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Uma análise dos reflexos da vulnerabilidade sobre a responsabilidade do consumidor

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30/05/2008 às 00:00
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2 Aplicação dogmática

Que se dirá, se na cidade souberam todos o que só ele ignorava? [199]

Na Introdução, falei que a teoria da ação voluntária tanto pode ser uma boa explicação para diversos institutos e formas de raciocinar no Direito, ou seja, tem um papel teórico importante, como também pode ser de grande valia na solução de alguns problemas, ou seja, também tem um papel prático. Nesse ponto, brevemente, aprofundarei um pouco mais essas questões. A questão central residirá na explicação do conceito de standards de normalidade, que não só é uma necessidade para que a teoria da ação voluntária tenha aplicação jurídica, como também será útil no próximo ponto, onde discutirei alguns casos práticos.

Com relação à influência da teoria da ação voluntária no Direito, obviamente somente me centrarei naquelas relações que possuem de alguma forma uma ligação com o tema que estou tratando. [200] Uma delas já foi abordada no ponto anterior, e dizia respeito à importância da distinção entre ação por ignorância e em ignorância no âmbito do Direito do Consumidor. Gostaria agora, aqui, de tecer alguns breves comentários sobre negligência e culpa. [201]

Em Aristóteles, a pessoa pode ser negligente não só com relação a ações, mas igualmente com relação à própria pessoa, à formação do seu caráter. Assim é quando Aristóteles critica os incontinentes e intemperantes, aqueles que, seja conhecendo o que é o correto ou não, cometem ações erradas. Também critica os ébrios e inclusive os homens com deformidades físicas, sempre que elas podem ser reportadas a uma negligência inicial por parte do autor. [202]

A pessoa pode agir com culpa, igualmente, quando desconhece uma circunstância da ação que não podia desconhecer, seja porque era óbvia, seja porque era de muito fácil acesso, como já foi dito anteriormente. [203] Igualmente, a condição para a ação ser considerada responsável, ou seja, a potência de contrários, o ser capaz de agir diferentemente, possui íntima conexão com a idéia de culpa contemporânea, onde está suposto que uma ação é culposa se o agente poderia não tê-la praticado. Segundo uma definição clássica de culpa, de José de Aguiar Dias, "a culpa é falta de diligência na observância da norma de conduta, isto é, o desprêzo, por parte do agente, do esfôrço necessário para observá-la, com resultado, não objetivado, mas previsível, desde que o agente se detivesse na consideração das conseqüências eventuais da sua atitude [204]". Pressupõe, portanto, a capacidade de deliberação, pelo menos em abstrato, já que, muitas vezes, também é responsável aquele que culposamente coloca-se numa posição em que ficará impossibilitado de deliberar ou, sabendo que devido à certas debilidades físicas não poderá atuar com a diligência necessária, assume o risco. [205]

A culpa, obviamente, não é um estado de espírito, o sentir-se culpado, mas a propriedade de uma conduta. É uma conduta desacompanhada de uma atenção exigível, e também a conduta desacompanhada de certas considerações relacionadas às conseqüências, ou seja, cuidado. [206]

Conceito central, portanto, da culpa, é a noção de negligência. Na definição, novamente, de José de Aguiar Dias, "negligência é a omissão daquilo que razoàvelmente se faz, ajustadas as condições emergentes às considerações que regem a conduta normal dos negócios humanos. É a inobservância das normas que nos ordenam operar com atenção, capacidade, solicitude e discernimento [207]". Negligente é aquele que deixa ter a exigência exigível [208] no tráfego.

A idéia de negligência é perfeitamente compatível com a teoria da ação voluntária de Aristóteles, já que esse não confundia ação voluntária com ação intencional. James Gordley esclarece bem esse ponto ao explicar a idéia de negligência de Tomás de Aquino, herdeiro do pensamento de Aristóteles:

Is negligence voluntary? Aquinas answered that it is. If an action is in no way voluntary it cannot be attributed to a person. But a negligent person fails to exercise prudence. Prudence, like all virtues, is acquired by voluntary action, by taking the consequences of one''s actions into account, and by doing so over and over until it becomes habitual. Of course, not all people are equally prudent even if they try equally hard to be. The Late Scholastics concluded that a person should be liable for failing to exercise the degree of prudence that he could be expected to possess. [209]

A questão do que pode ser considerada uma ação negligente, porque alguém pode ser responsabilizado por não ter tomado um certo comportamento ou ter tomado um em vez de outro imediatamente nos leva a questionar qual é o padrão contra o qual o agente e seu comportamento são comparados. Segundo José de Aguiar Dias, "para alguns, a conduta do agente deve ser apreciada em comparação com a de um tipo determinado: o êrro será aquêle procedimento que o tipo-padrão não adotaria. Para outros, cumpre examinar o ato em relação à consciência do agente, isto é, investigar se ela lhe reprova ou não o procedimento [210]". No entanto, ele logo rechaça a segunda posição, com o argumento de que "a apreciação da culpa in concreto não pode fornecer um critério aceitável, em face dos princípios jurídicos. Basta notar, para isso concluir, que ao juiz se torna impossível a sondagem da consciência do autor do dano [211]". Isso faz a grande maioria dos autores, e este também é o critério adotado no direito brasileiro (pelo menos em responsabilidade extracontratual subjetiva), utilizar como critério de aferição de culpa o padrão do homem médio, razoável, diligente, o bonus pater familias. Nesse sentido, a posição de Cavalieri:

