que o que foi dito é suficiente para entendermos, na sua essência, o que Aristóteles quis dizer. Acima de tudo, deve ter ficado claro que seus questionamentos não são, para nós, anacrônicos, marcados por um contexto histórico e cultural que condicionou de tal forma seu trabalho que não haveria para nós, atualmente, nenhuma utilidade, e muito menos jurídica, em deter-se em seu pensamento. Não só a sua teoria é perfeitamente coerente com nossas intuições mais básicas, como compatível e semelhante com qualquer teoria contemporânea de ação voluntária e, provavelmente, inclusive, mais refinada que essas. Igualmente, seus pressupostos também são compatíveis com qualquer teoria jurídica da responsabilidade civil [103] que leve em conta fatores como culpa e nexo de causalidade.

Creio que no decorrer do trabalho ficará claro de que forma muitos institutos jurídicos podem ser explicados pela teoria da ação voluntária aristotélica. Além dessa função teórica, no entanto, a teoria de Aristóteles pode ajudar a resolver alguns problemas especificamente jurídicos. A fim de fazer isso, obviamente, é necessário matizá-la com algumas considerações jurídicas, já que a teoria da ação voluntária de Aristóteles está ligada, precipuamente, à responsabilidade moral, não jurídica. [104] Procurarei fazer essa transição, principalmente, no ponto 2.1. Antes disso, abordarei no próximo capítulo de que forma relacionam-se a teoria da ação voluntária e a vulnerabilidade.

1.2 Vulnerabilidade e tutela do consumidor

Os mortais não devem aspirar na vida a uma conduta perfeita em demasia, pois na realidade não conseguem sequer armar exatamente o teto que lhes cobre as casas. [105]

A análise da teoria da ação voluntária de Aristóteles não pode nos fazer esquecer um outro elemento importantíssimo para a definição completa do ser humano: a sua vulnerabilidade. Se, como Aristóteles muito bem demonstra, uma das certezas cotidianas mais evidentes é o fato de nossas ações serem voluntárias, e sermos responsáveis por elas e por suas conseqüências, é igualmente verdade que qualquer teoria moral séria deve salvar a idéia da vulnerabilidade como um elemento constitutivo do homem. E, embora nem Aristóteles nem nenhum outro pensador grego tenham se referido especificamente à vulnerabilidade nesses termos, discussões profundas sobre ela e seu impacto no homem e nas suas ações já estavam presentes na literatura (especialmente nas tragédias) e na filosofia gregas. Uma visão sobre a nossa passividade frente ao destino, nossa incapacidade de controlar nossas vidas completamente, nossa fragilidade decorrente de relações sociais conviviam lado a lado com o seu oposto, uma filosofia que sustentava a absoluta independência do homem a seu meio e erigia como modo de vida ideal um despojado de relações que poderiam fragilizá-lo. É o que nos diz Martha Nussbaum:

A raw sense of the passivity of human beings and their humanity in the world of nature, and a response of both horror and anger at that passivity, lived side by side with and nourished the belief that reason’s activity could make safe, and thereby save, our human lives – indeed, must save them, if they were to be humanly worth living. [106]

Segundo ela, a visão do ser humano como essencialmente vulnerável remonta a Píndaro. Píndaro afirmava que a felicidade de uma pessoa é como uma planta jovem: algo crescendo no mundo, frágil, constantemente necessitando de alimento do exterior. Nós também, segundo ele, precisamos de coisas que não dependem de nós para nos desenvolvermos: nascer com capacidades adequadas, viver em circunstâncias sociais e naturais propícias, não ser abatido por catástrofes abruptas, desenvolver associações seguras com outros seres humanos. Assim:

Our openness to fortune and our sense of value, here again, both render us dependent on what is outside of us: our openness to fortune, because we encounter hardships and can come to need something that only another can provide; our sense of value, because even when we do not need the help of friends and loved ones, love and friendship still matter to us for their own sake. [107]

Essa descrição do homem não guarda nada de pejorativo. Muito pelo contrário, segundo Nussbaum, essa descrição de Píndaro "suggest that part of the peculiar beauty of human excellence just is its vulnerability. The tenderness of a plant is not the dazzling hardness of a gem [108]".

Essa visão batia-se frontalmente com a de Platão, para quem o ser humano deveria almejar a auto-suficiência, procurar eliminar fontes de vulnerabilidade, como as relações de amor, afeto e amizade (philia). Para Platão, segundo a interpretação crítica de Nussbaum:

If an agent ascribes intrinsic value to, and cares about, more than one activity, there is always a risk that some circumstances will arise in which incompatible courses of action are both required; deficiency therefore becomes a natural necessity. The richer my scheme of value, the more I open myself to such a possibility; and yet a life designed to ward off this possibility may prove to be impoverished. [109]

Assim, Platão procura construir a imagem de um homem que não pode ser afetado pelo mundo. As circunstâncias adversas do seu meio não influem na sua vida. [110]

A tensão entre essas duas visões é sistematizada dessa forma por Nussbaum:"(...) how far is a human being like a plant (or a non-rational animal), how far like a god or a solid immutable form? How far are we passive towards the world, and what is the relationship between passivity or receptivity and activity in a human life? How much vulnerability or passivity is compatible with worth and goodness? [111]". Segundo a autora, Aristóteles, através da sua teoria da ação, [112] que engloba tanto animais não racionais como seres humanos, oferece uma resposta melhor a esse problema. Segundo ele, o erro dos pensadores anteriores era não terem desenvolvido uma boa teoria da ação: "so it will take an explicitly corrective philosophical account to return us to that complexity, telling us why our passivity is not such as to remove us from ethical assessment, why our animality is not incompatible with our aspirations to goodness [113]".