Não havendo normas legais ou regulamentares específicas, o conteúdo do dever objetivo de cuidado só pode ser determinado por intermédio de um princípio metodológico – comparação do fato concreto com o comportamento que teria adotado, no lugar do agente, um homem comum, capaz e prudente. A conduta culposa deve ser aferida pelo que ordinariamente acontece, e não pelo que extraordinariamente possa ocorrer. Jamais poderá ser exigido do agente um cuidado tão extremo que não seria aquele usualmente adotado pelo homem comum, a que os romanos davam a designação de bonus pater familias, e que é, no  fundo, o tipo de homem médio ou normal que as leis têm em vista ao fixarem os direitos e deveres das pessoas em sociedade. [212]

Contra essa verificação em abstrato, geralmente são feitas duas críticas: uma, a de que tal bonus pater familias é um "ser inexistente" [213] e, por isso, não possuiria normatividade; outra, a de que muitas pessoas não estão à altura desse ideal [214] e, portanto, não se poderia exigir delas esse comportamento. As duas estão equivocadas em pontos importantes.

Quanto à primeira, por certo que tal figura é uma abstração, e que não há ninguém normal nesse sentido (o que é evidente pela constatação da falibilidade humana). No entanto, não é um sentido de normal estatístico, que denota freqüência, que está em jogo aqui, mas muito mais um normativo, que indica o que pode ser considerado bom, correto. [215] O que importa é esse último sentido. Assim, o bonus pater familias fixa um paradigma de apreciação das condutas.

A segunda questão é mais complexa. Em primeiro lugar, deve-se conceder que faz parte da lógica do Direito muitas vezes levar em consideração algumas das características do agente, como ignorância, idade, saúde etc. [216] Porém, deve-se ressaltar que o ideal do homem razoável não é (não pode ser) um ideal inatingível e do qual dependa um alto grau de instrução, por exemplo. Tal padrão, na maioria das vezes, é independente do grau de escolaridade, saúde ou outras escusas que poderiam ser invocadas. Supõe, somente, que o agente tenha adquirido, por sua experiência, uma habilidade em lidar com certas situações para evitar causar dano a outras pessoas. Mesmo assim, podem ser encontradas algumas situações em que certas circunstâncias são, sim, relevantes para uma ação razoável ser impraticável por certas pessoas. E se, embora algumas vezes essa falta pode ser imputada ao próprio autor, por ter levado a vida de forma negligente, não adquirindo a prudência necessária, na maioria das vezes tal agente não a adquiriu por circunstâncias sociais extremamente adversas. Nessas circunstâncias, caberia ao agente evitar criar o risco de ver-se enredado na situação em que essa sua deficiência seria relevante, bem como evitar praticar as ações sobre as quais não tem domínio suficiente, [217] pois nos dois casos responderia por culpa. [218] Em terceiro lugar, não há dano sem vítima, e também os interesses dessa devem ser levados em conta. [219] Como ressalta Richard Wright:

(...) the relevant question is the defendant’s moral responsibility for having adversely affected someone else’s person or property. (...) The external exercise of freedom depend on sufficient security against interferences by others with one’s person and property. Regardless of measurement problems, using a subjective perspective to determine the negligence of defendants would make such security impossible, since the risks to which one could permissibly be exposed by others would depend on the subjective capacities of the particular others with whom one happens (...) to interact. [220]

Por certo em todas essas questões também tem relevância a imagem que se faz do agente, se vulnerável ou não. Quanto maior a vulnerabilidade dele, menos se pode exigir em termos de poder agir diferentemente no momento e, novamente, sempre pode haver aqueles que, partindo de uma concepção exagerada de vulnerabilidade, acabem por retirar a capacidade do agente de agir diferentemente, ou seja, a diligência exigível por parte dele torna-se demasiado pequena.

Feitas essas breves considerações, passo a um ponto mais importante na continuação do trabalho: de que forma a teoria da ação voluntária pode ajudar-nos a resolver alguns dos problemas abordados aqui? Vou abordar, aqui, dois pontos: a importância da escolha na ética aristotélica e a idéia de standards de normalidade.

Quanto ao primeiro ponto, muitas vezes é criticado que a ética aristotélica pode ser paternalista, por defender que existem escolhas corretas e escolhas erradas, boas escolhas e más escolhas e que, por causa disso, ao juiz, por exemplo, caberia fazer as escolhas certas pela parte. Nada mais falso. Embora na primeira parte o argumento seja verdadeiro, o critério de correção da escolha é independente do que os agentes pensem ou escolham, isso não quer dizer que a escolha deve ser feita por outra pessoa que não o próprio agente. Para Aristóteles, é importante que o próprio agente veja-se no comando da escolha, mesmo que ela seja equivocada, pois isso faz com que ele aprenda com seus erros. A longa citação a seguir, de Gordley, esclarece bem o ponto:

Writers in the Aristotelian tradition did believe that, substantively, some choices are right and others wrong. As we have seen, however, they did not think that people know right from wrong by a theory, let alone an ideology. They know by prudence, which is the capacity each person has to see what contributes to a good life. It is true that when a person chooses imprudently, his contract does not serve the ultimate end of living such a life. In some cases, the law will not enforce it. Nevertheless, writers in the Aristotelian tradition agreed that the law should not refuse to enforce a contract merely because it was imprudent. While they do not elaborate, there are several reasons why, from an Aristotelian standpoint, the law should respect decisions that are imprudent or even seriously wrong.