Assim, tanto uma quanto outra visão, apesar de possuírem, ambas, alguns elementos de verdade, não dão conta da complexidade de nossas vidas. As visões tanto de Píndaro como de Platão não têm correspondência com nossas certezas cotidianas mais profundas, sem as quais nossas vidas simplesmente careceriam de sentido. Píndaro esquece que, embora nós, seres humanos, muito nos assemelhemos a formas de vida inferiores, nos diferenciamos em um aspecto crucial: possuímos razão. Podemos deliberar e escolher, fazer um plano de vida no qual fins estão hierarquizados, e decidir ativamente o que deve ser valorizado e o quão valorizado. [114] E Platão imagina um ser humano que se parece muito mais com um deus. [115] Sendo o que somos, nós não só não podemos atingir esse ideal, como também não conseguimos ver como valiosa uma vida que deixa de fora algumas das coisas que mais valorizamos, como relações de amizade e amor. Segundo Nussbaum, "(...) complete invulnerability is purchased (...) at too high a price: by imagining (as does the Platonist) a life bereft of certain important values; or by doing violence (...) to our beliefs about activity and its worth [116]".

A visão de Aristóteles [117] parece corresponder às nossas intuições mais básicas. Efetivamente, a vulnerabilidade é um fator marcante das nossas vidas do início [118] ao fim. Creio que ela pode se manifestar de duas formas, relacionalmente (externa) e "em si" (interna). [119] A relacional é decorrente do fato de não sermos auto-suficientes, não bastarmos a nós mesmos em vários aspectos, pois necessitamos tanto de relações pessoais como de bens externos. Ora, um componente indissociável de agir no mundo é o risco; através da atividade nos tornamos vulneráveis. Para sermos completos temos que agir, mas essa ação nos expõe à vulnerabilidade. Ela é interna quando decorrente de uma incapacidade de agir, quando não dispomos de maturidade suficiente para compreender o mundo, e nossas ações não são consideradas responsáveis. É a vulnerabilidade que se manifesta tanto em crianças quanto em amentais, por exemplo.

O Direito possui relações com ambas. [120] Com relação à externa, ele atua tanto procurando nos proteger uns dos outros através de leis que punam assaltos, assassinatos, estupros etc, [121] quanto regulando nossa ação no mundo, por exemplo, ao fazermos contratos, que existem porque necessitamos de algo exterior a nós. [122] Se agimos no mundo, é porque não bastamos a nós mesmos, e o Direito, em alguns casos, age sobre essa atuação, regulando a forma como essa cooperação deve ocorrer e tutelando aqueles que são vulneráveis. Com relação à interna, ela fica clara na proteção que dá àqueles que não podem se autodeterminar, ou seja, os incapazes e os relativamente capazes, [123] não os responsabilizando, por exemplo, por seus atos ilícitos.

A vulnerabilidade também pode ser tanto absoluta quanto relativa. É absoluta quando é sinônimo de incapacidade de agir, quando o agente não pode ser imputado por seu ato. Além dos juridicamente incapazes já citados, essa vulnerabilidade também está presente em alguns vícios do negócio jurídico, como o dolo e a coação absoluta. Ela é relativa quando convivem no agente tanto a responsabilidade por seus atos quanto uma relativa incapacidade para agir responsavelmente. Esse é o caso daqueles que são formalmente capazes de acordo com a definição do Código Civil, mas que, em decorrência de certas circunstâncias ou do status que ocupam, estão em uma posição de grande vulnerabilidade. Nesse campo poderia se enquadrar tanto os trabalhadores quanto os consumidores. É a vulnerabilidade dessa última categoria que me interessará aqui.

Antes de entrar especificamente na análise mais detalhada da vulnerabilidade jurídica, gostaria de fazer um breve comentário sobre o porquê da necessidade de haver uma legislação protetiva como o Código de Defesa do Consumidor e quais as características diferenciadoras desse regime com relação ao regime civil. Ou seja, quais são os pressupostos que são afastados para não haver a incidência do Código Civil, mas sim a de um código com uma racionalidade diferente.

Como é sabido, no campo negocial um dos princípios basilares, ligado diretamente à autonomia privada, é o de que as partes são responsáveis pela sua conduta. Esse princípio, além da auto-responsabilidade [124] dos próprios contratantes, decorre também da proteção da confiança do outro contratante ou da tutela a sua própria autodeterminação. A responsabilidade por nossas ações com conseqüências danosas aos outros decorre, no mais das vezes, do mau uso de nossa liberdade. Ou seja, há uma auto-responsabilidade no que concerne à nossa maneira de agir no mundo. É nesse sentido que se afirma que devemos suportar os prejuízos decorrentes da maneira irresponsável de nos comportarmos. Ou seja, o exercício da autonomia é indissociável de uma série de ônus que a ela está ligada, como conseqüência natural da liberdade de ordenar juridicamente seus interesses. O que Emílio Betti comenta a respeito disso é esclarecedor:

Para evitar, portanto, que a eficácia do negócio se estenda para além dos limites previstos, incumbe à parte um exercício vigilante e sagaz da autonomia, que o direito lhe reconhece, é certo que em sua vantagem, mas também a seu próprio risco. Na verdade, à iniciativa privada, na medida em que é livre, está ligado um risco pelo uso lento ou incauto que dela se faça: risco que o direito coloca, como é justo, a cargo da parte inerte ou pouco cautelosa. Os indivíduos são livres de agir de acordo com as suas vantagens, segundo o seu modo de ver; mas as conseqüências eventualmente onerosas ou danosas de um uso errado da iniciativa desenvolvida estão a cargo só deles (...). O negócio jurídico, pela sua relevância social e pelo seu caráter vinculativo, é um instrumento perigoso, que só deve ser posto em movimento por determinadas razões (...). A parte que o pôs em atividade, vê-se na necessidade de suportar, só ela, o dano da inércia ou da negligência própria, na medida em que ela lhe é imputável: necessidade a que, para não se confundir com a responsabilidade para com a contraparte, pode, apropriadamente, chamar-se "auto-responsabilidade" (por culpa própria). [125]

Joaquim Ribeiro também é enfático na ligação entre autodeterminação (que, para ele, é o suporte da autonomia privada) [126] e auto-responsabilidade:

(...) se pode dizer da autodeterminação que vem sempre acompanhada pela auto-responsabilidade, porque o campo da primeira é também potencialmente o campo da segunda, porque o exercício da primeira dá azo, não só a autovinculações, mas também a imputações de resultados jurídico-negociais, como forma de responsabilidade pela declaração. Quando, neste último caso, o sujeito fica obrigado a um efeito que não quis, ele produz-se, sem dúvida, na área deixada à autodeterminação, é constitutivamente desencadeado por um acto que a pretende exercitar, mas que, por causas imputáveis ao agente, vê frustrado o seu objectivo regulador. Ele é, do ponto de vista da autodterminação, um acto falhado, pelo que esse princípio não pode fundar os seus efeitos. Quando, não obstante, eles se mantêm de pé, isso deve-se à actuação vigilante do princípio correlativo da auto-responsabilidade, tutelador da autodeterminação e da confiança da contraparte. [127]

Assim, no âmbito reservado à autonomia privada, compete a cada um zelar pela defesa dos seus interesses, tendo, em conformidade, que arcar com as eventuais conseqüências desvantajosas da forma menos diligente ou ponderada como exerceu a tarefa conformadora que lhe cabe ou, até, da renúncia em participar ativamente na modelação do conteúdo do contrato. [128] No entanto, todas essas considerações não são totalmente, nem na maior parte, válidas no caso do Direito do Consumidor, onde a exigência de diligência é muito menor do que nos outros ramos do Direito Privado. Não há, ali, um ônus de prudência com todas as suas conseqüências como nos outros campos do agir negocial. Em regra, praticamente todos os ônus incumbem quase que exclusivamente ao fornecedor, tendo o consumidor uma posição praticamente passiva frente ao negócio. Isso necessita uma justificação, já que, como muito bem colocam Atiyah e Smith, "the law is reluctant to allow a direct plea that a contract should be set aside because one party was in a vulnerable or weak bargaining position. All persons over the age of eighteen and of sound mind are generally treated as of equal capacity for the purposes of contracting [129]".

A justificativa para essa tutela não é de todo estranha ao Direito, que está acostumado a proteger aqueles que não podem autodeterminar-se, estão numa posição de fragilidade ou não podem, naquele momento, agir de outra maneira. Segundo Enzo Roppo:

Uma regra elementar do jogo contratual é esta: aquele que assume compromissos, no âmbito de uma operação económica que pretende levar a cabo, deve estar em condições de avaliar as suas conveniências, de modo razoavelmente correcto, sem que intervenham elementos tais, que perturbem ou alterem gravemente o processo conducente à decisão de concluir o contrato e de o concluir com determinado conteúdo. Se não existem, pelo menos, estes pressupostos de sensatez e de racionalidade das decisões contratuais, não parece oportuno, nem justo, manter o contraente vinculado às mesmas. [130]

A justificativa para que algumas relações privadas abram-se em uma medida maior para uma intervenção estatal está bem explicada em Konrad Hesse. Para ele, é necessário que a autonomia privada venha acompanhada de certos pressupostos fáticos, e, na ausência destes, é necessário uma intervenção equilibradora da situação:

La autonomía privada y su manifestación más importante, la libertad contractual, encuentran su fundamento y sus límites en la idea de la configuración bajo propia responsabilidad de la vida y de la personalidad. Presuponen una situación jurídica y fáctica aproximadamente igual de los interesados. Donde falta tal presupuesto, y la autonomía privada de uno conduce a la falta de libertad del otro, desaparece todo fundamento y se traspasa todo límite; el indispensable equilibrio debe entonces ser encontrado por otra vía, la de la regulación estatal, cuya eficacia frecuentemente requiere una conexión de preceptos de Derecho Público y Privado. [131]

Assim, enquanto no regime contratual clássico as partes ficavam vinculadas ao contrato e responsabilizadas pelo seu conteúdo mesmo que contra a sua vontade, porque se pressupunha que ele era uma emanação da sua autonomia, o qual poderia resultar de uma decisão potencialmente consciente e livre, nas relações consumeristas não estão preenchidos todos os pressupostos tradicionalmente ligados aos contratantes numa relação que não é de consumo. Não só há uma imensa disparidade de forças entre o consumidor e o fornecedor, como aquele não está em posição de discutir os termos do contrato com o fornecedor, como no caso de um contrato de adesão; deixar de contratar, como no caso da existência de um monopólio; ou, ainda, possuir conhecimento para avaliar os riscos de um produto. [132] Nas palavras de Cláudia Lima Marques:

No caso dos contratos, o problema é o desequilíbrio flagrante de forças dos contratantes. Uma das partes é vulnerável (art. 4, I), é o pólo mais fraco da relação contratual, pois não pode discutir o conteúdo do contrato; mesmo que saiba que determinada cláusula é abusiva, só tem uma opção "pegar ou largar", isto é, aceitar o contrato nas condições que lhe oferece o fornecedor ou não aceitar e procurar outro fornecedor. Sua situação é estruturalmente e faticamente diferente da do profissional que oferece o contrato. Este desequilíbrio de forças entre os contratantes é a justificação para um tratamento desequilibrado e desigual dos co-contratantes, protegendo o direito àquele na posição mais fraca, o vulnerável, o que é desigual fática e juridicamente. [133]

A própria razão de ser do CDC, assim, consiste na vulnerabilidade do consumidor. [134] Como comenta Teresa Negreiros, "(...) deixa de fazer sentido ignorarem-se as características dos contratantes que determinem a sua melhor ou pior condição de barganha contratual [135]". Também Ribeiro enfatiza que a partir de determinado limite, ou em certas formas de vulnerabilidade, não se pode mais afirmar que a parte mais fraca goze, em relação a um certo tipo de ato, de autodeterminação, no sentido de capacidade para uma defesa autônoma dos interesses próprios. [136] É necessário, portanto, esclarecer qual o significado e a extensão desse termo tão importante para a legislação protetiva consumerista.

Antes de qualquer coisa, devemos evitar a tentativa de procurar definir exaustivamente o conceito de vulnerabilidade. Em primeiro lugar, porque é inútil procurar todo o campo de aplicação de um conceito a partir de sua definição. Como alerta Arthur Kaufmann, "a máxima precisão da linguagem só se deixa alcançar com o preço do máximo esvaziamento de conteúdo e de sentido [137]". Em segundo lugar, conceitos como vulnerabilidade só são realmente apreendidos quando vistos em sua aplicação concreta. [138] No entanto, por mais correta que seja essa visão, é necessária também uma noção geral do conceito, [139] para podermos vislumbrá-lo no caso concreto. [140] Além do que, é necessário definir precisamente os tipos de vulnerabilidade, a extensão de cada um e os efeitos que a ela se ligam. É o que será feito a partir daqui.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o que a vulnerabilidade não é. Ela não se confunde com a hipossuficiência, prevista no art. 6º, inciso VIII, do CDC. [141] Segundo Judith Martins-Costa:

Nem todo o consumidor é hipossuficiente. O preenchimento valorativo da hipossuficiência – a qual se pode medir por graus – se há de fazer, nos casos concretos, pelo juiz, com base nas "regras ordinárias de experiência" e em seu suporte fático encontra-se, comumente, elemento de natureza sócioeconômica. (...) a sua conseqüência jurídica imediata é a da inversão do onus probandi, no processo civil, para a facilitação da defesa de seus direitos.

Todo o consumidor, seja considerado hipossuficiente ou não é, ao contrário, vulnerável no mercado de consumo. Aqui não há valoração do "grau" de vulnerabilidade individual porque a lei presume que, neste mercado, qualquer consumidor, seja ele hiper ou hipossuficiente do ponto de vista sócioeconômico, é vulnerável tecnicamente: no seu suporte fático está o desequilíbrio técnico entre o consumidor e o fabricante no que diz com a informação veiculada sobre o produto ou serviço. [142]

Aliás, se não distinguíssemos vulnerabilidade de hipossuficiência, [143] teríamos que admitir a contradição do CDC, que diz que todo consumidor é vulnerável (art. 4º, inciso I), e que para inverter o ônus da prova deve-se verificar a sua hipossuficiência. [144] A idéia de vulnerabilidade, portanto, está ligada ao direito material, e a de hipossuficiência, ao direito processual. A primeira é utilizada para caracterizar a necessidade de tutela do consumidor, a segunda, de ordem econômica, [145] para configurar a inversão do ônus da prova.

A vulnerabilidade, como tantos outros termos, é polissêmico. Ela pode significar fragilidade, inexperiência, incapacidade, impossibilidade de escolha e de autodeterminação etc. Ela também pode, como já foi visto, ser dividida em vulnerabilidade "em si" e relacional. [146] No primeiro caso ela se manifesta pelo agente ser o que ele é. No Direito do Consumidor, essa vulnerabilidade ocorre, por exemplo, quando o consumidor é uma criança, um idoso, pobre, debilitado fisicamente, ignorante etc. Ela é relacional quando derivada de uma ação que coloca o agente numa posição de vulnerabilidade, como é o caso das relações de consumo. O que pode haver, no entanto, numa relação consumerista, é uma vulnerabilidade ainda mais intensa quando qualificada [147] pelos elementos da vulnerabilidade "em si". [148] Assim, um idoso pobre numa relação de consumo é ainda mais vulnerável, por isso ele possui uma proteção ainda maior no CDC, como se depreende do art. 39, inciso IV, que diz:

Art. 39: "É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços dentre outras práticas abusivas: (...)