To begin with, in the Aristotelian tradition, the defining characteristic of a human being is that he acts through reason. Prudence is reason applied to action. Thus, even if a person will choose wrongly, it does not follow that he would be better off it the right choice were made for him. Quite the opposite. If all of his choices were made for him, he would no longer be living a human life.

Moreover, in the Aristotelian tradition, virtues such as prudence are acquired by practice. A person allowed to choose for himself will make mistakes just as he does in learning a sport or a foreign language. But if he does not choose for himself, he will never learn.

(...)

Finally, in a democratic society, there is a special reason for allowing each person to choose for himself. To the extent that a society is democratic, virtue, or the capacity to make the right choices, does not entitle a person to make choices for others. [221]

Assim, na tradição aristotélica, a escolha é importante. A característica definidora de um ser humano é que ele é capaz de deliberação e escolha, pode mover-se em direção a um fim através da razão. Se as escolhas fossem sempre feitas por outra pessoa que não ele, ele não estaria vivendo uma vida apropriada para um ser humano. [222] Essa idéia reflete-se no Direito tanto na necessidade e importância de haver uma esfera privada, alheia à influências externas de como o agente deve comportar-se e agir, dentro da qual o sujeito pode tomar medidas inclusive prejudiciais a si próprio, [223] e onde não está adstrito a nenhum padrão pré-fixado, como também na idéia de autonomia privada e negócio jurídico, que eu já comentei anteriormente. Também se reflete na exigência do juiz, em regra, não escolher pelas partes contratantes os termos mais corretos do contrato ou aqueles que uma pessoa sensata iria escolher. Como comenta Orlando Gomes:

Por maior que seja, finalmente, o poder atribuído ao intérprete na medida em que se acentua a inclinação para dessubjetivar a vontade, não se consente que imponha às partes um contrato diverso de que realizaram ainda que preferível do ponto de vista do interesse público. Não é lícito ao juiz invocá-lo para o ajustamento por meio de interpretação: cabe-lhe unicamente decretar a nulidade do contrato se o contraria, ou dizer que as cláusulas infringentes estão substituídas pelas disposições legais que prevêem a substituição automática. [224]

A questão mais relevante, no entanto, que passo a abordar agora, é a idéia de standards de normalidade. De uma certa forma, já toquei nessa questão no ponto 1.2, quando comentei a relevância da distinção entre ação em e por ignorância e de como, para saber quando era uma e quando era outra, era necessário demarcar um standard, um padrão que servisse de referência sobre que tipo de informação o agente podia e devia ter. De uma certa forma, essa continua sendo a preocupação central aqui: qual é o standard por trás do conceito de consumidor? Ou seja, que tipo de conhecimento e ação pode ser exigido dele? Aqui, novamente, possui imensa relevância a idéia de vulnerabilidade: de um consumidor que se presume extremamente vulnerável não é possível exigir uma diligência excessiva.

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Como fixar, entretanto, tais standards de normalidade? O que é considerado "normal"?

Como já me referi anteriormente, o normal pode ser entendido em dois sentidos, um estatístico, ou empírico, e outro normativo, ou ideal. Quanto ao primeiro, o que é normal, típico, é aquilo que é de esperar segundo o normal, é o que ocorre normalmente. O oposto aqui é o anormal, não comum. É um tipo empírico, quer dizer, as reações e evoluções respectivas podem ser confirmadas pela experiência. [225] Os tipos empíricos são, portanto, tipos médios. No sentido normativo, normal ganha o sentido de bom, correto, adequado (o normal aqui é o apropriado). O oposto de normal neste sentido é inapropriado, ruim, mau. [226]

Os standards utilizados pelo Direito, como o caso aqui do standard de normalidade, ligados a um homem prudente e razoável, são conseqüência de uma noção empírica ou ideal de normal?

Na verdade, há uma mistura das duas. Tanto elementos empíricos quanto normativos entram em cena para a definição de tal standard. [227] O padrão não é totalmente empírico: o homem médio não é a média dos homens. [228] Mas também não é totalmente ideal: deve haver uma ligação com o que é considerado normal numa certa sociedade. Apesar da sua normatividade, ele possui relações com o comportamento daquele grupo. O fato é que o tipo aqui parece ser a abstração de uma regularidade empírica que, posteriormente, ganha normatividade. Larenz defende uma posição semelhante:

Os usos do tráfego, os usos comerciais e a "moral social", enquanto tais, têm para os juristas o significado de standards, quer dizer, "de pautas normais de comportamento social correcto, aceites na realidade social". Tais standards não são (...) regras configuradas conceptualmente, às quais se possa efectuar simplesmente a subsunção por via do procedimento silogístico, mas pautas "móveis", que têm que ser inferidas da conduta reconhecida como "típica" e que têm que ser permanentemente concretizadas, ao aplicá-las ao caso a julgar. O standard é (...) "decerto um tipo real – mas é, ao mesmo tempo, sempre um tipo ideal axiológico". Isto não, certamente, no sentido de um tipo de totalidade ou tipo configurativo, mas de um tipo de frequência ou tipo médio, que é elevado a norma. [229]

No mesmo sentido, definindo normalidade como uma mistura de freqüência e expectativas, Aleksander Peczenik:

The classical standard has something to do with normality: One is blamed for carelessness because a normal person, a bonus pater familias would take more precautions. The estimate of normality in its turn is either based on frequency – what most people do in a certain context is not negligent – or on a rather complex network of expectations. The latter is difficult to analyze, yet it makes sense to say that one acted negligently even though many other people in one’s position act similarly. For example, an organizer of fashionable but extremely risky "canyoning" tours in the Alps may be found negligent in spite of the fact that other organizers of such things do more or less the same as he did. [230]

Assim, como podemos definir o consumidor típico? Deve-se atentar, por todos fundamentos já dados anteriormente, que o standard de normalidade do consumidor não é o do civil, onde o dever de diligência e o ônus de auto-responsabilidade são a regra. Assim, devido à vulnerabilidade que sobre ele impende, e procurando usar tanto elementos empíricos quanto normativos, poderíamos conceber o standard do consumidor como alguém menos atento, menos cuidadoso, ou seja, com um grau menor de diligência exigível. [231] Há uma grande diferença em caracterizá-lo assim do que caracterizá-lo como desatento, sem cuidado, negligente ou afoito. O standard do consumidor é a diminuição de um standard maio positivo (o do civil), não, em si, um standard completamente distinto (digamos, negativo).

A solução, entretanto, não pode ser homogênea. Existem diversos tipos de consumidores, cada um com graus diferentes de vulnerabilidade e com diligências diferentes que podem ser cumpridas. Aqui, da mesma maneira que é feito com relação à responsabilidade civil em geral, [232] é possível estabelecer diversos graus e tipos de diligência de acordo com o consumidor, o tipo de relação, a natureza e o valor do bem etc.

Embora eu não vá entrar aqui na especificação desses diversos tipos de diligência exigíveis em diversos contextos e circunstâncias, creio que todas podem ser entendidas como derivações de um mais geral "ônus de prudência", como Betti o denominou. Porém, diferentemente de Betti, entendo prudência aqui no sentido original da palavra, como um verdadeiro "saber agir". Dependendo das circunstâncias aludidas, é exigido do agente um determinado tipo de prudência para aquele ato. Por certo que no âmbito do Direito do Consumidor esse ônus será sempre menor, mas é importante sublinhar que ele nunca desaparece.

É importante ressaltar que, por mais que para delimitar o comportamento devido seja necessário saber a diligência que se pode reclamar ao agente, e é só em função desse grau de diligência, desse esforço exigível, que se torna possível determinar aquele comportamento, [233] isso não significa de forma nenhuma que se deva olhar para algo como a capacidade mental e física do agente naquele momento para determinar sua culpabilidade. [234] As circunstâncias relevantes são aquelas objetivamente apreciáveis. Assim, é relevante saber, por exemplo, a formação profissional do agente, a natureza do contrato, o valor do bem, etc. Nesse sentido, veja-se o comentário de Véra Fradera:

(...) no Common Law a Doutrina entende que não é possível, em matéria de apuração de culpa, a utilização por igual, de standards, tais o homem razoável, pois a exigência de determinada conduta "varia conforme os riscos que a atividade desempenhada acarreta. Assim, há elementos a considerar, por exemplo, a competência do autor do dano e o perigo que decorre do ato praticado".

De acordo com essa perspectiva, não seria admissível, nem mesmo a um mau profissional afirmar não ser responsável pelo evento em virtude de sua formação deficiente ou fraqueza de carácter, como justificativas de seu mau desempenho. Argumentações dessa ordem não constituem força liberatória, "porquanto há sempre uma responsabilidade pessoal, que impede alegar esse argumento". [235]

O fato de olharmos as circunstâncias do caso não quer dizer que aderimos à lógica da culpa in concreto. Mesmo quando se aprecia as diversas circunstâncias do caso e da pessoa o que, na verdade, está se fazendo, é delimitar o tipo de diligência exigível para aquele agente naquela situação, ou seja, se está a determinar um novo tipo para aquela situação. É diferente procurar ver, no caso concreto, o que o agente efetivamente sabia e o que não sabia do que procurar ver o que ele deveria saber. Pontes de Miranda expressa bem essa idéia:

Negligência é omissão da diligência exigida no trato ordinário dos homens, quando, se não tivesse havido essa falta de diligência, se teria evitado o resultado não-querido contrário a direito. O critério é, pois, objetivo e abstrato. Qualquer variação, que se observe, resulta da variação do elemento objetivo (social), e não de qualidades psíquicas ou corporais do indivíduo. (...)

Se o comerciante, que contrata, tem de responder com a diligência própria (...), é porque êsse é o homem-tipo do grupo. E o mesmo ocorre quanto ao médico, quanto ao transportador com animais, se não pode dominá-los (...), quanto ao automobilista que desconhece a cidade, quanto ao cavaleiro que não está a par de dificuldades da equitação. De regra, o que depende de instrução e cultura (e concorre para catalogar o agente), põe-no em grupo, a que corresponde homem-tipo. [236]

Há um outro argumento importante de Pontes de Miranda, em que ele pretende rebater a concretização da culpa e o argumento de que não fazê-lo seria atentar contra a eqüidade.

A omissão negligente, objetivamente apreciável, para que se tenha como culpa, só se compõe a) se o agente omissivo, por suas qualidades mentais e físicas, pode compreender o que se passa e realizar o que a excluiria; ou, em vez disso, b) não se atende a qualidades mentais e físicas do agente omissivo? (...) O argumento maior, a favor de a), é que seria contra a eqüidade que se reputasse culpado quem tem de executar algum ato, ou evitá-lo, se, devido às suas qualidades inferiores, não o pode conseguir. Resposta: cair-se-ia no critério subjetivo, algo de culpa "conforme cada um". Outro argumento foi o de que, negando-se essa verificação em concreto, se cai em contradição com a conceituação da culpa segundo as profissões, ou o grupo sujeito, pelo elemento de ligação, a riscos maiores (...). Não há contradição: o que se anuncia como médico, ou como clínico especialista, entra em grupo, a que corresponde o homem-tipo profissional; se anuncia operação, ou tratamento, que sòmente êle faz, cria grupo em que êle é único, e é segundo êsse homem-tipo que lhe há de ser apurada a culpa. [237]

Reforcei esse ponto porque, a meu ver, isso parece valer para a análise das condições que o art. 39, inciso IV, do CDC estabelece para delimitar o âmbito da vulnerabilidade de certo tipo de consumidor (o fraco ou ignorante): também ali cada requisito como que representa um novo tipo, mesmo que esse tipo exista para pouquíssimas pessoas. As circunstâncias pessoais do consumidor que o tornam mais vulnerável são relevantes para delimitar que tipo de diligência é exigível dele e de que forma o fornecedor deve comportar-se com relação a ele. Não houve uma concretização, mas sim a criação de novos tipos: a lógica do Direito Privado permanece. [238]

Assim, por mais que no âmbito do Direito do Consumidor a consideração pela vulnerabilidade do consumidor muitas vezes leve-se a pensar que, nesse campo, se deve sempre olhar as circunstâncias pessoais do sujeito para verificar o seu nível de vulnerabilidade, o fato é que também aqui a lógica caracteristicamente jurídica de pensar por tipos também prevalece. Como comenta Paulo Luiz Neto Lôbo:

Nota-se, entretanto, uma tendência a um relativo grau de abstração, de formalização (típico do modo de ver jurídico), que resulta no tipo médio, ideal, de contratante débil.

O tipo é presumido quando ocorrem determinadas circunstâncias ou quando a lei assim valora. Presume-se, por exemplo, que na relação do inquilinato, o inquilino residencial é a parte economicamente débil, mesmo que não o seja. (...)

Por contratante débil deve ser entendido todo aquele que esteja, por presunção legal, em posição de inferioridade diante do contratante que detém o poder de fixar as regras do jogo contratual. [239]

Com essas conclusões em mente, é possível passar o último ponto do trabalho, onde serão discutidos alguns casos práticos de relações consumeristas onde a vulnerabilidade tem um papel extremamente relevante.

2.2 Exame de alguns casos concretos: publicidade enganosa e tabagismo

Chegamos ao limite daquilo que o filósofo francês Alain Finkelkraut denominou de "une societè enfin devenue adolescent", por querer, ao mesmo tempo, a inconseqüência e a tutela, o "prazer de fumar" e a indenização por ter fumado. [240]

Por fim, gostaria de analisar alguns casos práticos, onde as reflexões que até aqui foram feitas servirão de justificativa para minhas conclusões. Vou me centrar em dois casos que considero especialmente problemáticos no Direito do Consumidor, e onde as idéias de vulnerabilidade e responsabilidade podem exercer um papel preponderante. Refiro-me à publicidade enganosa e ao tabagismo. A peculiaridade de ambas é que nelas a vulnerabilidade do consumidor está ainda mais acentuada, isso porque, além da vulnerabilidade típica do consumidor, que já foi analisada, tanto em um como noutro caso ele está submetido a influências externas que atuam sobre sua vontade. No caso da publicidade, a tentativa de manipulação; no caso do tabagismo, a criação da dependência. Nesses casos serão relevantes os standards pelos quais deve-se julgar se o consumidor podia ou não ser enganado ou deixar de fumar. [241] A questão do standard de acordo com as circunstâncias objetivamente apreciáveis fica mais complicado no caso da publicidade, que é dirigida para um público indistinto em que coexistem diversos tipos de consumidores. Com relação aos dois casos, a idéia de vulnerabilidade por trás do agente pode, com relação à publicidade enganosa, ajudar a configurá-la e, no caso do tabagismo, afastar a culpa do fumante.

Passo a analisar mais detalhadamente, a partir de agora, os dois problemas.

A publicidade enganosa está regulada juntamente com a publicidade abusiva no art. 37 do CDC, que afirma o seguinte:

Art. 37:"É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.

§1º: É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.

(...)"(grifei)

É necessário antes esclarecer melhor alguns termos do referido artigo, sob o risco de seu uso literal redundar em absurdos. Refiro-me a questão da veracidade ou falsidade das informações. Fábio Ulhoa Coelho comenta, muito acertadamente, que o CDC não está (não pode estar) referindo-se àquelas mentiras fantasiosas com as quais o espectador deve contar como um elemento inerente à publicidade. Segundo o autor: "(...)ele [o consumidor] deve ser inclusive capacitado, pela própria mensagem publicitária ou por sua experiência de vida, a discernir o verdadeiro do falso [242]". Portanto, "(...) para se caracterizar a publicidade enganosa, não basta a veiculação de inverdades. É necessário também que a informação inverídica seja, pelo seu conteúdo, pela forma de sua apresentação, pelo contexto em que se insere ou pelo público a que se dirige, capaz de ludibriar as pessoas expostas à publicidade [243]".