IV- prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade [149], saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos e serviços." [150]

A vulnerabilidade, dessa forma, também comporta graus. [151] Embora todo consumidor seja vulnerável, alguns serão mais que outros e, sobre esses, há uma tutela ainda maior, como ficou claro no artigo supracitado. Há, no entanto, não só graus de intensidade da vulnerabilidade, como também níveis diferentes. [152] A doutrina costuma separar a vulnerabilidade em diversas categorias, das quais as principais são a técnica, a fática e a jurídica. [153] A vulnerabilidade técnica seria aquela onde o comprador não possui conhecimentos específicos sobre o objeto que está adquirindo ou o serviço que está comprando. Configura-se por uma série de motivos, como falta de informação, informações prestadas incorretamente e até excesso de informações desnecessárias. [154] A fática é a desproporção de forças, intelectuais e econômicas, que caracteriza a relação de consumo. E a jurídica, a falta de conhecimentos jurídicos específicos, como, por exemplo, os necessários para compreender [155] um contrato bancário.

A vulnerabilidade manifesta-se, igualmente, muitas vezes, devido à natureza da relação contratual. Esse é o caso, por exemplo, dos contratos de adesão [156], onde o contratante não pode negociar os termos do contrato. Essa vulnerabilidade é acentuada quando o negócio é feito em estado de necessidade, ou quando o fornecedor é monopolista do serviço ou produto ou, ainda, quando ele se refere a um bem essencial. [157] A estrutura do contrato também pode torná-lo vulnerável, como a catividade e a longa duração, no sentido de que o consumidor torna-se dependente daquele serviço, não pode escolher outro e, portanto, torna-se vítima de cláusulas abusivas e que lhe são desfavoráveis, mas que ele deve aceitar sob pena de perder o plano, por exemplo. [158]

Os efeitos práticos das considerações sobre a vulnerabilidade são tanto legislativos quanto jurisprudenciais. O efeito legislativo, obviamente, mais evidente, é o próprio CDC, [159] onde o reconhecimento da vulnerabilidade está inserido no capítulo da Política Nacional de Relação de Consumo. Ela está explicitada no art. 4º, inciso I, do CDC:

Art. 4º: "A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a usa dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

(...)."

Ela é, nesse sentido, uma diretriz para o legislador, e os efeitos dessa tutela aos vulneráveis reflete-se nos diversos dispositivos do CDC, que procuram concentrar praticamente todos os ônus e deveres no fornecedor, a parte mais forte da relação. [160] Como comenta Judith Martins-Costa, "por estas razões o princípio da vulnerabilidade incide no exame de todas normas do Código, articulando-as entre si [161]". O CDC favoreceu a proteção da vulnerabilidade assim, através de diversos institutos, como a onerosidade excessiva, a lesão, a responsabilidade objetiva, bem como através do controle da publicidade e das práticas e cláusulas abusivas. [162] Como a vulnerabilidade é uma característica possuída, em maior ou menor grau, por todos consumidores, em toda relação de consumo o consumidor terá, de imediato, um rol de dispositivos que procura tutelá-lo, independentemente de qualquer prova de sua vulnerabilidade.

Assim, embora em princípio a vulnerabilidade tal como está expressa no CDC não diga nada por si só, mas somente na medida em que ela é utilizada para articular os diversos dispositivos do CDC que existem em função dela, [163] em muitos casos, a constatação da vulnerabilidade ou a idéia de um homem vulnerável terão, por si, conseqüências práticas.

O principal efeito é a restrição da autonomia privada, que é limitada para suprir a vulnerabilidade do consumidor. Essa limitação pode ser vista, em um primeiro momento, no próprio número de normas cogentes existentes no CDC que impedem que certas cláusulas sejam pactuadas. [164] Esse é o caso, por exemplo, da decretação de abusividade de certas cláusulas. [165] Embora a abusividade das cláusulas não seja aferida somente pela constatação da vulnerabilidade, muitas vezes isso ocorre. Como a lista do art. 51 é exemplificativa, ou seja, cabe ao juiz decretar como abusivas cláusulas que não se encontram proibidas pelo referido artigo, caberá a ele fazer um juízo sobre a vulnerabilidade do consumidor do caso concreto, e em que medida ela o fragiliza frente a uma cláusula. Outro efeito é a extensão do dever de informar por parte do fornecedor. [166] Ele é diretamente vinculado ao fato da vulnerabilidade do consumidor, e o que esse dever abarca depende de um juízo no caso concreto sobre o que o consumidor deve e pode saber. [167]

Assim, além da proteção legislativa, a vulnerabilidade tem relevância igualmente quando o juiz é chamado a interpretar um conceito flexível de um dispositivo, [168] ou quando é necessário que ele interprete a abusividade de um contrato à luz da vulnerabilidade do consumidor. [169]

A vulnerabilidade, dessa forma, impacta indiretamente sobre a responsabilidade do consumidor, na medida em que ela faz emergir a necessidade de tutela. É essa tutela, esse protecionismo, que incide sobre a responsabilidade do consumidor, já que, como foi destacado, o principal efeito da vulnerabilidade é a redução da autonomia privada, e o principal corolário ético desta é a auto-responsabilidade. No entanto, quais são os reflexos da vulnerabilidade sobre a teoria da ação voluntária de Aristóteles esboçada anteriormente? Sobre quais pressupostos da ação voluntária ela impacta e com que intensidade? [170]

Irei defender, aqui, que a vulnerabilidade pode tanto tornar uma ação involuntária quanto mista. No primeiro caso, isso ocorre quando o agente age por ignorância. [171] No segundo caso, o exemplo mais paradigmático no Direito do Consumidor é o dos contratos de adesão. [172]