Feito esse breve esclarecimento, é possível passar para uma análise dos problemas que a publicidade levanta com relação à vulnerabilidade do consumidor.

Não é incomum encontrar na doutrina argumentos que concedem à publicidade um efeito verdadeiramente devastador à vontade humana. Paulo Valério Dal Pai Moraes chama esse tipo de vulnerabilidade de "biológica ou psíquica", segundo ele decorrente da estrutura da arquitetura nervosa do homem, conhecida pelo fornecedor, que pode, com isso estimular necessidades, criar desejos, manipular manifestações de vontade e, assim, gerar indefinidas circunstâncias que poderão ter como resultado o maior consumo e, em um grau mais perverso, inclusive obrigar ao consumo de produtos ou serviços inadequados. [244] Em outro momento, o autor afirma que, com a pressão da publicidade, "o consumidor vulnerável não resiste (...) [245]".

Também Fábio Konder Comparato sustenta posição semelhante:

O consumidor, vítima de sua própria incapacidade crítica ou susceptibilidade emocional, dócil objeto de exploração de uma publicidade obsessora e obsidional, passa a responder ao reflexo condicionado da palavra mágica, sem resistência. Compra um objeto ou paga por um serviço, não porque a sua marca ateste a boa qualidade, mas, simplesmente, porque ela evoca todo um reino de fantasias ou devaneios de atração irresistível. [246]

Para Thierry Bourgoignie, o consumidor, devido ao "extraordinário potencial do desenvolvimento oferecido pelas novas técnicas de comunicação, de informação e de trocas (...) perde assim o controle da função de consumir, e a visão contratualista das relações de consumo se encontra privada de fundamento [247]".

É muito difícil criticar esses argumentos senão apelando a argumentos do senso comum, às nossas certezas cotidianas mais caras, de que a imagem de um tal consumidor de tal forma manipulável não nos parece crível. De que a maioria de nós consegue discernir a ficção da realidade [248] e escolher de forma mais ou menos livre, e que nosso livre-arbítrio não é cercado de forma tão grave como os autores acima imaginam. É essa discussão, na verdade, que está por trás das interpretações em torno da "capacidade de induzir em erro" da publicidade, como o art. 37 refere. Aqui terá relevo o que se entende por vulnerabilidade e quais os seus efeitos com relação às conseqüências da publicidade para o consumidor. Afinal, como muito bem coloca Adalberto Pasqualotto, a indução em erro "não depende só da astúcia da mensagem, mas também das condições de quem a recebe [249]".

O critério buscado para medir a nocividade da publicidade ou faz referência a um consumidor médio, ou a um consumidor típico (ou padrão). O consumidor médio, ainda segundo Pasqualotto, é aquele que possui "um mínimo de espírito crítico, inteligência e discernimento [250]". Há dois problemas nessa visão: o primeiro, é que é extremamente difícil aferir quem é o consumidor médio, já que há imensas disparidades entre os consumidores, e eles não podem ser tratados de forma homogênea. [251] O segundo, decorrente do primeiro, é que não só o consumidor médio deve ser protegido, aquele atento, diligente e perspicaz, mas também aquele menos atento e diligente, que constitui parcela não negligenciável dos consumidores. [252]

Isso nos leva ao segundo critério, mais correto, para a constatação do potencial de indução em erro da publicidade: o consumidor típico (ou padrão). Esse critério procura englobar tanto o consumidor mais atento quanto o menos atento, dando o CDC tutela para ambos. [253] No entanto, são necessárias algumas observações extremamente relevantes para não imaginarmos que, independentemente da publicidade e do produto, será sempre o mesmo consumidor típico que estará por trás, ou seja, interpretar o consumidor típico de forma homogênea, como se ele fosse um padrão único independentemente do caso.

Na verdade, o que é necessário aqui, assim como na responsabilidade civil por negligência, é estabelecer graus de negligência aceitável e diligência exigível de acordo com as variantes do caso. São padrões diferentes de consumidor que estão por trás se o que está sendo anunciado é um automóvel de luxo, um relógio caríssimo ou um financiamento para casas populares. Os consumidores típicos desses produtos possuem, normalmente, backgrounds muito diferenciados, e o tipo de conhecimento exigível de cada um varia imensamente. Produtos e serviços mais caros são normalmente consumidos por pessoas de maior poder aquisitivo, cujo background, em geral, permite mais apurada percepção da realidade dos fatos e menor suscetibilidade à crédula aceitação passiva do que a publicidade veicula. O empresário que comercializa automóveis importados pode anunciar preços vantajosos de leasing dos veículos, comparando-os a preços de venda de concorrentes, sem, necessariamente, esmiuçar as diferenças entre os dois sistemas, porque o consumidor próprio desse tipo de fornecimento tem amplas condições de se informar sobre o assunto, caso já não o conheça. Em situação bastante diferente, no entanto, se encontra o empresário que comercializa automóveis nacionais de menor preço ao sugerir, em seu anúncio, que determinado valor de prestação se refere à venda a crédito do veículo quando, na verdade, representa a cota mensal de participação em consórcio de bem durável. Nesse último caso, o destinatário da mensagem, geralmente pessoa de renda e instrução média, tem o direito de ser suficientemente informado acerca das diferenças dos dois sistemas. [254]