Com relação à informação, a importância do dever de informar, como já foi destacado, surge tanto da disparidade de forças entre as partes em uma relação de consumo, o que muitas vezes impossibilita o consumidor de ter acesso a todas circunstâncias relevantes da ação, como também, muitas vezes, da própria incapacidade do consumidor de entender em detalhes, por exemplo, os termos de um contrato complexo. Quanto à importância do dever de informar no Direito do Consumidor, comenta Nicole L’Heureux que:

(...) na sociedade de consumo o consumidor é geralmente mal informado. Ele não está habilitado a conhecer a qualidade do bem ofertado no mercado, nem a obter, por seus próprios meios, as informações exatas e essenciais. Sem uma informação útil e completa, o consumidor não pode fazer uma escolha livre. A obrigação que o Direito Civil impõe ao comprador de informar-se antes de contratar é, na sociedade de consumo, irreal. [173]

Salienta ainda Antônio Herman Benjamin que "não é qualquer modalidade informativa que se presta para atender aos ditames do Código. A informação deve ser correta (verdadeira), clara (de fácil entendimento), precisa (sem prolixidade), ostensiva (de fácil percepção) e em língua portuguesa [174]". Os dispositivos do CDC que exigem que o fornecedor informe o consumidor em todos os momentos da contratação visam, portanto, que o consumidor possa agir de forma voluntária no mercado de consumo.

Foi visto, no entanto, que uma ação pode ser tanto por ignorância como em ignorância, sendo que a diferença entre elas é que, enquanto nessa última era o próprio agente a causa da sua ignorância (como no caso do ébrio ou daquele que não possui uma informação que é de conhecimento comum ou poderia facilmente ter sido adquirida), na ação por ignorância o agente escolheria agir de outro modo se tivesse sido capaz de prever suas conseqüências e se tivesse podido apreender corretamente todas as particularidades relevantes de sua ação. [175] A ação por ignorância, portanto, pressupõe que o agente não podia não ter ignorado, dadas as circunstâncias da ação, ou seja, que não era exigível dele uma diligência para que ele tivesse os conhecimentos relevantes da ação. Isso, obviamente, levanta a questão de "que tipo de conhecimento é exigível que o agente tenha" e "que tipo de diligência é exigível para o agente adquirir esse conhecimento." Isso é fundamental para verificarmos se a ação é involuntária ou não, pois somente as ações em ignorância são involuntárias.

Aqui há uma importante diferença entre o Direito Civil e o Direito do Consumidor. Afirma Judith Martins-Costa que "(...) nos contratos paritários (...), o dever de informar convive com o ônus jurídico de informar-se, pois a diligência para com os próprios interesses decorre não só da autonomia privada, mas do próprio princípio da razoabilidade [176]". No entanto, a regra é outra no Direito do Consumidor:

A regra do dever de se informar não vale para o consumidor. Para contratos submetidos ao regime do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se os art. 18-25. A distinção entre vícios aparentes e ocultos só tem importância para os prazos de reclamar os vícios (veja art. 26, caput e § 3º, do CDC) e a garantia legal do art. 24 do CDC também se dirige ao vício aparente. [177]

Além de ser presumido um não-conhecimento por parte do consumidor, não é exigível dele um ônus de informar-se. Ora, se esse ônus não existe para o consumidor, praticamente nunca haverá uma ação dele em ignorância, quase todas as ações serão por ignorância e, portanto, involuntárias, não havendo responsabilidade por parte dele. Toda ação feita desconhecendo uma circunstância relevante será por ignorância, pois a presunção será de que ele não tem o ônus de ter aquele conhecimento. Essa regra comporta exceções.

A primeira, obviamente, é quando o consumidor age desconhecendo muito embora o fornecedor tenha se desincumbido completamente do seu dever de informar de maneira clara e correta. Embora ali o consumidor aja desconhecendo, sua ignorância é causa não da sua negligência em informar-se, mas de não recepcionar as informações dadas pelo fornecedor (se essas eram de fácil entendimento, por certo). Outra exceção ocorre quando a informação é óbvia, ou de muito fácil acesso ao consumidor. O desconhecimento do consumidor aqui pressuporia uma negligência gritante. Isso não quer dizer, novamente, que há um ônus de informar-se por parte dele, mas simplesmente que ele deve compreender de maneira pelo menos mínima o mundo a sua volta. Por último, não há um dever de informar por parte do fornecedor quando o consumidor já tem conhecimento da informação.Como afirma Christoph Fabian:

Um limite inerente ao dever de informar é o conhecimento da informação pelo devedor. A tarefa do dever de informar – sob o ponto de vista geral – é simplesmente a de ampliar o conhecimento do devedor. O conhecimento é, muitas situações, o fundamento para uma decisão livre. Em outras situações encontramos o conhecimento como fator protetor. Quando o devedor conhece a informação, o dever de informar é satisfeito e se extingue. [178]

Isso serve para concluir que, se do consumidor não é exigida uma postura diligente na sua atividade negocial da mesma maneira que é exigida no âmbito das relações não consumeristas, isso não quer dizer que sua postura pode ser completamente irresponsável e negligente, ou que a imagem que o CDC faz dele é de alguém que não possui nem sequer os conhecimentos mais básicos. Tanto o conhecimento daquilo que é óbvio como do que é de muito fácil acesso é presumido contra ele, como também um mínimo de diligência da sua parte é requerida, ao menos para prestar atenção nas informações passadas pelo fornecedor. Aliás, que um mínimo de diligência lhe é imposto fica claro pela análise do art. 46 do CDC:

Art. 46: "Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance." (grifei)

Ou seja, ao fornecedor cabe apenas o dever de oportunizar a ciência do conteúdo do contrato ao consumidor: caberá a ele a decisão de efetivamente ler ou não, de tomar ciência ou não do texto do contrato.

Os reflexos da vulnerabilidade sobre a teoria da ação voluntária também podem fazer uma ação ser qualificada de mista. Como foi explicado no ponto anterior, mista é aquela ação em que há uma mistura de voluntariedade com involuntariedade. Uma ação é mista quando, universalmente falando, ela é involuntária, já que o agente nunca a escolheria por si mesmo; mas, no caso singular, ela é voluntária, pois depende do agente agir ou não. De certa forma, portanto, há um elemento coativo nessa ação, embora não da mesma forma que na coação pura, onde o princípio não é interno ao agente (ser levado pelo vento, por exemplo), pois o agente só escolhe o fim e, escolhido esse, o agente não pode agir diferentemente. [179] Nessa ação está afetado, portanto, aquilo que na filosofia aristotélica chama-se "potência de contrários". [180] No Direito do Consumidor, é isso que geralmente acontece nos contratos de adesão, principalmente quando eles se referem a um bem essencial, utilizam ccg, e/ou o fornecedor exerce um monopólio sobre o bem ou serviço. Examinarei algumas dessas circunstâncias mais detidamente.

Devemos primeiro nos perguntar: afinal, porque a adesão passiva a condições desfavoráveis não desencadeia aqui, como é de norma, a auto-responsabilidade do aceitante? Essa resposta é muito clara para Joaquim Ribeiro. Para ele, "no quadro de um sistema de autotutela dos interesses privados, esse desvio só pode ser justificado pela impossibilidade ou inexigibilidade de o titular dos interesses afectados tomar em suas mãos a sua defesa, através da oposição activa às pretensões irrazoáveis da contraparte [181]". As causas dessa situação, para Ribeiro, são várias. [182] Em primeiro lugar, a superioridade do predisponente, do ponto de vista organizativo e intelectual. O aderente está numa situação de inferioridade intelectual (entendido esse termo não como uma genérica capacidade intelectual do aderente, nem, até, ao nível dos seus conhecimentos jurídicos, mas apenas às condições extremamente gravosas em que ele é colocado, quanto à possibilidade de conhecimento e de avaliação do conteúdo das ccg), devido, em grande parte, as próprias circunstâncias da celebração contratual que lhe são desfavoráveis (vários negócios exigem uma conclusão imediata, [183] e lhe falta tempo e condições para uma leitura refletida das ccg).

Também são importantes alguns fatores de ordem psicológica. A fixação antecipada das cláusulas gera no contratante vulnerável uma idéia de completude e imodificabilidade, que o desincentiva a tomar consciência crítica do seu conteúdo. Tal contrato passa verdadeiramente a mesma imagem de normas legais, tanto pela forma como vem disposto como pelo caráter geral e abstrato de suas cláusulas. A imagem de legitimação que as ccg passam leva o aderente, mesmo quando toma conhecimento de uma cláusula lesiva aos seus interesses, a uma posição apática de resignação e impotência, muito mais do que uma determinação firme em rejeitar o contrato. [184]

Para Ribeiro, essas situações não são suficientes para justificar a passividade do aderente. Resta ainda explicar por que o ordenamento,

(...) em vez de lhe reclamar um acréscimo de esforço e diligência, uma tentativa empenhada de superar aquelas dificuldades, imputando-lhe irrestritamente as consequências desvantajosas da sua censurável omissão, o trata, à partida, e de plano, como digno de tutela, intervindo com medidas compensatórias da sua situação de desvantagem. [185]

Para demonstrar a inexigibilidade de uma conduta negocial de ativa defesa, ou seja, porque não é de esperar nem de impor que o faça, Ribeiro recorre à análise econômica do Direito. Partindo do modelo de homem como um maximizador de utilidade, deixa de fazer sentido ao aderente a aquisição dos conhecimentos necessários para a defesa autônoma dos interesses próprios.

(...) o aderente concentra-se nos dados facilmente consciencializáveis, com reduzidos custos e vantagens compensadoras (a relação prestação preço, designadamente), desinteressando-se da ponderação dos efeitos das cláusulas preformuladas, com um alto grau de opacidade, para regulação de questões periféricas em relação ao interesse contratual nuclear. [186]

Da mesma forma, o conhecimento do conteúdo dificilmente lhe proporcionará uma melhoria da sua posição negocial, e isso pela inegociabilidade das condições analisadas e pela indisponibilidade ou dispendiosa cognoscibilidade de condições mais favoráveis. [187] Conclui Ribeiro que:

Longe de traduzir uma negligência no cumprimento de ónus negociais, essa conduta tipica da grande massa dos contraentes que se confronta com ccg deve ser valorada como conforme à lógica funcional da autonomia privada: "só pode esperar-se uma defesa auto-responsável dos seus interesses por parte daqueles que têm interesse nisso". [188]

Essa conduta não o torna desmerecedor de tutela, dado que não lhe é exigível arcar com os custos adicionais de informação gerados pelos "efeitos de ocultação" das ccg. A tutela do aderente liga-se mais, portanto, à inexigibilidade de outra conduta (o não poder agir diferentemente) e impossibilidade de participar da conformação do contrato. Daí ser uma ação mista, [189] já que afeta a potência dos contrários. Nesse sentido, o agente é como que "coagido" (não fisicamente, por certo) a adotar uma certa conduta. Escolhido o fim, não resta a ele alternativa (já que não é possível – nem exigível – para ele alterar o contrato). No entanto, é necessário esclarecer melhor o conceito de coação e seu campo de aplicação. [190]