Assim, segundo Fábio Ulhoa Coelho:

Para se enfrentar a questão relativa ao padrão de consumidor na mensuração do potencial de enganosidade da publicidade, devem-se assentar duas premissas: interessa considerar apenas o conjunto de consumidores específico do fornecimento promovido e, dentro desse conjunto, considerar não somente as pessoas medianamente informadas, mas também os desprovidos de conhecimentos médios. [255]

Quem é o consumidor típico, portanto, varia de acordo, principalmente, com a natureza do produto e seu valor, e é com relação a esse consumidor que deve ser verificado o potencial nocivo da publicidade. Por certo que, mesmo englobando o consumidor desprovido de conhecimentos médios na construção do conceito de consumidor padrão, isso não significa que todo e qualquer adquirente de produto ou serviço pode alegar que se enganou e invocar a proteção legal. Ainda segundo Ulhoa:

Afirmar isso seria tornar inexeqüível o cálculo empresarial e impossibilitar a socialização de perdas, condição inafastável da tutela dos consumidores no sistema capitalista. Haverá, por certo, pessoas especialmente limitadas ou particularmente desatentas, em relação às quais nenhuma cautela do anunciante, por maior que seja, será suficiente para evitar distorções no entendimento da mensagem publicitária. Bem precisada a questão, aquele que não puder ser determinado sequer como o menos informado dentre os consumidores habituais do fornecimento, não há como ser considerado no exame do potencial de enganosidade da publicidade. [256]

No entanto, existem casos em que o produto não possui um destinatário específico, sendo dirigido à maioria dos consumidores. Nesse caso, prevalece o critério do consumidor típico menos atento, embora isso não seja uma escusa para aqueles que, presume-se, possuem outro padrão e dos quais é exigido um conhecimento e diligência maior. [257] O standard de enganosidade, portanto, não é fixo, variando de categoria a categoria de consumidores. [258]

O CDC não parece ter, portanto, criado uma única categoria de consumidores e equiparado-os a negligentes. Não só existem diversos tipos de consumidores, como serão exigidos diversos tipos de diligência. Aliás, com relação a muitos casos, exige-se também, independentemente do bem, seu valor e as circunstâncias pessoais do consumidor, uma diligência mínima do consumidor, que não pode fugir à sua responsabilidade simplesmente alegando sua vulnerabilidade. [259]

Já no caso das ações envolvendo as indústrias tabagistas, [260] a questão torna-se muito mais complicada. Nesse caso, o consumidor é tornado mais vulnerável por dois fatores: o primeiro, a própria publicidade de que ele era alvo antes da sua proibição legal; o segundo, a dependência química produzida por substâncias presentes no cigarro. Com relação a esses temas, há posições extremamente divergentes: algumas alegando a impossibilidade do consumidor evitar o apelo irresistível das publicidades de cigarro e a impossibilidade dele parar de fumar, e outras salientando o papel da força de vontade do consumidor nas duas questões.

Na questão da publicidade, vários acórdãos adotaram a tese de que ela minava de tal forma a vontade do consumidor que ele não podia mais agir livremente, senão sucumbir e começar a fumar. [261] O consumidor está numa posição de tal vulnerabilidade frente a ela que nem sequer sua opção é livre. [262] Isso evidentemente é uma falsidade, já que, no caso citado, se assim o fosse, todos submetidos àquela publicidade deveriam fumar, o que é empiricamente falso. Atribuir à publicidade um tal efeito é uma forma de infantilização do consumidor, é atribuir a ele uma suscetibilidade à manipulação que torna a sua razão inócua para criar resistência. [263] Sobre o ponto, Judith Martins-Costa manifestou-se de maneira muito correta no seu parecer:

Inúmeros condicionamentos psíquicos, físicos, sociais, culturais e econômicos circundam a existência de cada um de nós, e muitos – notadamente os condicionamentos culturais – são estimulados pela publicidade, já que essa é uma de suas funções. Porém, muito embora se deva admitir a existência de condicionamentos, não se pode, mesmo no âmbito da tutela dos consumidores, abdicar totalmente do exercício do sapere aude. Ao "sítio" que se faz à liberdade, há um refúgio mínimo, sem o qual não se pode reconhecer a própria dignidade humana: é a liberdade de optar, de dizer, ao menos, "sim" ou "não", assumindo as conseqüências dessa escolha.

(...)

A perspectiva adolescente conota à publicidade (ou à propaganda) missão verdadeiramente demiúrgica, a força de uma vis compulsiva absoluta, e o papel de reitora de uma "demissão", no sentido sartreano do termo: a demissão da própria possibilidade de opção.

(...) Seria atentatório ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e aos próprios princípios reitores do Código de Defesa do Consumidor, expressos no seu art. 4º, considerar que somos totalmente manipuláveis pela publicidade, ou que o totalitarismo mediático não deixa nenhum espaço ao exercício da autonomia e da liberdade individuais. Seria conotar ao conceito de consumidor a idéia de inimputabilidade, de uma total irresponsabilidade pelos próprios atos e pelas próprias escolhas. [264]

Além da publicidade, na questão do tabagismo nos deparamos com um outro problema: a dependência que ele induz. Também aqui é comumente alegado que tal dependência [265] não deixaria espaços para a liberdade do fumante, que não seria responsável de forma nenhuma pela sua insistência no vício, mesmo quando alertado pelos malefícios do cigarro. Que o fumante, ao invés de exercer um ato de liberdade em fumar, estaria "sucumbindo a uma necessidade [266]".