Em primeiro lugar, a coação liga-se diretamente à escolha. Isso porque só pode dizer-se que o agente atuou coagido quando para ele não havia alternativas de escolha, como já foi demonstrado. No entanto, não basta somente que haja possibilidade de fazer escolhas, quaisquer que elas sejam. É necessário que o ato de escolha faça ainda sentido, como expressão da personalidade do agente: um homem só é livre de fazer algo se este é objeto possível de uma escolha razoável. Só pode dizer-se do ato que ele não foi coagido quando ao agente foi dada oportunidade efetiva de uma opção em que um dos seus termos, pelo menos, contemplava de forma tal os seus interesses que apresentava para si um suficiente conteúdo de valor, [191] pois a mera existência de alternativas não é suficiente para tornar livre a minha ação (ainda que esta possa ser voluntária). [192] No caso de um contrato de adesão, é possível falar-se, portanto, em coação, quando o agente não dispõe de alternativa senão escolher submeter-se a um contrato lesivo. Esse é ainda mais o caso quando o fornecedor exerce um monopólio sobre o produto, hipótese em que não será possível ao consumidor, mesmo que tenha conhecimento da desvantagem que tal contrato lhe trará, não aderir. Igualmente essa situação acontece quando o bem é essencial, [193] e o consumidor tem pressa em contratar. Obviamente, todas essas circunstâncias podem estar mescladas numa mesma situação: o bem é essencial, [194] o fornecedor exerce um monopólio sobre ele e, além disso, o consumidor tem pressa em adquiri-lo. É inegável que, estando presentes uma ou mais dessas circunstâncias, não pode dizer-se seriamente que o consumidor deve responder pelos danos que tal contrato possa lhe trazer como uma conseqüência da sua auto-responsabilidade: muito pelo contrário, tais situações levantam a necessidade de controle e fiscalização do conteúdo de tais contratos.

Em segundo lugar, é preciso esclarecer até que ponto pode-se realmente dizer que houve coação. Pois, como muito bem alertam Atiyah e Smith:

Contracts are nearly always made under pressure of some sort. (...) pressure and threats are implicit in the whole concept of exchange, because the offeror is always demanding something in return, which is another way of saying that he is threatening not to supply what you want unless you can give him what he wants in return. [195]

É necessário sempre verificar, no caso, a intensidade da coação. Tomemos como exemplo um contrato de adesão em que os termos do contrato são redigidos cumprindo as exigências do §3º do art. 54 do CDC, ou seja, em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis; além disso, o bem não era essencial e havia alternativas plausíveis no mercado. Nesse caso não é possível ao consumidor dizer que foi coagido. Embora se uma das cláusulas estiver no rol das cláusulas abusivas do art. 51 ou em uma das portarias sobre cláusulas abusivas não há o que se questionar da sua nulidade, [196] não é possível decretar a nulidade de outra cláusula somente pelo fato de ela limitar direitos do consumidor. Aqui vale a regra do § 4º do art. 54:

Art. 54: "(...)

§4º: as cláusulas que implicarem limitação de Direito do Consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão."

Tais cláusulas, desincumbindo-se o fornecedor do seu dever de informar, não sendo elas manifestamente iníquas e o bem sendo supérfluo, são válidas. Aqui compete ao juiz verificar da abusividade da cláusula e da intensidade da coação. Para fazer isso, é preciso ver se o tipo de pressão era extraordinária ou ordinária, como afirmam, novamente, Atiyah e Smith:

(...) statements about consent are basically all-things considered conclusions about the kinds of pressures that individual should be expected to put up with in life. They are statements, on other words, about which kinds of pressures are among the "ordinary" vicissitudes of life and which are "extraordinary". In this view, conclusions about consent depend significantly on the time and the place that the decision was made (...). This explains why the sorts of pressures inherent to any exchange do not negate consent. (...) According to this interpretation, then, a conclusion that consent was negated by a particular kind of pressure is, in effect, a global statement about the world we live in. [197]

Isso, obviamente, passa por um juízo da intensidade da vulnerabilidade do agente, e é nesses casos que muitas vezes pode haver grandes divergências, com alguns juízes adotando uma postura excessivamente paternalista.

Concluindo esse capítulo, podemos afirmar que é necessário que uma teoria da ação voluntária incorpore a vulnerabilidade, e que procure dar conta tanto da necessidade de tutelar os mais fracos como de afirmar a responsabilidade do homem por sua conduta. Para os que acreditam que a vulnerabilidade, ao afetar a voluntariedade, elimina a responsabilidade do consumidor, foi demonstrado tanto que a teoria da ação voluntária pode ser harmonizada com considerações sobre vulnerabilidade, como a forma como pode ocorrer essa relação.

A forma de lidar com essa tensão [198] será vista ainda, de forma mais detalhada, no ponto 2.1, onde serão estabelecidas algumas diretivas jurídicas para lidar com essa complicada equação.

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Sobre o autor
Eduardo Augusto Pohlmann

Advogado em Porto Alegre (RS). Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POHLMANN, Eduardo Augusto. Uma análise dos reflexos da vulnerabilidade sobre a responsabilidade do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1794, 30 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11321. Acesso em: 23 dez. 2024.

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