Na jurisprudência, a divergência gira em torno da questão do livre-arbítrio, se esse existe ou não no caso do fumante, de forma a configurar a culpa exclusiva ou, senão, concorrente da vítima. Os que defendem a tese de que não é possível falar sequer em culpa concorrente da vítima, atribuindo à nicotina um tal poder viciante a ponto de eliminar a vontade do fumante, [267] acabam aderindo a uma tese de irresponsabilidade do agente nesses casos, já que ele não é livre para agir em sentido contrário. Para essa tese, a vulnerabilidade do consumidor nessas situações é tamanha que sua vontade e sua capacidade de resistência é eliminada. Do outro lado, vários acórdãos acabam por ponderar que, embora seja muito difícil, a maioria das pessoas, bastando ter força de vontade, consegue abandonar o vício, ou seja, atribuem à nicotina uma força relativa, na medida em que ela cria uma certa dependência mas essa não elimina a vontade do sujeito. [268]

De novo, a questão volta-se para o problema do standard pressuposto, ou seja, se é exigível do fumante que ele procure parar de fumar. Qual é o tipo de standard a se considerar no caso do consumidor fumante? No caso do tabagismo não é possível distinguir diversos tipos de consumidor, como no caso da publicidade, já que ele é oferecido para um público indistinto. Qual tipo de consumidor deve ser levado em consideração? O fato é que o standard de normalidade deve guardar alguma relação com as nossas crenças cotidianas e com o comportamento comum das pessoas, e tanto acreditamos que as pessoas podem parar de fumar como muitas efetivamente o fazem. Atribuir ao cigarro uma tal força compulsiva não é crível. Aliás, o mero fato de haver publicidade pressupõe que é possível parar, e que não é necessário ser nenhum tipo de pessoa excepcional para isso. Ou seja, é justo e plausível exigir do fumante uma certa força de vontade, não irresponsabilizá-lo alegando uma fraqueza de vontade. É essa a posição também de Judith Martins-Costa:

Por mais difícil que seja parar de fumar, quem assim deseja proceder tem sempre, à sua frente, a possibilidade de uma opção: parar ou não de fumar. A tomada de decisão é, consciente ou inconscientemente, determinada por um balanceamento de valores entre o prazer momentâneo e o dever para consigo próprio, para com a própria saúde e para com os próprios familiares. [269]

Creio que é possível, além do mais, fazer de alguma forma uma ligação entre essa questão e a teoria da ação voluntária. Que tipo de ação é fazer algo compelido por uma substância química, como a nicotina? O fato é que devemos distinguir entre dois momentos distintos a análise da voluntariedade ou não da ação. [270] Embora com relação ao início do vício, quando esse ocorreu sem que o agente possuísse conhecimento dos malefícios do cigarro, sendo essas informações ocultadas pela indústria tabagista, seja possível considerar a ação como involuntária por ignorância [271] (o agente agiu sem conhecimento das conseqüências da ação), num segundo momento, em que o agente possui conhecimento das informações necessárias para abandonar o vício, não fazê-lo por força da nicotina dificilmente pode tornar a ação involuntária (involuntariedade por compulsão). A não ser que se atribua à nicotina uma força compulsiva absoluta, que impediria a deliberação (o que tornaria a ação involuntária por compulsão), continuar fumando é uma ação voluntária pela qual o agente é responsável. [272]

A bem da verdade, tanto com relação ao tabagismo como com relação à publicidade enganosa, querer escapar da nossa responsabilidade alegando fatores externos a nós e a nossa capacidade para dominá-los é uma alternativa fácil. [273] Devemos reconhecer, no entanto, que não são os objetos que exercem um poder sobre nós, mas nós que os apreendemos conforme nossa disposição. Tanto na publicidade como no vício do cigarro, é muito mais uma disposição em nós, nós sermos um certo tipo de pessoa, que nos faz ser suscetível à publicidade e ao vício, não alguma força exterior que exerce uma força coativa sobre nossa vontade. Aceitar esse fato é simplesmente aceitar a responsabilidade pela condução da nossa vida inclusive nos seus aspectos mais comezinhos e aparentemente banais.

É possível concluir que nessas visões, que reforçam a impossibilidade da voluntariedade da ação frente a essas circunstâncias, a imagem de homem vulnerável por trás parece assemelhar-se muito à de Píndaro: o homem como algo frágil, extremamente suscetível às condicionantes que o circundam, manipulado e conformado pelas circunstâncias externas. Embora essa visão tenha algo de verdadeiro, o homem está freqüentemente em posições de vulnerabilidade, negar a possibilidade do uso da razão, da resistência, da escolha de um modo diferente de agir, da possibilidade de ação voluntária em situações em que influências externas agem sobre nossa vontade é atacar nossas crenças cotidianas mais básicas e negar os traços mais distintivos do homem e o que o diferencia de outros animais: a capacidade de escolha.

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Sobre o autor
Eduardo Augusto Pohlmann

Advogado em Porto Alegre (RS). Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POHLMANN, Eduardo Augusto. Uma análise dos reflexos da vulnerabilidade sobre a responsabilidade do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1794, 30 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11321. Acesso em: 16 abr. 2024.

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